Eternamente Sua,
de Apichatpong Weerasethakul

Sud Sanaeha / Blissfully Yours, Tailândia, 2002

Objeto misterioso numa tarde.

Eternamente Sua é um filme-OVNI. Nem tanto por sua estranheza particular – trata-se de um filme temática e formalmente límpido – mas por sua posição relativa no cinema contemporâneo. A proposta é louca por sua simplicidade: numa manhã, os dois namorados conseguem atestados médicos para faltar a seus respectivos empregos e vão de carro para uma floresta onde poderão viver um momento fora do tempo. Argumento mais prosaico impossível. Mas alguma coisa acontece que eleva todo esse banal cotidiano filmado às máximas alturas do cinema (sim, é sem afetação o lugar que esse filme merece): embora nada se dê obviamente em tempo real nem simulado, o filme nos aparece como completamente instaurado no tempo de seus personagens, de modo que vivemos com eles e temos a forte impressão de tempo real passando. Não é para menos. O primeiro plano nos entrega ao consultório médico. Vemos os personagens irem da médica até o carro, e depois até o emprego de Min, a namorada, e mais tarde a viagem de carro até a floresta. Não estamos tanto para Tsai Ming-liang e sua dilatação do tempo como reflexo existencial de uma angústia dos personagens; estamos muito mais perto de um Andy Warhol em suas experiências temporais mais radicais à maneira de um Empire State ou de um Sleep (convém lembrar que o diretor Apichatpoing Weerasethakul é, além de cineasta, artista plástico), só que adaptado, na medida do possível, às necessidades de uma mínima narratividade do cinema e, a rigor, a uma certa lógica que o cinema impõe quando filma personagens (realocá-los em seu meio, dar deles uma dimensão emocional, política, social, etc.).

Mas nada está mais longe desse filme do que o olhar clínico e maneirista dos estetas contemporâneos (nada de Greenaway no cineasta tailandês). Eternamente Sua é também um filme muito simples, que flagra quatro personagens aproveitando um feliz dia de sol para recuperarem suas forças. Nesse sentido, a experiência de assistir ao filme é tão gratificante quanto os dias em que se decide tirar uma folga dos atos rotineiros do cotidiano, e que nos transmite uma saborosa sensação do tempo que escoa, um elogio ao efêmero e ao mesmo tempo um ato de cristalização do tempo, momentos que flutuam acima desse mesmo escoamento.

Comecemos do início: Roong sofre de uma dolorosa doença de pele. Ele descasca todo. Ele é um imigrante birmanês que trabalha ilegalmente na Tailândia, tem família em seu país natal, e está planejando arrumar trabalho em um terceiro país. Min sabe da fragilidade de seu relacionamento com ele, mas mesmo assim quer dar vazão a todos seus sentimentos. Ela paga a Orn, uma senhora de uns cinqüenta anos, que cuide de sua doença e o guie quando ela não pode (além de doente, Roong deve manter-se calado na presença de estranhos para não denunciar sua situação de birmanês). Eternamente Sua roda em torno dos sentimentos e dos sentidos desses três personagens, com algum destaque ainda para Tommy, parceiro de Orn que a leva para a floresta mas se perde assim que tem sua motocicleta roubada e corre atrás do ladrão.

Falou-se em sentimentos e sentidos, mas se o filme prega o primado de um, é sem dúvida o dos sentidos. Ou, ao menos, é através deles unicamente que conseguimos compreender os sentimentos dos personagens. Eternamente Sua é um filme táctil: dos lentos toques que Min e Orn dão no corpo de Roong para passar uma esquisita pomada tradicional para amenizar sua dor, dos três momentos de sexo do filme (um coito entre o casal mais velho, uma felação no casal jovem, o toque da moça no membro de seu amado ao finald o filme), os arranhões de Orn na floresta, uma formiga que entra por baixo da camisa de Min... Mas não é menos um filme sobre o paladar – a atenção que é dada à comida do piquenique, o jovem casal procurando por frutos entre as árvores – ou sobre a audição – finalmente, depois de muito tempo, acreditamos ouvir sons novos de ambientes de floresta, sons que traduzem auditivamente à perfeição a sensação de magnitude que se prova andando no mato.

Eternamente Sua é o primeiro longa de ficção de Apichatpong Weerasethakul, embora tenha realizado antes o documentário Mysterious Object At Noon. O que surpreende desde o início é uma assinatura toda própria, que expressa uma sensibilidade e uma preocupação estética completamente novas, distintas de tudo que se vê ou se viu. É uma dessas obras que parecem reiniciar todo o cinema, abstraírem do fato de que ele tem uma história. Seria inútil elencar possíveis influências (Hou Hsiao-hsien e Monte Hellman pelo escoamento do tempo e a narratividade mínima, por exemplo), porque seu cinema sempre funciona de outra forma. Um toque ou uma cena, em Hou ou Hellman, sempre mantêm um significado de contexto muito forte: o retrato dos modos da sociedade, a estrada como linha de fuga do padrão pequeno-burguês americano. No cinema de Apichatpong elas têm sentido só por si mesmas. Mesmo que a situação de Roong dentro do país instaure o político dentro do filme, o diretor serve-se dessa situação mais para aumentar a sensação de efêmero do que propriamente para restituir ao filme uma dimensão do social ou do político.

O verdadeiro tema de Eternamente Sua é, pois, o tempo. Não o tempo abstrato do Warhol supracitado nem o tempo morto de um Antonioni ou de um Tsai. Estaria muito mais para as experiências com o tempo de um Hélio Oiticica (e a sensorialidade dos "penetráveis") e de alguns artistas contemporâneos. No cinema pensa-se com muita dificuldade em referências possíveis. Eternamente Sua é um OVNI que vira uma cobra. Assim como Roong, é um filme sobre a mudança de pele – é a própria Orn no começo do filme que evoca a cobra). O filme se termina nua seqüência enorme ao lado de um pequeno córrego – e, mais uma vez, as evocações heraclitianas do rio que nunca é o mesmo novamente nos conduzem à efemeridade. Aproveitando as diversas ambiências proporcionadas pela floresta, Weerasethakul consegue alguns desses milagres em que parece que o diretor tem domínio até sobre os desígnios de São Pedro: quando pela primeira vez Roong e Min se agarram, o santo nos brinda com uma nova coloração das plantas, uma nova luz que permeia o plano sempre fixo do filme. As nuvens saíram para que o sol veja melhor o casal. Mas o efêmero nem sempre é festejo. Depois do sexo, depois de um belo dia de amor e carinho, sabe-se que ele não dura para sempre, e isso sempre é brindado com uma lágrima. Enquanto tateia o membro de Roong até que ele fique ereto e depois murche novamente, Min verte uma lágrima solitária que desce na vertical da câmera, quase imperceptível a nós. Nós, que sentimos que o filme se termina, e temos a terrível vontade de acompanhá-la nessa lágrima. Ao fim da projeção, é quase impossível não se concordar: obra-prima.

Ruy Gardnier