Glauber e a fala do Cinema Novo


Joaquim Pedro indica a Mário Carneiro o que quer da cena
(Esse depoimento a seguir foi originalmente
publicado no "Jornal do Brasil" em 14/04/1966, e incluído
em Revolução do Cinema Novo, ed. Alhambra/Embrafilme,
1981, com alguns cortes. O texto transcrito aqui é o da primeira
publicação. L.A.R.M.)
- Com erros e acertos, porque isso não
importa num fenômeno histórico-cultural de longo alcance,
o cinema novo já pode manter um diálogo com o seu público,
mesmo que seja um diálogo de gagos - com essa frase o diretor Glauber
Rocha comentou o convite que foi feito ao filme O Padre e a Moça,
de Joaquim Pedro de Andrade, para participar do Festival de Berlim, depois
de receber aqui no Brasil algumas críticas desfavoráveis.
- O segundo capítulo da biografia
crítica de O Padre e a Moça será em Berlim,
além da garantia que se já tem, no momento, de sua colocação
comercial em mercados da Alemanha e da França - afirmou ainda o
diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Diz ainda Glauber Rocha:
- Quantas hipóteses pode gerar um
filme? Nunca ouvi tantas como a respeito de O Padre e a Moça.
A crítica não criou sobre este filme nenhuma análise
em profundidade. Ouvi, até agora, hipóteses: "um filme
que é assim mas poderia ser assim". Aqui começa a primeira
fase da amarga biografia crítica do filme de Joaquim Pedro. Aqui
no Rio de Janeiro onde, em sessão noturna especial, O Padre
e a Moça foi sacrificado à pressa de espectadores adormecidos,
críticos de última hora munidos de um direito máximo:
o de ser convidado. O desastre de uma má observação
determinou um outro maior: divulgou-se a impossibilidade comercial de
um filme que, por isto mesmo, foi lançado com este complexo, já
tendo sugestionado produtores e exibidores. Somente uma positiva reação
de público, que não complementou o anúncio dos azares,
veio dar ao filme maldito a distância suficiente. Porque agora,
embora ainda ferido e com lenta recuperação, O Padre
e a Moça não pertence mais aos críticos, observadores,
teóricos e diletantes, mas sim ao público.
- Falei de hipóteses, vamos à
crítica deste filme, não baseado no que ele poderia ser
mas no que ele é. Por que, subitamente, um filme começa
a ser julgado nas áreas do condicional? Neste caso, por dois motivos:
pelas sugestões mais primárias do tema; pela necessidade
epidérmica do escândalo que, dia a dia cada vez mais, o intelectual
subdesenvolvido vai libertando, como válvula ideal para seu acúmulo
de frustrações. O Padre e a Moça, diante de
uma platéia deste tipo, é o entulho nesta dramática
válvula. O cinema, nos dias de hoje, fundamenta-se numa dialética
da percepção e todo filme só pode ser examinado
a partir destas relações com o espectador. Digo das relações
e não da aceitação ou negação
do espectador. O condicionamento industrial das massas a fenômenos
tipo James Bond e etc. é um dado que não pode ser inteligentemente
(ou honestamente) usado contra o chamado filme de arte.
Em primeira instância, antes de se
discutir a significação ideológica ou estética
deste ou daquele filme de arte, urge considerar gravemente que um filme
de autor, na medida que se opõe ao industrialismo da mentira
e da moral rotulada, é um filme de oposição, um filme
anticonformista, um filme que desperta, por si mesmo, a polêmica
no seio da indústria estabelecida.
- Quando intelectuais atacam o cinema de
autor dominados por uma ira a primeira vez inexplicável, somos
levados a pensar que o cinema de autor é realmente mais revolucionário
ainda: é uma vanguarda mais avançada no tempo, arte
do futuro, abertura ainda não percebida principalmente pelos artistas
e intelectuais que exercitam as belas-letras ou belas-artes, todas elas,
sem exceção, superadas para o mundo moderno. Este conflito,
num país subdesenvolvido, pode também parecer ridículo
ou alienado. Explico: não tem tamanho sentido em nenhum outro lugar
do mundo.
Somente nos países subdesenvolvidos
o novo cinema, isto é, o cinema de autor (o cinema como
conhecimento e não divertimento; o cinema como linguagem e não
como espetáculo; o cinema como método e não como
ilustração; o cinema como revelação e não
como descrição do óbvio etc...) pode, deserdado de
tradições industriais e culturais, mergulhar rumo ao desconhecido,
exercitando a sua impotência até ganhar estatura de linguagem
que pode, redescobrindo o mundo, sugerir reformulações.
- Voltemos pois às relações
do cinema com o público. Os mais apressados e irados críticos
do cinema novo revelam um extremo primarismo quando dizem que "nosso
público não quer nem precisa deste tipo de filme".
Em primeiro lugar o público brasileiro quer apenas filmes americanos,
colorscope, todos sabemos. Quanto ao que o público precisa à
medida que se fornece a ele, como no caso das drogas, as primeiras
doses de um fenômeno.
Vamos, pois, dissecar um pouco este ponto.
O que havia para o público antes do cinema novo? A chanchada, a
pornografia, o musicanalhismo etc. O público ia ver estes filmes
(como ainda vai), se divertia, mas na saída revelava desgosto diante
desta incapacidade ou desleixo da produção nacional. Quando
veio o cinema novo, isto é, quando vieram estes já tão
badalados filmes como Os Cafajestes, O Pagador, O Assalto
ao Trem..., Porto das Caixas, Ganga Zumba, Garrincha,
Vidas Secas, Deus e o Diabo, São Paulo S.A.
etc. - o público reagiu. Reagiu, ferido, como reage um desprevenido
que recebe uma injeção experimental. Reagiu: uns bateram
palmas, outros choraram, outros detestaram, outros rasgaram poltronas
no cinema. Mas um fato inegável: mudou a face do cinema no Brasil.
É lamentável que quatro anos depois, após tantos
acontecimentos significativos, eu tenha de outra vez explicar este fato.
"O que tínhamos antes do cinema
novo?" Hoje podemos manter um diálogo com nosso público,
mesmo que seja um diálogo de gagos; mas o fato é que o mantemos;
e tanto o mantemos, eis os fatos, é que continuamos a produzir;
e se continuamos a produzir é porque, com tostões esparsos,
as bilheterias se capacitam a fomentar o desenvolvimento deste tipo de
cinema. Logo, o público não é tão insensível
como dizem os teóricos e intelectuais à margem; o público
pode, também, como pessoas que sentem e pensam, participar desta
dialética da percepção; pode pensar um pouco e, como
no caso das drogas, se ir viciando aos poucos neste novo tipo de cinema
que, nos dias de amanhã, será no Brasil o cinema normal,
por execelência, reflexo e discurso.
- Torna-se quase um vício discursar
sobre o cinema novo toda vez que se necessita fazer a crítica de
um filme do CN. Eis outro desdobramento: a crítica do filme em
si é um segundo estágio. O que não se pode é
negar todo um movimento a partir do fracasso ou da incompreensão
de um filme. E, o mais grave, quando a incompreensão determina
o fracasso: o pseudofracasso que foi atribuído ao filme de Joaquim
Pedro pelo simples sadismo inconseqüente de anunciar o fracasso.
O Padre e a Moça é um
desafio à sensibilidade e à inteligência: mas é,
como disse antes, o entulho na válvula da intolerância. Os
diletantes que formam o júri do cinema novo (as platéias
que acorrem nas premières para dar pareceres apressados)
estabeleceram, baseados em experiências regionais, os princípios
sagrados da arte popular brasileira; por outro lado, a crítica
purista, baseada em experiências alienadas de nossa cultura, erigiu
modelos estéticos para a mesma arte. Na convergência teórica,
no desepero dos conceitos, na intolerância gerada pela angústia,
na agressão gerada pela impotência - e por baixo de tudo
isto um muito brasileiro amor e boa vontade - O Padre e a Moça
pagou o tributo que antes já tinham pago Porto das Caixas
e A Falecida.
- No caso de A Falecida, por exemplo,
foi muito engraçado: depois de ter sido convidado para Veneza (depois
de ter sido vetado pela Comissão do Itamarati), depois de ter ganho
um dos grandes prêmios do FIF, depois de ter recebido louvores internacionais,
ninguém disse nada. Os inquisidores que jogaram Hirschman na fogueira
se calaram. Depois, paralelo ao caso de O Padre e a Moça,
está acontecendo o caso de O Desafio. O filme foi atacado
sem tréguas pela esquerda e pela direita: todo mundo atacou um
filme cujo maior defeito é o de não ter feito a menor
concessão. O enfoque crítico para O Desafio deveria
ser completamente outro. Antes dos seus defeitos artesanais, que não
são tantos, se levarmos em conta a modernidade do estilo de Paulo
César Saraceni, o filme abre uma discussão nunca antes aberta
com tanta coragem e liberdade por nenhuma outra obra de arte brasileira.
Num momento de violenta crise política
surge um intelectual discutindo problemas de consciência política.
Num momento em que a falta de consciência gerou a crise política
esta discussão sobre a consciência é repudiada. Quem
nega O Desafio, por exemplo, nega com raiva e com medo do que está
negando.
Numa conjuntura subdesenvolvida em crise
um filme como O Desafio é um sintoma, um músculo
a ser exercitado. Mas não: já condenado ao fracasso com
a mesma intolerância que seria condenado à proibição
este filme traz, na sua biografia de marginalização, o contraditório
sinal: com ele foi mais tolerante a censura do que a própeia platéia
à qual foi destinado.
Se Paulo César Saraceni fez um esforço
para falar, nós precisamos fazer um esforço para responder.
Porque, e aqui repito, o cinema novo não é uma escola acabada,
é um movimento que se faz, se processa, se desenvolve à
medida que se realiza. Muito mais fácil seria dizer as coisas
de O Desafio na linguagem habitual de um cinema viciado. Estas
coisas seriam contudo menos graves, menos polêmicas por ser mais
digestivas; para dizer coisas novas precisamos de uma linguagem nova e
até mesmo complexa. A tal simplicidade, às vezes, é
apenas um disfarçado recurso da mediocridade, da pobreza de imaginação,
do mau gosto, do primarismo etc.
- Voltando ao O Padre e a Moça
eu diria que sobre este filme o escândalo foi mais absurdo ainda:
disseram que se tratava de um filme frustrado. Felizmente não o
vi em sessões prévias e por isto não pude participar
das primeiras discussões. Vi-o com um público atento e tenso
num dos cinemas de bairro. A minha impressão, contra a maioria,
é de que se trata de uma obra-prima, a mais bem acabada já
feita no cinema brasileiro, a mais pessoal e madura, superior em muitas
escalas a Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol,
considerados os melhores filmes deste movimento. O Padre e a Moça
encerra todas as ligações culturais com o meio, todas aquelas
exigidas para que uma obra de arte seja fundamentada. Para afirmar isto,
preciso antes afirmar com mais responsabilidade: somente o público
poderá julgar O Padre e a Moça munido da inocência;
nenhum crítico ou intelectual, ninguém de uma platéia
de elite poderá julgá-lo se não estiver munido
das mesmas informações de Joaquim Pedro: da "cultura
mineira", do drumonianismo que hoje é um dado, do cinema
como estrutura de linguagem, do cinema como expressão cultural.
Joaquim Pedro, numa linha que o desloca para o time dos grandes cineastas
- Dreyer, Bresson, Resnais, Bergman - ou seja dos grandes intimistas,
elabora na mise-en-scène, no estilo, o seu ritmo e sentido
poético: propõe a reflexão a partir do seu clima,
lança abertamente, sem recursos e sem filigranas, um mundo transfigurado
à análise e à contemplação: em última
instância à experiência estética, tão
rara no Brasil, a não ser no próprio Drummond ou em Cornélio
Pena, afins ao gênero e aos quais Joaquim se equipara.
Medíocre seria nossa arte, mais medíocre
do que é, se tudo aqui fosse apenas epopéias; se toda nossa
música fosse apenas Villa-Lobos ou se Villa-Lobos excluísse
Lamartine Babo - não poderíamos viver de exclusividades
nem de exceções; temos de viver da fecunda complexidade
das experiências porque somente assim poderemos desvendar o nosso
brasileiro mistério: não será pois de Vidas Secas
ou de Deus e o Diabo que terá de viver o cinema brasileiro,
exemplos invocados como socorro pelos críticos e observadores para
apressadamente, pela comparação, anular filmes como O
Desafio e O Padre e a Moça, tão encarregados,
como os outros, de elastecer a contribuição cinematográfica
brasileira. E no caso de O Padre e a Moça, os silêncios
que se opõem aos gritos de Deus e o Diabo são tão
fortes como as dramáticas negativas que certos fatos sociais e
humanos nos propõem. Esquivando-se do escândalo, Joaquim
Pedro retirou dos trilhos o carro do "poderia ser"; driblando
um tema digno do Buñuel para um ascetismo próximo a Robert
Bresson, Joaquim Pedro revigorou o tema pelas alegorias que não
disse; e sua arte do não se fez pois arte do sim; o seu
silêncio é o seu grito; a música de câmara tem
o mesmo valor de sinfonia; Antônio das Mortes nunca se poderia desencadear
em Diamantina assim como os silêncios de Diamantina nunca poderiam
povoar Sodoma. Se formos negar a liturgia estilística de O Padre
e a Moça, rasguemos a obra de Drummond (da qual Joaquim se
aproxima não pelo tema mas pelo estilo), queimemos a obra de Cornélio
Pena (da qual Joaquim se aproxima pela atmosfera itabirana), joguemos
no mar todos os grandes sonetos da literatura luso-brasileira, quebremos
as cordas dos quartetos, destruamos as capelas coloniais do nosso passado:
em suma, neguemos uma manifestação viva de nossa alma para
negar a validade artística de O Padre e a Moça.
Diante de um filme como este, feito com tamanha
humildade e segurança, uma grandeza artística que nasce
desta humildade, - impõe-se o ato de revê-lo e repensá-lo:
ali a tristeza brasileira, o esquecimento dos horizontes frustrados, a
impotência dos ciclos precocemente destruídos, tudo criado
não pelo discurso moralizante mas pela dialética do homem
com o décor: aqui, movimentando dois excelentes atores contra
o testemunho histórico da decadência (a cidade e as serras),
Joaquim Pedro aciona um canto livre do amor, um amor que se faz da tortura
e da impotência, da negação e do silêncio, um
amor do não que se afirma pela morte: pois é não,
para uma moral de tal sociedade, o amor da moça pelo padre, da
moça que para escapar arrisca a fuga pelo caminho mais proibido,
o amor do padre. Ciclo trágico, fio simples, de uma exemplar clareza
psicológica semelhante aos contos mais puros do nosso folclore,
O Padre e a Moça soa como uma sucessão de quadrinhas,
romance cantado, reescrevendo Drummond, imitação de Drummond,
exercício de estilo da alma. Desalienado, porque ancorado
em nossas tradições, tão brasileiro que soa alienado
aos olhos e ouvidos daqueles que, redescobrindo os estereótipos
a cada momento, pensam ter o caminho seguro da verdade.
- O que consagra O Padre e a Moça
(e será consagrado cada vez mais, quanto mais se distancie deste
tempo confuso de hoje) é justamente sua moderna classicidade: seu
ritmo tenso, seus delicados golpes de amor, sua personalidade artística.
Porque Joaquim Pedro de Andrade, afirmando seu estilo e negando as teorias
que a respeito do seu estilo até mesmo seus amigos mais íntimos
fizeram, marca o difícil ponto da autoria cinematográfica.
Escolhendo o pior caminho chega ao ponto mágico da criação.
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