O Feitiço de Xangai,
de Fernando Trueba

El embrujo de Shanghai, Espanha, 2001


Numa sociedade mais precavida (ou simplesmente cínica), o fim da projeção do novo filme de Fernando Trueba daria início a um processo cuidadoso de investigação sobre o diretor e seus produtores. Sim, porque apenas um esquema multinacional de lavagem de dinheiro poderia explicar o porquê de se gastar os milhões de dólares empenhados nessa superprodução, uma vez que o filme em si não consegue justificar sua existência. Não é o caso de achar que se trate de um filme sem qualidades, sejam elas de filmagem ou de alguns momentos mais belos. Mas, simplesmente, o filme sofre do que o Homem de Lata do Mágico de Oz já havia diagnosticado como um problema central da existência: falta-lhe um coração.

Talvez o mal que aflija o filme e seu diretor seja um pouco mais banal, bastante comum realmente neste início de milênio: excesso de cinema. Sim, é verdade que tantos filmes nos fazem perguntar se seus diretores já viram algum filme na vida, tal sua completa inadequação ao meio, às sutilezas e potencialidades de se contar uma história pela veia audiovisual. No entanto, este Feitiço de Xangai vai pelo caminho oposto: o manancial de imagens já criadas e eternizadas pelo cinema ao longo destes cento e poucos anos de história passou a ter tamanha força, permanência e (aparente) significado em si mesmo, que deixa de ser importante adicionar qualquer coisa de novo ou qualquer índice de seu tempo a ele, bastando macaqueá-lo sob o signo de uma certa "metalinguagem", para justificar uma nova ida ao cinema. Pois bem: não justifica.

O fascínio de Trueba com o cinema clássico americano fica óbvio, seu domínio de linguagem também, seu "cinema de qualidade" está na tela. O que não está lá é qualquer motivo para aqueles personagens se movimentarem, interagirem, falarem (e como falam!), pelo menos nenhum motivo que fuja ao da "homenagem" a um gênero cinematográfico, a uma imagem (re) trabalhada. O filme de Trueba tem tudo de ruim (o formalismo excessivo, a frieza, a troca de personagens por emblemas) sem nada de bom (a discussão de linguagem, as trocas de papéis entre sujeitos e objetos, o questionamento do jogo de projeções e desejos) do cinema do nosso Guilherme de Almeida Prado.

Afinal, há algo de errado quando se constrói o que no fundo é apenas mais um "filme de formação", um "rito de passagem infância-idade adulta", e o seu protagonista é incapaz de nos expressar uma emoção, por menor que seja. A falta de expressividade do ator principal de Trueba é um símbolo do completo desinteresse do filme em si. Deveríamos partilhar do fascínio do personagem, que foge da banalidade de seu dia-a-dia a partir dos mundos onírico-delirantes que encontra nos relatos de um velho e no ambiente de uma casa onde cada personagem parece um mundo cinematográfico.

"Não importa" é a frase-chave. Quando os personagens se perdem numa narrativa pretensamente "de sonho", chupada de todos os clichês do cinema clássico numa desejada "homenagem", o espectador pensa: "não importa" (desculpando-se o anglicismo, mas talvez o inglês expresse melhor a idéia: "I don't care"). Quando o personagem do velho parece morrer numa praça, e cria-se um leve suspense sobre isso, o espectador pensa: "não importa". Quando no final um absurdo jogo de versões de um mesmo fato pretende criar uma reflexão sobre a realidade e suas criações (o que, aliás, parece ser o "tema" do filme), o espectador pensa: "não importa". E, quando nada importa na experiência de ver um filme, é difícil permanecer num cinema.

Que se diga que Fernando Trueba já foi capaz de belos filmes (Sedução talvez sendo o melhor deles, mas mesmo o já maneirista A Garota dos seus Sonhos possuía frescor e muita graça), mas realmente aqui ele erra na mão. Em alguns poucos minutos do filme (as cenas do cabaré em Xangai ou os esparsos momentos de real emoção, na sedução do narrador pela jovem enferma) conseguimos até vislumbrar algo que parece ter uma alma no interior do bolo enfeitado. Mas seu pretenso jogo de versões e verdade, de sonho e banalidade, é pálido e sem interesse perto de, por exemplo, um A Camareira do Titanic de Bigas Luna. Vamos torcer para uma volta do diretor a um cinema mais humano e menos impressionado consigo mesmo.

Eduardo Valente