Ararat,
de Atom Egoyan
Ararat,
Canadá, 2002
Reza a lenda que o cinema de Atom Egoyan jamais fala sobre as coisa, mas
sobre a angústia e a dificuldade das tomadas de decisões
causadas pelas coisas. Dessa forma, toda possibilidade de um cinema físico
ou que precise em algum momento dar conta da materialidade do mundo perde-se
em belas imagens e torturadas divagações sobre a existência
(abstrato assim). Há quem jamais tivesse se interessado pelo enredo
psicológico e pelos paralelismos que se teciam entre os personagens
de Exótica e de O Doce Amanhã, mas aqui em
Ararat o negócio é mais embaixo: Atom Egoyan quer
falar não só de tensões psicológicas e da
dificuldade de se deparar com as coisas inexoráveis do mundo; agora
ele quer falar sobre um massacre muito caro a ele, o genocídio
do povo armênio cometido pelos turcos no começo do século
XX (os pais do diretor sendo armênios, passa a ser um assunto de
família).
Mas é aí
que o já precário sistema cinematográfico de Atom
Egoyan rui de forma patente. Enquanto seu cinema flutuava em torno da
vida familiar e dos conflitos interiores de seus personagens, os filmes
estavam livres da pecha de ir procurar alguma verdade externa, alguma
coisa que nos forçasse a descobrir que há mundo fora das
impressões subjetivas de cada um. Com Ararat, isso seria
obrigatório: um massacre não é algo subjetivo, mas
algo que deriva de um conjunto de ações políticas/culturais/sociais
que irão impulsionar, comandar e justificar tal infâmia.
Ora, sobre isso Atom Egoyan prefere não refletir. Prefere nos entregar
seu filme habitual: as linhas narrativas se escalonam em torno de dilemas
familiares e amorosos (é Christopher Plummer que abre a narrativa
para dar lugar à história de um filho de mãe armênia
que tenta trazer ao Canadá uma lata de filme e é retido
na alfândega por suspeita de carregar drogas).
Assim feito, Ararat
mostra não só a incapacidade de Atom Egoyan em estender
seu leque de interesses cinematográficos, mas acima de tudo a extrema
impossibilidade de tocar a fundo a realidade material que, afinal, criou
a necessidade existencial de realizar o filme. Assim, o massacre armênio
transforma-se num filme-dentro-do-filme rodado por um célebre diretor
armênio, e a decisão se revela como um subterfúgio:
são as imagens mais espetaculosas do filme, de longe as menos verdadeiras
(se com verdade tentamos dizer não sobre a adequação
com o mundo real, mas com uma veemência de cinema e uma vontade
de tocar o mundo), e também as menos verossímeis. Subterfúgio
porque, sendo filme-dentro-do-filme, a canastrice da mise-en-scène
do massacre pode cair na conta do diretor fake (encenado por Charles
Aznavour), e não na de Egoyan, entretanto responsável absoluto
do filme. Na falta de qualquer interesse ou capacidade de tocar algo além
dos inefáveis tecidos da memória, da angústia ou
do sentimento familiar (onde até o massacre armênio transforma-se
em ritual de passagem da memória de mãe para filho), Ararat
resulta inútil e estéril.
Tocar um novo assunto,
um novo foco de interesse, é sempre perigoso para um cineasta.
Ou dilata o espectro que sua obra cobre, ou simplesmente se descobre que
ele só consegue fazer um mesmo tipo de filme. Com Ararat,
descobrimos que Atom Egoyan não é nada além de um
maneirista que, por não encontrar jamais ponto de ancoragem na
realidade, continua filmando os momentos de impasse, mesmo quando eles
são desimportantes. Se em O Doce Amanhã eles não
eram, em Ararat há muito mais mundo para além de
angústias e memórias. E falar só disso e se esconder
do mundo tangível (esfera onde factualmente houve o masacre) torna
Ararat um filme verdadeiramente abjeto. E, como se precisasse ajuntar,
sem talento.
Ruy Gardnier.
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