Gerry,
de Gus Van Sant
Gerry,
EUA, 2002
O novo filme de Gus Van Sant tem boa parte de seu prazer retirado, exatamente,
do tão inesperado que ele nos parece. Porque nada na carreira anterior
do diretor, seja nos seus filmes "independentes" como Drugstore Cowboy
ou Garotos de Programa (usamos as aspas pelo tanto que o termo
perdeu o sentido, embora quando estes filmes foram feitos talvez ainda
se adequassem de fato ao que se pretendia significar por ele) seja na
sua subsequente ida a Hollywood (com Gênio Indomável e
Encontrando Forrester). Na verdade, talvez o filme que mais pudesse
prenunciar este Gerry fosse sua refilmagem de Psicose. Porque,
embora entendido pela maioria como um sacrilégio ou uma estupidez,
o filme possuía um potencial abstrato grande no seu trabalho audiovisual,
que era muito menos uma refilmagem e muito mais uma homenagem, quase uma
abstração de um cineasta-fã a partir do trabalho
de um mestre. Este seu novo filme pode certamente ser definido por estas
duas expressões: abstração e cineasta-fã.
Só que, neste caso, menos importante é o trabalho de apenas
um cineasta (ao invés de Hitchcock, aqui Van Sant assume por exemplo
influências que vão de Bela Tarr a Chantal Akerman, e podemos
falar facilmente de Antonioni a Sharunas Bartas), e sim um trabalho de
amor ao cinema em si, e uma mistura fascinante e no limite entre sua capacidade
abstrata e evocativa e a sua utilização narrativa-dramatúrgica.
Talvez o maior interesse deste
filme venha justamente desta tensão que está presente nele
o tempo todo: quando pensamos que tornar-se-á absolutamente abstrato,
entra em cena um fio do que consideramos "história" ou "personagem".
Por outro lado, quando achamos que vamos encadear uma narrativa linear,
o filme torna-se novamente absolutamente contemplativo, dilatando tempo
e espaço ao seu limítrofe cinematográfico. Esta mistura
é a que intriga o espectador o tempo todo. Claro que alguns podem
preferir ver no encadeamento estético do filme uma tentativa de
"fazer arte" gratuitamente, e outros podem ver no delineamento narrativo
uma "muleta". No entanto, estas posições parecem mais uma
tentativa de se posicionar tendo em vista o conhecimento de quem seja
Van Sant ou Matt Damon e Casey Affleck (seus dois atores). Não
deveria haver outra forma de se colocar perante este filme que não
fosse discutindo apenas o que ele é, seja seu diretor um armênio
desconhecido e seus atores não-profissionais, sejam eles quem são.
Na verdade o único motivo pelo qual se deve sim levar em conta
quem são os atores é que as personas (em especial a de Damon,
é claro) tornam a sua utilização para os fins deste
filme tanto mais inesperadas e de dupla expectativa. Esperamos sinceramente
o momento em que aquela trama "se explicará". É muito rico
pensar esta mistura de um cinema absolutamente experimental com signos
e paisagens tão ligados ao cinema narrativo americano clássico.
Matt Damon perdido numa imensidão de paisagem do meio-oeste americano
nos invoca todo tipo de herança hollywoodiana, e ainda assim os
personagens parecem vagar sob outras leis.
Usando expedientes francamente
beckettianos (que vão do dilatamento do tempo ao uso dos diálogos
como forma de mais obscurecer do que esclarecer o que se passa ao uso
dos nomes dos personagens), Van Sant cria uma obra que é, por outro
lado, puro cinema. Os limites do quadro e do tempo de cada plano são
explorados constantemente (desde o primeiro plano, aliás) e a utilização
da paisagem natural como fonte de maravilhamento (do espectador, principalmente)
e opressão encontra paralelos no cinema atual com o filme de Carlos
Reygadas, Japão.
É claro que, assim como
no trabalho de todos os anteriormente citados (sejam cineastas ou dramaturgos),
há no "vazio de história" do filme um componente fortíssimo
de questionamento existencial. Ao mesmo tempo que esta pode ser lida como
fonte de identificação universal, claro que também
é matéria para o crítico do filme que quiser ver
nele um "existencialismo de butique". O equívoco parece tão
grande quanto o de comparar Psicose com o filme de Hitchcock. Porque
assim como Van Sant partia naquela refilmagem da majestosidade e incomparabilidade
do filme de Hitchcock como dados indiscutíveis (portanto sendo
estúpido pensar que ele queria fazer um filme "melhor" ou mesmo
"tão bom quanto"), aqui ele também considera dada esta herança
artística monumental sobre o tema do "porque estamos aqui, para
onde vamos". Ele não quer, mais uma vez, ser "novo". Quer apenas,
no meio que é o seu (o audiovisual), mergulhar na imensidão
de imagens e sons que este tema lhe inspira. Seu trabalho não pretende
inventar a roda, nem mesmo recontextualizar nada. Pretende apenas estabelecer
um jogo intertextual tão rico quanto livre com a herança
que aí está posta. Nesse sentido, estes dois filmes estabelecem
um dos jogos mais ricos do cinema contemporâneo com a herança
muitas vezes excessiva e engessadora ("o que há ainda a se filmar?")
do cinema.
No entanto, quanto mais e mais
se escreva, parecerá sempre que se tenta encontrar um viés
ou um argumento que dê conta ou "defenda" as opções
de Van Sant, quando não devia se tratar disso. O principal fato
do filme é que trata-se de uma delícia audiovisual, acima
de tudo. Perder-se nele, surpreender-se com ele, é o que conta.
Eduardo Valente
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