Notas sobre uma aproximação
inusitada entre poesia e cinema


1. Filmar um poema

Mais do que um filme inexoravelmente narrativo (cf. Metz, Bordwell), O Padre e a Moça poderia ser definido como um filme-ensaio. O problema que eu gostaria de colocar aqui (mas não sei se conseguirei fazê-lo de forma suficientemente consistente) é de que maneira a adaptação que Joaquim Pedro de Andrade fez de um poema de Drummond, um poema entendido como narrativa, nos termos do teórico de literatura Mieke Bal1, se aproximou do não-narrativo, ou seja, não se limitou a operar apenas no nível do transplante de linguagens, de códigos, de formas discursivas, mas pretendeu oferecer ao espectador um equivalente fílmico do poema, dando-lhe a impressão de estar não apenas no mundo da apreensão de dados visuais e sonoros que possibilitam esta transferência de mídias, mas de estar também diante de uma espécie de poema fílmico, onde a ação, o conflito e o fato coexistem com a tese, o conceito, a idéia.

O Padre e a Moça, neste sentido, poderia ser definido também, à francesa, como um film d’éssai, no sentido em que sua apropriação do poema não é unicamente regida pelo paradigma da tellability (narratividade). Mas isto não se dá no plano da oralidade (como, de certa forma, poderiam ser pensados os filmes de ensaio de Glauber Rocha e Jean-Luc Godard). Joaquim Pedro não introduz neste (e talvez em todos os seus filmes) uma fala de autor para expor idéias, para tecer comentários. Os traços característicos de seu estilo, como o despojamento formal, a precisão descritiva, a obsessão na construção rigorosa da composição e do quadro, entre outras marcas de autor que poderiam ser apontadas, são bem manifestos no filme.

Mas o que distingue a adaptação de Joaquim Pedro, o que a singulariza? Creio que a sua leitura do poema de Drummond não visou extrair dele um plot e seqüenciar (decupar) uma sucessão de ações, num trajeto de encontro ao modo clássico de narrar. Joaquim Pedro metonimizou o poema, selecionou elementos, situações e personagens e os articulou num eixo que não é exclusivamente narrativo: sua busca de equivalência visual e sonora com o poema afastou o filme dos tradicionais cânones de representação que o cinema, clássico ou moderno, sempre procurou ou nunca conseguiu deixar de preservar.

2. Da adaptação

Da leitura que Joaquim Pedro fez do poema, dois elementos foram quase integralmente preservados: as personagens e o desfecho meio místico, meio mítico (ou simbólico). Além disto, o imaginário geográfico de Drummond está presente no filme com absoluta fidelidade (as sutilezas e peculiaridades da mineiridade). Parece-me também que Joaquim Pedro se manteve rigorosamente fiel ao tema do poema – a relação amorosa inexorável e obsessiva entre um padre e uma jovem moça numa cidade interiorana, e seu sentido popular e ao mesmo tempo universal de transgressão a uma lei divina e a um dogma eclesiástico. O ponto de vista, o foco adotado por Drummond e respeitado por Joaquim Pedro se concentra no modo como as comunidades do interior brasileiro forjaram uma interpretação e atribuíram um sentido para esta transgressão, e como ao mesmo tempo assimilaram e mantiveram o acato a este interdito. Mas Joaquim Pedro promoveu pequenas mudanças, sutilizou um pouco este tema. No poema, logo no início, sabe-se que é o padre que rapta a moça, que a seduz, que a furta; no filme, o padre é o seduzido, embora, o tempo todo, por uma projeção mental (um delírio, uma alucinação) ou uma antecipação (a inserção de um plano não-realista que os teóricos de cinema batizaram de flash-forward), obstine em sua fidelidade vocacional. A moça, no poema, grudou-se ao padre, virou sua sombra; mas a reciprocidade existe desde o início, ao contrário do que vemos no filme, onde o padre, dividido ao extremo, acaba sempre mais inclinado para o repúdio, o recalque, a expiação.

O tema do poema de Drummond permitiu a Joaquim Pedro descrever, em tom marcadamente documental bem ao seu feitio, o estilo de vida e certas peculiaridades políticas, sociais e religiosas do interior brasileiro. Esta fidelidade quase antropológica à vida e aos costumes rurais não impede que a narrativa adquira um tom vagamente irreal e mesmo mítico. O Padre e a Moça capta a indistinção, a sobreposição e a fusão entre os planos real e imaginário (ou sobrenatural, divino e cristão) que caracterizam a religiosidade popular brasileira - o eterno conflito entre o sagrado e o profano, o divino e o humano -, expresso emblematicamente no atormentado personagem do Padre, interpretado com rara empatia e vigor por Paulo José.

3. Do formalismo de Joaquim Pedro

O rebuscamento formal de O Padre e a Moça confirma a personalidade singular de Joaquim Pedro no caldo de estilos, idéias e paradigmas de linguagem que caracterizou o Cinema Novo. A composição dos planos aparentemente obedece a princípios realistas básicos, mas sua extrema precisão, seu desenho lógico muito rigoroso se afastem do relativo espontaneísmo libertário que muitos filmes do movimento adotaram como estilema (constante estilística). O uso rigoroso da banda sonora (música de fundo ou incidental, sonoplastia realística, etc.), adotado por Joaquim Pedro ou provocado por peculiaridades de produção, é prática infreqüente na época (acho que o é em qualquer época) e acaba contribuindo para uma fluidez maior da narrativa. É preciso reconhecer que esta fluidez deveu muito à montagem de Eduardo Escorel.

A interpretação de Paulo José e Helena Ignez concorre também para a consistência deste estilo despojado mas rigoroso. Paulo reveste o personagem do Padre de uma densidade dramática bastante incomum, a meio caminho entre a incorporação de um Eu fictício segundo a escola hegemônica de interpretação dramática (stanislavskiana) e a consciência política de si do anti-ilusionismo desconstrutivo da influente escola brechtiana. A estranha e perturbadora personagem de Helena Ignez, mesmo sopesando alguns problemas de empostação de voz não-intencionais2 que desequilibram a sintonia fina que caracterizou o trabalho de Joaquim Pedro com os atores, também deve ser ressaltada, pois evidencia o domínio e o controle de Joaquim sobre o processo de caracterização. Se a voz hesita, a atuação física e o trabalho de olhar e gesto de Helena despontam, transformando a pobre moça num misto de anjo e demônio, na encarnação do arquétipo de mulher atraída enigmaticamente pela maçã proibida, pelo desafio do interdito, pela transgressão à norma.

4. Singularidades de O Padre e a Moça

O Padre e a Moça é um dos mais vigorosos e mais difíceis filmes de Joaquim Pedro de Andrade, um dos grandes filmes brasileiros que ainda não mereceram um estudo que dê conta de sua forma e sua linguagem intensamente originais e sofisticadas. Uma confrontação muito linear, muito literal com o poema de Drummond não lançaria novos e radiantes fachos luminosos sobre o filme, mas de qualquer forma é preciso traçar o mapa das diferenças, das equivalências, o jogo de apropriações e abandonos que constituem a metadiscursividade que reveste toda adaptação de uma forma narrativa para o interior de outra, do código visível (a escrita) do poema para o código eclético (imagem, som, montagem, ambientação cenográfica, caracterização, etc.) do filme. Este exercício, no bojo de uma análise que articule investigação genética, pesquisa histórica, exame do processo de construção com a análise de estilo, ainda pouco praticada entre nós, poderia acrescentar novas hipóteses de interpretação a respeito do filme. Mesmo que não pudessem dar conta, para seguir Jacques Aumont e Michel Marie, dos sentidos possíveis de um filme como O Padre e a Moça, este trabalho poderia eliminar a desconfortável sensação, que por exemplo eu sempre senti, de que estamos no meio não exatamente de um excesso de interpretação, uma overdose de leituras e prismas analíticos a que certos filmes brasileiros são submetidos (Vidas Secas, Terra em Transe, Deus e o Diabo na Terra do Sol), mas de uma escassez, de uma carência incompreensível de análises mais rigorosas.

Lécio Augusto Ramos


1. Segundo Bal, uma narrativa deve conter ao mesmo tempo um ator e um narrador; ela também deve conter três níveis distintos, que consistem em texto, história e fábula; e seu "conteúdo" deve ser "uma série de eventos conectados produzidos ou experimentados pelos atores" (citado por MANOVICH, Lev. Entrevista concedida por a Inna Razumova, com a participação de Brett Stalbaum, para a revista eletrônica Switch, acesso em setembro de 2001.)

2. Em uma de suas primeiras cenas, quando ela conversa com seu protetor e amante, seu tom de voz, frágil e com certo acento irônico, não me parece expressar convincentemente inquietação e medo, estados de espírito sugeridos pelo desenho da cena e pela construção do personagem pelo diretor, mas antes indiferença e apatia.