Ettore Scola e o que
só o cinema pode fazer


Nós Que Nos Amávamos Tanto

Fazia muito tempo que não ouvia essas palavras: especifico filmico. Parece que o cinema ganhou tanta autonomia que já não se preocupa com elas. Mas eis que o que o filme tem de específico, o que faz ele ser cinema, diferente de qualquer outra linguagem, ressurge de repente na minha frente em uma cena despretensiosa de Nós Que Nos Amávamos Tanto. Em um cineclube pulguento exibem Ladrões de Bicicletas. No debate que se segue ao fim da sessão inicia-se um quebra-pau a respeito do caráter revolucionário da obra. Um grupo de cidadãos reacionários briga com o personagem cinéfilo. Este quer fazer com que todos reconheçam o valor social e estético do filme que acabaram de ver enquanto aqueles o repudiam por tratar de um problema social com um posicionamento claro para a esquerda, e ainda por cima, com uma técnica que não obedece aos padrões do grande cinema de estúdio, tão bem fotografado, com cenários irreais mais bonitos. No meio, atônito com o bate-boca que aos poucos vai descambando para uma briga, o mediador do debate tenta impedir que os dois lados da contenda vão embora argumentando que ainda não haviam discutido o especifico filmico. Discute-se de tudo no cinema. Política, moral, psicanálise, menos o que faz o filme ser filme.

Nós Que Nos Amávamos Tanto tem muita citação. Nele Scola assume a sua paixão pelos clássicos que ajudaram na sua formação, principalmente o neo-realismo italiano. Mas o amor mesmo, o que inclui respeito e admiração pelo cinema não é feito somente de referência cultas. Scola ama o cinema e sabe que a prova maior de amor é trabalhar o que o cinema tem de mais específico com maestria, reconhecimento e dedicação. A linguagem cinematográfica é sagrada. É no plano, na sua organização interna, no que o quadro contém, mostra ou esconde, no movimento que a câmera faz para revelar o contíguo que mora uma parte da essência do Cinema. A montagem a completa, extraindo significações da junção desses planos, organizando-os e fazendo do Cinema algo de único, capaz de apresentar possibilidades infinitas através desse simples ato de juntar.

Decupagem

Feios, Sujos e Malvados é uma crítica social perturbadora. As favelas são mostradas com toda a sordidez possível. Famílias grandes, amontoados de pessoas, pobreza, egoísmo como a única maneira salvar o pouco que se tem, desrespeito e promiscuidade. Cinema que incomoda pela coragem que tem de mostrar crueldades sem pudor. Se há um ar de comédia, ela só surge por causa do absurdo das situações de extrema feiúra. É uma provocação pelo exagero, pela escolha de filmar justamente o que mais vai atentar contra o belo. No fundo, é cinema social do tipo que tenta revelar alguma coisa da realidade, suas injustiças, e assim levar o público a um questionamento, uma análise do que o cerca.

O que faz Feios, Sujos e Malvados não ser apenas mais um filme de protesto, como há muitos por aí, e o que não o deixa cair no perigoso fosso da crítica social vazia é que nesse caso trata-se de Cinema. Desde o início fica claro que o filme tem muito mais a oferecer do que apenas esse engajamento. Scola organiza os planos com perfeição. Aliás, esse sempre foi seu trabalho. Sabe tirar proveito de um elenco numeroso que só pode contracenar naquele espaço reduzido se a decupagem conseguir explorá-lo de maneira a fazer dele mais um ator. E são realmente muitos, agindo ao mesmo tempo e mantendo uma ordem que entrega o controle absoluto que Scola tem sobre o filme.  É o que acontece também em O Jantar e A Família.  E é o que falta nos filmes do tipo de Cronicamente Inviável, apenas para dar um exemplo, onde a preocupação com a crítica social passa longe de uma elaboração da linguagem cinematográfica, sendo ela o principal motivo para a produção do filme e ao mesmo tempo, por isso mesmo, ineficaz.

Comédia generosa

Seja qual for o tema, a história ou o personagem, a maior realização de Scola é a sua incrível capacidade de criar planos com uma carga significativa de causar inveja a qualquer cineasta pirotécnico. Buscando um humor sutil, é nisso que se baseia a graça de seus filmes. Ela aparece da montagem ágil e do proveito que Scola tira da estrutura dos seus planos. Muitas vezes tecnicamente simples eles ganham uma comicidade porque o diretor compreende muito bem os acontecimentos que contam e os seus desencadeamentos.

A burguesia é a fonte de sua comédia. Nem sempre a própria classe, mas seus valores morais. Todos são burgueses não necessariamente estereotipados, mas característicos o suficiente para que qualquer espectador se reconheça nos personagens. São personalidades minuciosamente construídas, coerentes, fruto de uma generosidade para com o ser humano. Scola não condena ninguém e nunca. Os personagens têm seus motivos, ainda que não revelados, mas não questionados. Cabe ao público fazer as perguntas internamente e colocar em jogo seus valores.  Assim como o criador demonstra dessa maneira um amor pelas suas criaturas nós também acabamos amando todo e qualquer personagem e compreendemos seu modo de ser e agir, quase que nos solidarizamos. Em uma das cenas mais engraçadas da história do cinema, em Conseguirão nossos heróis encontrar seu amigo misteriosamente desaparecido na África o burguês italiano paspalhão aparece em superclose, com óculos espelhados, parado, para logo em seguida uma lágrima aparecer detrás das lentes. A hilaridade desse plano genial leva diretamente a entender a razão dessa lágrima e o que leva o nosso burguês a se emocionar diante da grandiosidade de uma paisagem africana. Scola já nos mostrara antes quem é esse personagem e portanto essa é, depois de assim mostrada, a atitude perfeitamente esperada, por mais absurda que possa parecer anteriormente.

Isso não se faz no teatro, na pintura. Esse efeito cômico só pode ser alcançado no cinema, resultado da conjugação de atuação com decupagem. É no plano que se encontra explicação do seu funcionamento e Scola usa esse recurso como ninguém.

A pequena dose de Ettore Scola

Não dá para  destrinchar Ettore Scola em tão poucas linhas. Afinal, ele é um diretor dos mais importantes com uma vasta filmografia e uma história pessoal muito rica. Mas essa também não é a intenção do texto. Há algumas semanas aconteceu no Espaço Leblon uma pequena mostra Ettore Scola. Foram exibidos apenas seis filmes: Nós Que Nos Amávamos Tanto, Feios, Sujos e Malvados, A Família, Conseguirão nossos heróis encontrar seu amigo misteriosamente desaparecido na África?, O Jantar e Concorrência Desleal. Poucos títulos que constituíram um oásis de exibição além do prazer de poder ver no cinema obras que sempre pensei que só veria em vídeo. Mas mesmo assim, assistir a essas sessões foi um exercício de cinefilia radical. As cópias estavam muito deterioradas e emendadas. Em certas partes, nos filmes mais antigos, ficava claro que algumas passagens se perderam. Até cópias mais novas, como O jantar, apresentavam problemas de má conservação. Realmente uma pena.  Mas mesmo com cópias danificadas os filmes estavam lá representando um cinema que respeita o público levando a ele um espetáculo raro de concisão artística como há muito não se vê. Se não deu para entender a fundo Ettore Scola, pelo menos me salvou de Spielberg por seis dias.

João Mors Cabral