Novos brinquedos ganham
sentido em mãos calejadas


Uma das piadas mais velhas da humanidade é a do velhinho sendo ultrapassado pela tecnologia, perdendo o contato com o mundo contemporâneo pela simples incapacidade de programa um videocassete, operar um computador ou usar um telefone celular. Uma situação que todos nós já vivemos com nossas mães ou avós em casa, e talvez até já tenhamos protagonizado com as bugigangas eletrônicas daquele primo bem mais novo.

Quando surge o digital, anunciando-se como revolução do cinema para o século XXI (e sob muitos aspectos, já é de fato), era de se esperar uma atitude relutante por parte dos "dinossauros" do cinema, sendo suplantados pelos jovens entusiastas das novas tecnologias. Pois, se é bem verdade que em termos de avanço tecnológico ninguém tem feito mais pela defesa do digital do que o já bem "idoso" George Lucas, o que mais impressiona é ver que veio de um grupo de respeitáveis senhores os melhores entendimentos recentes da utilidade e especificidade do digital enquanto formato de captação de imagens para o cinema. No recente Festival de Gramado, foram exibidos em sequência, no mesmo dia, três filmes que eram quase um tapa na cara da juventude que muito tem balançado a câmera e incorporado supostas "inovações" (várias delas que já povoam a TV há tempos), enquanto não consegue de fato ver qual a tal liberdade que o digital tanto empresta. Os filmes novos de Eduardo Coutinho (Edifício Master), Domingos Oliveira (Separações) e Arturo Ripstein (foi exibido em Gramado o já penúltimo filme dele, La perdicion de los hombres) respiram, cada um à sua maneira, os ares do novo século mostrando que, em termos de arte, não importa como funciona a máquina e sim para quê. Dos três filmes, os dois primeiros estão no Festival do Rio, e o terceiro não está, mas está o novíssimo de Ripstein (A virgem da luxúria). Os dois, juntamente com o já exibido aqui Assim é a vida, representam suas incursões pelo mundo digital.

A verdade é que após os dois primeiros filmes do Dogma (Festa de família, mas em especial Os Idiotas) e a interessantíssima incursão pára-Hollywoodiana de A Bruxa de Blair, os filmes realizados em digital conseguiram muito pouco além de repetir as fórmulas destes. Fascinados com o barateamento de custos e as facilidades de filmagem, os cineastas parecem ter, de forma geral, perdido o discernimento do que tem ou não real importância para suas realizações. Filmes são feitos seguidamente onde só se deve perguntar: por quê?

Pois porquês nunca faltaram a Eduardo Coutinho, e o digital só veio trazer seu trabalho de volta às telas dos cinemas. Na sequência de três obras-primas que realizou desde que começou a usar o formato (Santo Forte, Babilônia 2000 e este Edifício Master) Coutinho usa todas as facilidades do equipamento (filmagens mais baratas permitindo muito mais material, discrição do equipamento levando a maior intimidade com os objetos de seus documentários) sem cair em qualquer dos vícios. Sua atenção continua absolutamente focada nos seres humanos à sua frente, e é deles que vêm todas as informações que realmente importam. Não toma partidos a priori nem parte em busca de efeitos dramáticos: apenas media a realidade por seus "personagens" e sua câmera simples. Realiza uma edição sutilmente complexa, onde os sentidos são construídos muito mais por acumulação do que por jogos. Um cinema essencial, em todos os sentidos.

Já Domingos Oliveira está estreando em digital. Na verdade, seu filme Separações funciona quase como uma continuação, não-assumida e com outros personagens, do anterior Amores. Domingos ficou muitos anos sem filmar, alegando entre outras coisas um cansaço com a extrema burocratização do ato de filmar (equipes imensas, produções complexas) e o alto custo disso tudo. Fez Amores ainda em película, mas a verdade é que o cinema que ele buscava adequava-se perfeitamente ao digital, então trata-se de um caminho apenas natural. No seu cinema o deleite estético não virá da bela imagem, e nem da estetização de uma oposta "feiúra", e sim da imagem mínima. O aparato a serviço do ator, da dramaturgia, do drama humano. Mas não o drama banal, como se toda história porcamente montada tivesse atrativo pela possibilidade da câmera digital de flagrá-la à la "fly on the wall", como nos exemplos recentes de Aniversário de casamento, ou mesmo no Festival com Entre casais. Não, Domingos, como artista oriundo do teatro, sabe bem da importância do diálogo bem construído, do personagem que seduz a platéia. Mas, acima de tudo, um cinema do humano, onde ninguém é perfeito, e isso não tem nada de errado.

Finalmente, temos o caso-limite, de Arturo Ripstein. Limite porque, é fato, muito antes do digital seu cinema já era desconcertante, inesperado. Assim que realiza seu primeiro trabalho no formato, torna-se um dos mais ferrenhos defensores da realização em digital. E seus filmes mostram bem o porquê da opção: Ripstein é o cronista de um México quase sempre marginal, onde a imagem tosca e o movimento imperfeito são a própria razão de existir de seus personagens. No filme exibido em Gramado, La perdicion de los hombres, havia ainda a radicalização completa do tempo cinematográfico, sendo o filme composto de uma série de planos-sequência longuíssimos, esgarçados, verdadeiros tapas na cara de uma platéia que ainda relaciona a ida ao cinema com a noção do "bom gosto". Pois o filme (e podemos dizer, os filmes) de Ripstein não poderia se importar menos com isso. É cinema feito para incomodar, mas não por pura rebeldia vazia, e sim por saber que ainda há histórias a se contar de formas alternativas. E que o estranhamento é meio caminho para o fascínio.

Pois é, foi preciso ter acesso ao trabalho de três senhores veteranos para renovar a fé no formato mais contemporâneo por natureza do cinema do século XXI. Que o digital veio para dominar, já está claro (e no caso do ato da projeção de filmes em si, as que foram realizadas em Gramado de Querido estranho e Dois perdidos numa noite suja chocaram pela nitidez superior à dos projetores de película). Mas o que assustava até agora era pensar que o cinema estava dando passos atrás. Que os velhinhos indiquem um caminho diferente, então.

Eduardo Valente