Fora de Controle, de Roger Michell

Changing Lanes, EUA, 2002

As imagens aceleradas no início de Fora de Controle, do sul- africano Roger Mitchell (Um Lugar Chamado Notting Hill), com planos de avenidas captadas do pará-choque de um carro, sugerem mais um filme destinado a sacudir a vista, sem no entanto provocar o cérebro e a sensibilidade. Mas essa impressão de movimento desorganizado, como insinua o título em português, logo mostrará ter uma razão de ser. Na superfície, é uma aventura. Não deixa de ser. A motivação das situações adrenalinadas, porém, está no tumultuado interior dos personagens. Embora preencha algumas passagens com clichês de filmes de ação, de modo a causar sensação no espectador sedento de movimento, o importante é o desenvolvimento de um dilema moral.

Nos primeiros minutos projetados na tela, Ben Affleck e Samuel Jackson envolvem-se um acidente de carro. Por razões diferentes, ambos estão a caminho do tribunal, embora ignorem isso. Na ânsia de chegar ao compromisso no horário, Affleck, advogado emergente de uma grande firma, deixa o local da batida e esquece uma pasta, justamente o documento mais importante de seu caso. Jackson fica com a tal pasta, mas também sai no prejuízo. Chega atrasado à sua audiência e perde a guarda dos filhos. Nas 24 horas seguintes, boa parte delas passadas em uma Sexta-Feira da Paixão, dia no qual se cultiva a lembrança da crucificação de Cristo, os dois virarão cão e gato.

No aniversário de morte do pregador do amor ao próximo, um tentará prejudicar o outro para se vingar. Nenhuma chance de perdão. Eles terão de viver uma via-crucis antes de vislumbrar uma possibilidade de ressurreição de seus projetos de vida. Ambos perceberão os efeitos nocivos de seus gestos intempestivos e rancorosos, que chegam a pôr em risco a segurança física e o futuro de cada um. Adquirirão a incômoda consciência de serem responsáveis por cada um de seus atos, sem para isso terem de fazer um curso supletivo sobre os conceitos epicuristas, segundo os quais o homem é senhor de suas atitudes e essas não podem ser justificadas por razões deterministas. "O poder do homem é o poder de determinar a si mesmo", escreveu Epicuro. Até porque o caráter de um ser-humano é testado em situações-limites e não nas de calmaria. E tal caráter emerge, em geral, do conflito entre o caminho certo, segundo suas convicções, e o caminho mais fácil, segundo as circunstâncias.

O personagem de Affleck é mais complexo. Não lida apenas com o pior de si trazido à tona após o acidente, mas também por opções tomadas antes disso. Ele está no meio-fio entre resquícios éticos e um oportunismo sem limites. É ambicioso em larga medida e, para satisfazer essa fome por poder social, fecha os olhos para muita coisa. Nem a transformação de seu ponto de vista, no decorrer do filme, será capaz de levá-lo a virar a mesa. O advogado tem estômago para suportar o mal cheiro de seu círculo. Lembra o relações públicas de O Articulador, também comentado nessa edição de Contracampo. Tal personagem seria um antídoto à galeria de tipos com a síndrome do "posso-fazer-tudo-e-danem-se-as-conseqüências" a assolar o cinema americano recente. Pois ele ultrapassa uma certa linha, mas terá noção disso.

Não parece ser casual a repetição de diálogos com referência a Deus e duas cenas ambientadas dentro e em frente à uma Igreja. O dia de cão vivido pelos personagens refletem não só a desordem individual de ambos, mas uma falta de lógica a gerir a vida em geral. Deus não existe, nesse sentido. A capacidade de agir, segundo certos valores mediadores, está em cada um. Mas essa ação tem limites. "Que Deus me dê força para aceitar o que não se pode mudar", vocifera Jackson, em uma variação da cena de Griffin Dunne no ainda subestimado Depois de Horas, de Martin Scorsese, filme de lembrança recorrente, na qual ajoelha-se na rua e, olhando para o céu, no intervalo de uma série de desagradáveis imprevistos em sua noite, pergunta por que está sendo punido. Scorsese, porém, é católico. Enquanto o roteiro de Fora de Controle, ao menos aparentemente, só poderia ser escrito por um ateu. O autor é Chap Taylor, estreante no ofício, cujo ponto alto do currículo, até então, era ter sido assistente de produção de Poderosa Afrodite, de Woody Allen.

Essa capacidade de inserir um nível razoável de reflexão e uma quantidade nada desprezível de dilemas, em meio às concessões ao códigos do cinema-espetáculo, seria amplificada caso não se firmasse compromisso com a explicação às vezes excessiva das intenções do projeto. Que ninguém, portanto, engane-se. Mesmo tendo um custo abaixo da linha de superprodução de Hollywood, US$ 45 milhões, Fora de Controle é antes um filme-mercadoria e depois uma mercadoria-com-idéias. Não deixa de ser interessante, mas não necessariamente intencional, que sua estrutura narrativa, talvez até por deslize, reproduza os desajustes dos personagens. É um tanto torta, desorganizada, repetitiva. Já o trabalho de câmera e o uso do som traduzem a instabilidade das situações e são empregados com inteligência e de forma funcional. Ao ficar no meio do caminho entre propor pontos de vistas, muito interessantes, e entreter o espectador sem fundir sua cuca, com razoável eficiência, o resultado ergue o pescoço sobre o rame-rame dos produtinhos de olho só no cifrão.

Cléber Eduardo