O Padre e a Moça


O que faz um filme ser poético? Que coisa mais intrigante. O Padre e a Moça é filme poético que encerra a fase poética de Joaquim Pedro de Andrade. O que isso significa? Bem, há uma inegável mudança de tom em relação ao longa-metragem seguinte. Macunaíma (1969) exagera o que até então pouco se mostrava nos filmes do diretor: o humor, a ironia feroz, o mau gosto, o sexo. Quebra-se certo tom solene e até mesmo cerimonioso em relação à expressão pelo cinema.

Até O Padre e a Moça, Joaquim Pedro parece empreender um aprendizado sistemático da linguagem cinematográfica, mobilizando heranças diversas, sendo formado por elas e com elas formando seu próprio projeto. Não se trata de "exercitar" estilos ou escolas, mas de encontrar o perfeito entrosamento, o perfeito comprometimento dentro da proposta de cada filme.

O Mestre de Apipucos e o Poeta do Castelo (1959), curta de estréia, articula com precisão espantosa e quase obsessiva os postulados da decupagem clássica, onde a continuidade reina soberana. A primeira parte, dedicada a Gilberto Freyre, aproxima-se da linguagem do cinema mudo, deixando bem marcada a ligação entre os planos a partir de analogias, gestos, olhares que costuram as diversas atividades na rotina do sociólogo. Já os planos com Manuel Bandeira se articulam sobretudo pela continuidade das ações. São duas estratégias, ambas vinculadas à decupagem clássica, acionadas de maneira a servir os propósitos do cineasta na abordagem dos dois escritores. A continuidade, nos planos de Freyre, reforça a caricatura, a postura autoritária do senhor de engenho em meio a suas propriedades; nos planos de Bandeira, acentua o despojamento e a harmonia do poeta com seu mundo.

A decupagem clássica predomina também em Couro de Gato (1961), mas a ela vem se juntar uma profunda relação com as propostas do neo-realismo italiano e talvez ainda com maior intensidade com os desdobramentos brasileiros do neo-realismo em Rio, 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos. A abordagem social, engajada, não impede um olhar voltado para uma experiência particular, renovando esse cinema do gesto ao mesmo tempo prosaico e revelador, já afirmado em O Mestre de Apipucos e o Poeta do Castelo. À esfera doméstica e particular dos primeiros curtas contrapõe-se Garrincha, Alegria do Povo (1963), sobre o mito popular e o impacto na vida pública de um esporte capaz de mobilizar todo um país. Há um visível desencanto a percorrer todo o documentário: por que a mobilização pelo futebol e não pela mudança, pela revolução? O filme não camufla sua indignação. Pelo contrário, a transforma em linha mestra na organização das imagens. Garrincha impõe-se como filme de montagem, que rejeita a transparência do registro para deixar bem claro seu caráter de ensaio; toma posição diante do tema e constrói sua argumentação por meio de imagens e sons.

Depois disso, vem O Padre e a Moça, que Joaquim Pedro costumava definir como um "filme de negação". Tem lá sua dialética. Depois de afirmar domínio e intimidade diante das possibilidades da linguagem clássica, passa a recusar as facilidades do já conhecido. A decupagem e a montagem libertam-se mansamente da minúcia controladora dos filmes anteriores. O corte muitas vezes é suprimido pelos movimentos de câmera (panorâmicas, zooms). E até a continuidade é abalada em dois ou três momentos. O tempo – do filme, do lugar – se alonga, espelhando a imobilidade mineral das montanhas que dominam a região.

Não é uma transição fácil. A tal ponto que Joaquim Pedro transforma a própria dificuldade em tema. A cidade e os personagens parecem condenados pela dificuldade de movimento, de autonomia, de libertação ("Noventa por cento de ferro nas calçadas, / oitenta por cento de ferro nas almas", calculava Carlos Drummond de Andrade). Da geografia à moral, da economia à fé, tudo faz penar, refratário à vida.

A decadência assombra o filme como uma maldição, em meio da qual a beleza e juventude do padre e da moça tornam-se insulto, insubordinação. O filme reitera a decadência a todo momento, dela está impregnado. Assim como o filme, também o padre vai se movimentar por um cenário de ruínas, numa seqüência em que percorre velhas construções abandonadas. São imagens que repercutem outras imagens semelhantes: as ruínas por onde passam câmera e personagens em Limite; a casa incendiada n’O desafio, onde o casal encontra, entre os escombros, papéis com versos do poema "Invenção de Orfeu", de Jorge de Lima; e até mesmo (imensa surpresa!) os restos abandonados de uma construção onde Sara e Paulo Martins falam de amor e revolução, numa seqüência do copião de Terra em Transe (que está no curta Glauces, Estudo de um Rosto, de Joel Pizzini).

E a poesia em O Padre e a Moça? Para ser exata, ela já está presente desde o ponto de partida, considerando que o roteiro do filme é "sugerido" (segundo os créditos) pelo poema "O Padre, a Moça", de Drummond. E, deixando a exatidão de lado, diria que o viés poético do filme se desdobra nos estranhamentos, nas inadequações, nas lacunas. E, em particular, nos deslocamentos – tanto os literais (dos atores em cena) quanto os simbólicos (na narrativa).

O filme rebaixa o tom da narrativa e por vezes economiza em informações e emoções. Alex Viany resume bem quando fala da narrativa "quase taquigráfica" do filme. Alguns detalhes da história e dos personagens não ficam muito claros, os mecanismos psicológicos são lacunares, esgarçados. Ao mesmo tempo – e numa atitude extremamente romântica – o filme desloca muito da carga emocional para o exterior (o ambiente, as coisas), que passa a atuar como expressão visual da intimidade dos personagens e do drama que se desenvolve. São signos de morte (a vegetação ressecada, as prisões da igreja e da gruta, as ruínas, o preto da batina, a pedra), são signos de vida (a correnteza do rio, as flores no campo, o sol nos cabelos da moça, suas roupas claras, a pele). Como num poema, o filme também tem suas rimas, associações visuais recorrentes que vão compondo contrastes e relações entre preto/branco, claro/escuro, pele/pedra, deslocamento/imobilidade.

Os deslocamentos espaciais são quase um privilégio do casal protagonista (há movimentação coletiva dos moradores, no enterro do velho padre e na perseguição, mas são ambas situações de morte). Em vários momentos, incluindo a longa seqüência da fuga, a câmera se detém nesses deslocamentos: a moça cruzando a cidade, sob o olhar dos moradores; o padre andando pelas ruas e percorrendo ruínas; os dois fugindo em círculos até voltar à cidade; a perseguição que termina na gruta. O Padre e a Moça dá a ver com detalhes todo o quadro social, histórico e econômico daquela pequena cidade. No entanto, não é por conta desses dados exatos que o filme ganha envergadura. Maior relevância ganham as imagens e associações que esses dados permitem (o diamante que se encontra nas pedras, onde ninguém esperava encontrá-lo – é uma das imagens mais poderosas). As caminhadas e fugas da moça e do padre, apesar de plenamente inseridas no plano diegético, acabam por superá-lo. Reforçam a estatura a um só tempo abstrata e visceral dos protagonistas. Porque, afinal, o que move o casal é o desejo, e é a esse sentimento que padre e moça dão corpo.

Expressar-se visualmente, dar corpo a sentimentos e idéias – talvez seja esse o projeto dominante nos filmes de Joaquim Pedro até O Padre e a Moça.

Na proposta do primeiro curta, encaminhada ao Instituto Nacional do Livro, que acabou por financiá-lo, o cineasta já antecipava sua concepção de como deveria ser o filme sobre Manuel Bandeira: "a maior força expressiva do filme deve estar nas imagens [...] A principal tentativa a ser feita é a de captar no filme a personalidade espiritual de MB, provocando no espectador um desenvolvimento contínuo de emoção à medida que for sentindo evoluir e se afirmar cada vez mais no filme o clima espiritual do poeta. Nesse sentido devem funcionar todas as seqüências. Os movimentos de MB diante da câmera – entregue a seus hábitos, escrevendo, caminhando pela rua – devem acrescentar sempre mais definição ao retrato espiritual do poeta".

Força expressiva da imagem, clima espiritual, emoção. Nessa verdadeira declaração de intenções, fica de fora a palavra (e os diálogos) que a partir de Macunaíma vem para primeiro plano. Nesses primeiros tempos, importa sobretudo afirmar um cinema pela imagem. Por meio do movimento concreto na tela ir definindo retratos e climas espirituais – o evidente construindo o caminho para o transcendente. Guiando esse percurso, a emoção – contida, medida, mas poderosa. A postura irônica, de distanciamento explícito e por vezes agressivo, fica para os filmes posteriores.

Sobre um plano de O Padre e a Moça (quando a câmera acompanha o movimento do padre até ele encostar o rosto no ombro da moça), Sylvie Pierre escreve: "como é preciso confiar no cinema, em sua gramática, em suas regras, da mesma forma como o arquiteto em seu concreto e em suas pedras, para filmar cenas tão extraordinárias". Para mim, é a definição perfeita para os primeiros filmes de Joaquim Pedro. São apostas totais no cinema, ao qual todo o resto se subordina: literatura, política, futebol, revolução. Exagero? Talvez, mas às vezes só assim para falar dos filmes que amamos. E, no final de contas, não é desse amor que vem a poesia?

Luciana Araújo