O Padre e a Moça e
o poder do diamante

 


Joaquim diante da câmera

Todos se lembram de um dos poderes mais notáveis do Super-homem, aquele que transformava um pedaço embrutecido de carvão em um translúcido diamante, apenas tomando o pedregulho na palma da mão e apertando, sempre sorrindo, claro. Milhares de anos de condensação geológica em apenas um gesto, quase natural.

Essa evocação pop serve para situar o impacto que produz a exibição da cópia restaurada de O Padre e a Moça. O que era um cinzento sem profundidade (sem profundidade de campo, como diria André Bazin) na velha cópia surrada que circulava na cinemateca e cineclubes, ganha um inusitado e áspero relevo; pedras, contornos, corpos, desejo, tudo parece emergir, mergulhados que estavam numa chapada e amorfa existência. Tal como a mão superpoderosa, a restauração detonou um brilho que iluminou objetos e projetou sombras, produzindo um bloco espaço-temporal de intensa dramaticidade e beleza plástica.

O impacto, certo, vale sobretudo para quem viu a cópia surrada e reviu estupefato a cópia restaurada. Todos ganharam: os atores, ou melhor, os corpos dos atores (Helena Ignez, impressionante), os figurantes e sua miséria, a brutalidade dos desejos, a rugosidade das ruas, das paredes, do chão, as nuvens, e as pedras, sobretudo, o caminho das pedras (salta aos olhos a seqüência final da fuga). Numa região marcada pela exploração do diamante, pela riqueza exaurida dos solos outrora cheios de brilho, a emergência – ou a re-emergência – dos objetos com a carga poética da dupla Drummond-Joaquim Pedro retoma o brilho do objeto numa perspectiva, se assim podemos dizer, de desvelamento, de restauração da verdade, no sentido heideggeriano.

Temos aí, portanto, um duplo movimento – a notável mise en scène do filme, em si mesma uma lapidação da realidade embrutecida de São Gonçalo das Pedras, e a restauração do negativo, uma espécie de segunda lapidação provocada, hélàs, por um absurdo descuido com as matrizes de nossa produção cinematográfica. Curiosa situação que nos aprontou a indústria cultural, fazendo com que um objeto como o filme cinematográfico seja tão vulnerável a uma depredação em um tempo histórico irrelevante. Passamos do brilho à decrepitude sem estágios intermediários, salto temporal característico das culturas dependentes.

(mas este é um filme com uma historicidade particular, bastando citar os vinte anos necessários a Joaquim Pedro para reconhecer a excelência e a importância da fotografia no resultado final, como lembrou Mário Carneiro)

Numa época em que museus despejam cinematecas, que o exemplo de O Padre e a Moça, essa pérola de filme, sirva de guia e luz para nossos sisudos e por vezes opacos administradores culturais.

João Lanari