A
Hora da Religião,
de Marco Bellocchio
L'Ora di Religione
(Il Sorriso di mia Madre), Itália, 2002
Não é necessário voltar muito
no tempo para nos lembrarmos da revolução que causou o surgimento dos
cinemas modernos, e qualquer um que já conheça minimamente o quadro formado
pelos jovens cineastas que trouxeram o engajamento político, a revolução
formal e a renovação dos temas até então abordados às cinematografias
de seus países (Jean-Luc Godard na França, Nagisa Oshima no Japão, Monte
Hellman nos Estados Unidos e, no Brasil, Glauber Rocha) não estranhará
o destaque - mais do que merecido, desta vez - dado ao enfant térrible
que logo na estréia realizou um dos filmes mais pungentes de todo o cinema
italiano da década de 60, De Punhos Fechados. Foi um golpe duro
para Marco Bellocchio ter sido a principal esperança, junto com Bernardo
Bertolucci, de um cinema italiano jovem que não apenas precisava dar continuidade
ao majestoso projeto já pavimentado pelo neo-realismo de Rossellini, De
Sica, Visconti: era preciso também pensar o que vinha a ser tal proposta
diante de uma Itália que progressivamente se tornava mais amarrada às
tradições que estes autores atacavam contudentemente. Se A Hora da
Religião é possivelmente o melhor filme de Bellocchio desde a década
de 60, é porque este ideário crítico do cinema italiano pôde, finalmente,
tomar forma após a confusa fase de filmes do diretor das décadas de 80
e 90. Trata-se, enfim, nem tanto de um retorno à forma como a concretização
de uma outra tão acertada quanto.
De uma contenção inicial do indivíduo
surge a angústia, esta geralmente seguida por uma indignação que dá lugar,
por fim, à consolidação de um ideal. É de certa forma este o mote de boa
parte da obra de Bellocchio, e portanto não é absolutamente surpreendente
quando percebemos o sentimento de indignação que provém do protagonista
Ernesto Picciafuocco (Sergio Castellitto, magnífico), ateu confesso numa
Itália que abraça qualquer santidade, por mais ridícula e desprovida de
sentido que esta seja. São curiosos os caminhos entrecortados pelo desenhista
no dia e meio em que, além de descobrir que sua mãe está para ser beatificada,
acaba se apaixonando pela professora de religião de seu filho e precisa
- em grande parte por uma série de convicções pessoais, mas também por
saber que tal intento se baseia quase que inteiramente em mentiras - enfrentar
o comitê da canonização, formado majoritariamente por membros de sua família.
Há uma série de outros pequenos incidentes que marcarão seu percurso bastante
enviesado - um suposto duelo com um tal conde Bulla, as dúvidas bastante
razoáveis de seu pequeno filho sobre religião - e que ganharão considerável
relevo no correr do filme.
O que Bellocchio de fato obtém
é menos um filme sobre a situação de um homem ateu num país como a Itália
(este seria um filme demasiado óbvio, convenhamos) e muito mais o mistério
que é a crença (no filme chamada de "coerência") deste homem. Pouco sabemos
dele além do que a trama obviamente revelará (a relação com sua mãe e
as razões da canonização, por exemplo, só são reveladas numa entrevista
com um dos bispos que terão de aprovar o procedimento), e mesmo o que
esta revela nem sempre vemos se confirmar nas atitudes confusas do desenhista.
"Coerência", diz Ernesto a seu filho, "é quando uma pessoa faz aquilo
que ela diz". Trata-se menos de uma máxima do que uma tentativa, progressivamente
mais confusa e honesta, de um homem perdido numa série de eventos que
parecem a todo o instante pedir um posicionamento não apenas dele próprio
como também das pessoas ao seu redor, pessoas estas que, num país de demolidora
maioria católica como é no caso a Itália, vão justamente de encontro à
sua "fraqueza" - como diz em dado momento do filme uma tia de Ernesto
que, mesmo sabendo que se trata de uma farsa todo o processo de canonização
da irmã, é incapaz de perceber que tem às suas mãos um homem preso a convicções
severamente diferentes das suas.
Felizmente Bellocchio não cai
na armadilha de tantos filmes recentes, como os de Sérgio Bianchi
e David Fincher por exemplo, que confundem "indignação" com "repulsa",
"desprezo". Ainda "de punhos fechados", sem dúvida, mas bastante aberto
ao mundo, o diretor nos apresenta este filme muito como um mistério sem
resolução. Ao mesmo tempo em que é um retrato de um homem engajado com
as pequenas coisas que lhe importam, o retrato de uma Itália cada vez
mais presa aos costumes arcaicos de outrora (onde se torna bastante palatável
o aparecimento de uma figura tão bizarra e ridícula como o tal Conde Bulla,
um digno representante de uma aristocracia que não consegue achar seu
lugar em tempos mais modernos), a história de um pai que quer o melhor
para seu filho, de alguém que insiste em não aceitar o título de "fracasso"
que parece ser o rótulo de toda a sua geração etc., o filme parece explorar
todas estas histórias numa série de ambiâncias e situações que parecem
muitas vezes nos encaminhar para o onírico, sem perder a qualidade transitória
e elíptica que marca não apenas o cinema de Bellocchio como também os
erráticos movimentos de Ernesto, resultando numa muita feliz apropriação
e utilização do roteiro pela realização.
É um pouco das ações deste homem
numa cidade como Roma diante da imposição de sua família em levar à frente
o processo de canonização; um pouco de pequenos detalhes do seu cotidiano
como o trabalho no computador, os contatos que tem com o filho, discussões
com o contratante de um novo trabalho e pequenos sonhos inconcretizáveis
como um eventual desaparecimento dos ídolos que fazem as delícias dos
"fiéis"; e muito da simples determinação de, até o fim, elevar uma condição
moral que lhe distancia de boa tarde das pessoas que fazem parte de seu
cotidiano o que parece interessar a Bellocchio nesta nova empreitada.
Não que Ernesto caía num vício adolescente como o do desprezo sem disfarces
por estas pessoas, como sua ex-mulher e dois de seus três irmãos: muito
pelo contrário, o personagem nos dá diversas amostras de que, em situações
diversas, são pessoas com quem prazerosamente convive. É talvez por abandonar
muito o tom de desilusão que se tornava mais e mais uma freqüência em
outros de seus filmes recentes, tom este que de maneira alguma encontrava
na abordagem psicanalítica de filmes como O Processo do Desejo
sua representação ideal, que Bellocchio seja capaz de alcançar um vigor
que aparentemente já não existia mais na sua obra. De um cineasta do qual
poucos esperavam um filme interessante, muito menos uma obra de tão impressionante
apuro formal (a fotografia de Pasquale Mari é de uma beleza ímpar), surge
este que é desde já um dos mais belos do ano.
Bruno Andrade
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