Dias de Paraíso, de Terrence Malick

Days of Heaven, EUA, 1978


Richard Gere e em Cinzas no Paraíso de Terrence Malick


Quatro anos depois de sua arrasadora estréia com Terra de ninguém, Terrence Malick reapareceu no cenário do cinema americano com um filme que seria sua obra-prima. Um trabalho tão irrepreensível e pessoal que, após sua realização o diretor afastou-se por 20 anos, dando a impressão que, ao atingir tamanha perfeição, nada mais teria a realizar. É difícil descrever em palavras o impacto deixado por Dias de paraíso, e confesso achar-me um privilegiado por ter tido a oportunidade de assisti-lo em tela grande, mesmo que tenha sido no mitológico poeira Ricamar. E o tal impacto permanece, ainda que seja no vídeo e na terceira ou quarta releitura. Ao revê-lo para a realização deste texto, simplesmente não conseguia parar a fita para beber água, mesmo estando morrendo de sede.

Mas chega de memórias ou confissões cinéfilas e vamos ao filme. Dias de paraíso conta a história de Bill (Richard Gere, estreando), que foge de Chicago após uma briga na fábrica onde trabalhava, e, junto à irmã Linda (Linda Manz) e à namorada Abby (Brooke Adams), vai trabalhar na colheita de trigo em uma fazenda, durante a época da primeira guerra mundial. Vivendo juntos sem serem casados, Bill e Abby se apresentam como irmãos. Descobrindo que o jovem, rico e solitário fazendeiro (Sam Sheppard) está com uma doença fatal que o deixará com pouco tempo de vida e sentindo sua inequívoca atração por Abby, Bill estimula a namorada a se casar com o fazendeiro, na esperança de uma vida melhor. O triângulo, obviamente irá desembocar em tragédia.

Dito assim parece banal, mero novelão. Mas aí está a genialidade de Malick, que usa este argumento simples para explorar todos os recursos que o cinema tem a oferecer. Não somente contar uma história através de imagens e diálogos (estes, por sinal, bastante econômicos), mas explorando igualmente fotografia, locações, montagem, música e som, durante exatos e enxutos 90 minutos. E seu trabalho com cada um dos ingredientes acima em Dias de paraíso mereceria um estudo em especial.

Falaremos primeiro da apresentação dos personagens. Como nos outros filmes do diretor, este é narrado em off. O ponto de vista é o da pré-adolescente Linda, mas a narração não chega a ser onipresente, servindo apenas como comentário de uma visão inocente dos acontecimentos (assim como a visão da personagem de Sissy Spacek em Terra de ninguém e a dos recrutas de Além da linha vermelha). A primeira sequência, da fábrica em Chicago, apresenta em poucos minutos e sem qualquer diálogo, o temperamento inquieto e pavio curto de Bill. A utilização das imagens e sons agressivos das máquinas faz um contraponto à placidez campestre do restante da fita. O amor e admiração que lhe dispensa sua irmã é demonstrada em poucas falas. Já Abby parece ser um constante enigma. Na verdade, salvo a menina, as intenções e pensamentos dos personagens nunca são completamente explicitados no filme. E quando o são, esta explicitação se dá principalmente através de imagens. É também marcante a utilização dos figurantes e elenco de apoio durante as sequências de colheita. Os rostos parecem quase invisíveis, em oposição ao dos protagonistas, retratando um marcante anonimato e conformismo, que contrasta com a inquietação de Bill.

Dias de paraíso ganhou o Oscar de melhor fotografia para Nestor Almendros. E este comentário vale não somente como mera curiosidade. O fato pode nos trazer à mente a idéia do conceito, hoje tão em voga, da "fotografia bonita", que funciona como perfumaria, sem qualquer relação direta com a narrativa, muitas vezes até desviando a atenção desta. Não é o caso do filme de Malick. Almendros pode ser considerado um co-autor. Poucas vezes na história do cinema se viu uma exploração tão expressiva de luz e cenários naturais. A integração homem-natureza é uma abordagem cara ao diretor. E assim como em Além da linha vermelha, imagens de paisagens e animais fazem parte de sua visão de um mundo cuja perfeição o homem, com seu comportamento mesquinho, pode destruir, o que em Dias de paraíso realmente acontece durante a sequência climática do incêndio.

E o que dizer da maneira como o filme retrata as diferentes estações do ano, principalmente pelo fato desta ser a única forma utilizada por Malick para marcar a passagem do tempo. No filme inteiro não há um relógio, e a ação é praticamente dominada por uma certa atemporalidade, composta de fragmentos e momentos isolados, intercalados por lapsos cronológicos, sem prejuízo da unidade, concisão e coerência. Pelo contrário, enriquecendo e dando identidade a este que já foi chamado de "um filme de elipses". A localização da história durante a década de 1910, aliás, só fica clara durante as sequências finais.

Muito mais teria a se falar sobre Dias de paraíso, mas é melhor deixar ainda aspectos para que o leitor perceba assistindo o filme, preservando o prazer da descoberta de momentos de rara poesia, como o plano do copo de vinho no fundo do rio. Certamente não se pode deixar de comentar a trilha de Ennio Moriconne, um espetáculo à parte. Belíssima, além de perfeitamente integrada à ação, ocupando um lugar especial na carreira do compositor, com um estilo bem diferente do que associamos às suas marcas registradas, sejam os sons épicos dos westerns de Sérgio Leone ou os sons melosos compostos para Giuseppe Tornatore. É mais uma das infinitas razões para aproveitar o lançamento em DVD e ver ou rever este filme absolutamente ímpar na história do cinema, que não pode ser classificado em qualquer rótulo ou gênero, se que permanece ainda assim muito pouco conhecido ou discutido.

Gilberto Silva Jr.