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Curiosos
são os caminhos que fazem com que determinados filmes, independente de
seus méritos e qualidades, permaneçam pouco vistos e pouco conhecidos
ao longo do tempo. O mais comum é que estes filmes sejam produções de
pequeno porte, dirigidas por cineastas iniciantes ou obscuros ou então
que não receberam um tratamento adequado ou o devido reconhecimento quando
de seu lançamento. Lenny, no entanto, não se enquadra em nenhuma
dessas hipóteses. É uma produção de primeira linha, dirigida por um cineasta
então no auge de sua capacidade criativa e que ainda por cima foi candidata
ao Oscar em todas as principais categorias e recebeu um prêmio em Cannes
para melhor atriz (Valerie Perrine). Então,
tratemos de imaginar as razões pelas quais as cópias de Lenny permanecem juntando poeira nas locadoras (isto quando o filme
é encontrado) ou por que raras são suas exibições pelas TVs abertas ou
a cabo. Uma destas razões seria o fato de ser um trabalho atípico na carreira
do diretor (que por sinal conta apenas com cinco títulos), uma figura
sempre associada aos musicais. Foi realizado entre duas incontestáveis
obras primas, Cabaret (1972) e All that jazz (1979) nas quais temas nebulosos (no caso, a ascenção
do nazismo e a morte) receberam um traramento entrecortado por números
musicais e marcado por uma utilização criativa da cor. Lenny, porém, é um drama biográfico sobre o revolucionário humorista
americano Lenny Bruce e que ainda por cima foi fotografado em preto e
branco. Lembremos,
também, que Lenny foi lançado
em 1974, um ano que teve O poderoso
chefão 2, A conversação, Chinatown, Uma mulher sob influência, Jovem Frankenstein
e Terra de ninguém. É natural
que no meio de uma concorrência tão pesada alguém termine prejudicado.
Mas é também bastante injusto. A princípio
sua estrutura básica parece sugerir uma biografia convencional, ou seja,
acompanha vida e obra de um personagem que quebrou barreiras, retratando
os sacrifícios do início da carreira, um casamento tumultuado, a chegada
do sucesso e da fortuna, o abuso de drogas, a decadência, problemas judiciários
e a morte trágica. Este convencionalismo, contudo, é quebrado de diversas
formas, a começar pela própria personalidade de Lenny Bruce. Este era
um humorista que mais do que propriamente fazer rir, estava mais interessado
em se utilizar do humor como forma de provocação ou denúncia de hipocrisias.
Isto fica bem claro logo nas primeiras sequências, nas quais vemos um
monólogo de Bruce falando sobre o descaso quanto à prevenção de doenças
venéreas. Fosse
desenvolve seu filme em três planos narrativos distintos: os episódios
da vida de Bruce, depoimentos dados por sua esposa Holly, sua mãe e seu
empresário, além da recriação de suas apresentações. Em todos eles consegue
criar um universo peculiar que retrata de forma brilhante o universo do
artista. As boates vagabundas e esfumaçadas do início da carreira de Bruce
e de Holly (que era uma dançarina de strip-tease),
repletas de jazz e drogas, fazem
um contraponto marcante à caretice dos tribunais com os quais ele terá
que se confrontar num momento posterior de sua carreira, devido às sucessivas
prisões por posse de drogas e principalmente pela utilização pioneira
de uma linguagem chula dentro do tacanho universo do show-bizz
norte-americano. Além disso, a encenação dos monólogos de Lenny Bruce
criam no espectador uma intimidade com o personagem através de suas palavras
de uma forma bastante semelhante àquela desenvolvida recentemente por
Manoel de Oliveira em Palavra e
Utopia, guardando-se naturalmente as devidas diferenças entre os filmes
e os personagens. Contribui
sobremaneira para acentuar as intenções do diretor a fotografia não menos
que brilhante de Bruce Surtees, numa das melhores utilizações do preto
e branco desde que este fora relegado a um segundo plano, com a hegemonia
ditatorial do uso da cor no cinema. E certamente Lenny
não teria a mesma qualidade sem as atuações dos protagonistas. O fato
de termos uma grande atuação de Dustin Hoffman no papel título não surpreende
a ninguém, mas vale destacar que ele aqui faz aquele que talvez seja seu
trabalho mais porreta. Surpresa, sim, é o fato de termos uma atuação justamente
premiada de Valerie Perrine como Holly. Quem juntar o nome à pessoa, se
lembrará de uma peituda que fez carreira nos anos 70 em papéis de “loraburra”
(vide Superman, o filme) e que em Lenny, aos 31 anos e já com cara de puta
velha, cria um retrato amargo e sem condescendência de uma drogada ingênua. Além
de tudo, vale ressaltar que Lenny
é um filme que antecipa uma série de coisas. Principalmente dentro da
carreira de Fosse, para quem o esforço para a finalização deste trabalho,
alternado com o que fizera para a encenação do musical Chicago,
acabaram por contribuir para que o autor fosse vítima de um infarto. E
quem assistiu All that jazz viu este momento retrarado
de forma brilhante, onde Joe Gideon (Roy Scheider), o alter-ego de Fosse trabalha inclusive na edição de um filme sobre
um humorista. Lenny antecipa
também o preto e branco realista de Touro
indomável e antecipa o clima dos filmes mais recentes de Milos Forman,
com a utilização de uma figura polêmica como marco da luta pela liberdade
de expressão (em O povo contra Larry
Flint) ou o retrato biográfico de um comediante revolucionário (O mundo de Andy). Além disso, antecipa a utilização da narrativa pontuada
por monólogos cômicos no seriado de TV Seinfeld. Por tudo isso e mais um pouco, este não merecia ser um filme
esquecido. Para
finalizar, queremos lembrar que, para a ofuscada trajetória de Lenny no Brasil, contribuiu o fato da fita
haver sido proibida durante os anos de ditadura militar. Finalmente liberada
no período da abertura (1979/80), não despertou tanta atenção em seu lançamento
tardio quanto fitas mais conhecidas e/ou polêmicas como O último tango em Paris, Estado de sítio, Z ou Laranja mecânica. E
para complicar, ainda estreou quase na mesma época que All that jazz, ficando com o desagradável estigma de filme menor.
Coisas da vida e do cinema.
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