Entrevista com Mário Carneiro (1ª parte)


Mário Carneiro e Joaquim Pedro se instalam para filmar Garrincha

Como foi sua formação, antes de fazer cinema?

Mário: Bom, eu acho que O Padre E a Moça foi um momento até de um certo amadurecimento de um começo que foi muito... Quer dizer, pra mim era uma coisa um pouco assim amadorística, eu sempre fiz cinema de amador, desde ‘54, que eu ganhei uma camerazinha, uma Paillard-Bolex, fiz arquitetura, pintura, gravura, minha formação era muito mais de artista plástico, embora fosse a cineclube, cinema todo dia... Eu tinha, quer dizer, gostava muito de cinema, mas a minha vocação primeira era ser gravador, pintor, cinema me parecia uma coisa meio distante. Até que, quando eu fiz 23 anos, minha irmã viu uma camerazinha lá e pediu para o meu pai me dar de presente e disse: "Mário vai fazer é isso aí". Aí papai comprou uma Paillard-Bolex , pagando em várias vezes, custava caro, mil e tantos dólares. Com três objetivas, e tal... E a partir daí, eu comecei a fazer filmes de amador mesmo, filmezinhos caseiros, depois comecei a me interessar já pela linguagem... Li aquele manual da Bolex, que já é um livrão. Aí comecei a estudar, comprar uma monte de revistas de amador, tinha uma chamada Cinéma Pratique, que era muito boa, uma revistinha francesa ótima que dava trucagem, mostrava como fazer. E comecei a fazer uns filmezinhos, assim, despretensiosos até certo ponto. E depois eu já tava querendo fazer um filminho que tivesse começo, meio e fim. Peguei uma boneca, estava lá na Suíça, tratando da minha saúde, estava meio mal, de ‘53 pra ‘54, aí fiz meu primeiro filmezinho de amador, todo montadinho e tal. E aí Vinícius de Moraes viu esse filme e disse: "Oh, Mariozinho, tudo bem, você pode gostar muito de pintura, de gravura, dessas coisas todas, mas o que eu acho que você vai fazer é isso aí". Esse filminho, quando eu voltei aqui pro Brasil, mostrei pra Joaquim, mostrei pra Leon, pra Paulo César , sobretudo Paulo César ficou muito impressionado. Depois mostrei mais uns filminhos de amador, aí eles ficavam que um achava que era melhor o outro filme, tinha uns assim neo-realistas, tinha outros que eram assim... meio que nem o da boneca, tinha cenas assim surrealistas, tinha uns planos da boneca dentro d’água, boiando, era um filme assim formalista... Eu descobri depois que tinha uma influência do Limite, porque era todo passado na água, era um barquinho com uma boneca. E o barquinho descia as águas, e a boneca ia descendo e eu ia mostrando as visões que ela poderia estar tendo, das águas congeladas, tinha uns túneis de água que ela atravessava, era um filme todo com a visão interna de uma boneca, uma doideira completa... Mas, enfim... E acabava com uma bota de um soldado, ele pegava ela da água e dos olhos dela caía uma cascata de água. Meu pai até disse: "Mas que final mais triste"... Bom, o fato que é esse o primeiro filme que me marcou. Na verdade, esse filme ficou parecendo um pouco Cinema Novo, ele já era um pouco Cinema Novo, não sei o quê que tinha, né?... Eu acho até que eu achei ele de novo aí. Depois, quando eu voltei para o Brasil, comecei a fazer arquitetura, essas coisas... E, depois, aí Paulo César me convidou pra fazer um filme sobre Osvaldo Goeldi, o gravador. Mas aí não deu certo. E aí Dona Heloísa convidou a gente pra fazer um filme sobre Arraial do Cabo. Aí pintou Arraial do Cabo, e foi o primeiro filme, assim, profissional. Tinha uma câmera 35mm com Sérgio Montanha, era o dono da câmera, e Joaquim era sócio do Sérgio Montanha. E essa câmera tinha sido comprada do Fellini, era uma câmera super profissional. Uma Camerflex com ótica Cook, umas lentes maravilhosas. Tinha que limpar aquilo todo dia, a lente, por causa do mar, maresia, essas coisas todas... Mas eu não tive medo nenhum, quando eu peguei essa câmera eu achei que estava realmente que eu estava andando num carro de alto luxo, tinha andando de Volkswagen até então... Eu tinha começado a filmar com uma Paillard, e essa com correções Paralax, junto com foco, era tudo automático, reflexos maravilhosos, uma sopa... E aí aprendi muita coisa com o Montanha, peguei os filtros, ele tinha uma boa coleção de filtros, uns filtros laranjas e tal... E de cara logo a gente pegou cinco prêmios internacionais com esse filme, e aí a minha vida mudou completamente. Eu disse: "Agora eu tou lascado", todo mundo dizendo: "ah, porque Arraial, porque esse filme...". Pouco depois Paulo César foi fazer Porto das Caixas, foi o primeiro longa-metragem que eu fiz . E Porto das Caixas foi... Confirmou um pouco essa coisa um pouco maldita, mas visualmente considerada bastante interessante... Uma pena que esse filme não seja um pouco ... Tinha aquele... o Arne Sucksdorff, quando me encontrava, ele me dizia: "Mário, why is all slightly flood?" , porque eu mesmo fazia o foco, então às vezes saía de foco, aí ele tinha umas coisas assim... Aí o Ruy Guerra dizia que o filme acabava com uma névoa, que parecia filme inglês, então me deram prêmio de fotografia lá na Bahia por causa disso... Enfim, era meu primeiro filme, eu não estava esperando nada, mas aí foi uma onda assim, ja se tinha uma visão do Cinema Novo, o pessoal começou a marcar esse filme. E esse filme confirmou também algumas qualidades que eu tinha de olhar, essa coisa do olho erudito, né? E aí Joaquim Pedro já me chamou depois pra fazer Couro de Gato, já foi nos morros aqui do Rio... Acho que Couro de Gato foi antes até, foi antes de Porto das Caixas. Couro de Gato foi logo depois de Arraial do Cabo. A gente vendeu a câmera, foi um filme antropofágico, porque a câmera do Sérgio Montanha, que era maravilhosa, foi vendida pra ter grana pra fazer o filme. E aí foi comprada uma Arrizinha pequena, uma Arriflex . Sérgio Montanha ficou desesperado: "Mas Joaquim, vendeu minha câmera pra ter dinheiro pra fazer o filme!". Eu botei 500 dólares no filme que tinha recebido de um trabalho... Todo mundo que entrava pagava pra subir o morro e levar uma surra de sol danado, mas o resultado foi muito bom. E aí depois eu me casei e fui fazer análise. Análise pra mim sempre foi muito importante, porque eu acabei a análise na hora que eu fui fazer essa filmagem do O Padre E A Moça, eu considerei que já não dava mais pra continuar fazendo análise, porque era tão caro que eu ia ter que mandar dinheiro pra pagar o analista. Eu disse então: "está encerrada a análise". Eram cinco anos já que eu estava fazendo análise e foi fundamental porque eu aí descobri que a análise começa de fato quando você larga, você tem coragem de largar o analista mesmoe vai ao mundo, vai à luta, aí você começa a sentir a voz do analista aparecer nos momentos em que vêm aqueles medos, aquelas inseguranças... Isso era muito importante pra mim porque eu considerei realmente a análise ali encerrada. Não definitivamente, talvez eu possa vir a fazer. Mas naquele ciclo, acho que foi. E aí fomos lá pra essa aventura de fazer O Padre e a Moça. Eu já tinha feito antes Garrincha com Joaquim Pedro, já tinha feito também, com o Flávio Rangel tinha feito Gimba. Fui apanhado lá no meio das filmagens de Porto das caixas pra fazer Gimba. Gimba não deu certo, foi um dos filmes que eu fiz neste período que foi meio ingrato. Tinha feito também... ainda acho que foi antes de Joaquim, que foi em 65. E aí veio o golpe em 64... Essas coisas terríveis do Brasil, porque a gente tinha uma ambição e uma perspectiva de que o cinema era uma coisa muito importante para a revolução social do Brasil, pra gente conseguir transformações sociais e a injustiça social ia ser minorada através dos nossos filmes... Todo mundo se sentia ungido por uma missão. Tudo isso depois desapareceu, não ao longo dessa vida, que já lá vão quarenta e tantos anos, mas agora, recentemente, com a queda do Muro de Berlim, o mundo perdeu muito a esperança... e hoje em dia há uma falta de fé nessas coisas... Estou falando, não em termos de uma nova geração. Porque todo mundo sempre tem as mesmas ambições, que vai conseguir alterar!, que "isso é um bando de babacas que estão lá em cima, não têm nada a ver com a gente". E é mesmo, é verdade. Eles não são significativos, esses erros históricos terríveis que estão sendo cometidos no Brasil, isso não é representativo do povo brasileiros de fato. Então, são equívocos terríveis históricos, e a gente passa por vários... A revolução foi simplesmente terrível, foram trinta anos muito bem planejados para nos tirar de um rumo, assim, ascensional e ambicioso que Juscelino tinha colocado o Brasil e que o Jango queria confirmar. E que foi planejado pelos americanos minuciosamente. Eu me lembro de um artigo excelente do Celso Furtado daquela época, dizendo como era planejado esse golpe, que funções ele ia cumprir no nosso desenvolvimento social e o destino para obras faraônicas como Três Marias, não sei o quê... Nós íamos nos endividar com obras assim que iriam ficar prontas dali a vinte anos, trinta anos e isso ia criar um endividamento, e depois ia haver uma crise do petróleo que aumentaria o dólar, e essas dívidas iam virar uma bola de neve porque os juros do mundo todo iam aumentar no mundo inteiro, e nós íamos ficar devendo muito dinheiro, assim, durante anos. E ia ser o que está hoje. Ele previu tudo, sucessivamente, as várias etapas desse conto do vigário no qual nós caímos, e que vai ser difícil a gente acabar com isso sem haver um espichamento dessa dívida a perder de vista, até o ano três mil, a se pagar bem pouquinho ou então, pedir o mesmo perdão que os outros países pobres, embora nós sejamos considerados a oitava riqueza do mundo. Mas não tem jeito, se você deve trezentos milhões de dólares... é igualzinho ao cara que compra pela Caixa Econômica e, quando acaba de pagar o que devia, ficou devendo mais do que devia pelo preço da compra, por causa de uma conversão feita pela Caixa Econômica junto ao Banco de Habitação, que faz com que aquele cara sempre fique devendo...

O Joaquim comentava muito da dívida que o filme deixou, e que depois teve que fazer um filme popular para pagar tudo...

Pois é, você estava sempre pagando os juros da dívida... Porque isso, a gente, naquela época pegava dinheiro com o Banco Nacional, eles nos adiantavam o dinheiro, aparentemente com boa vontade e tal... Mas os juros, por menor que fossem, eram de 1% ou 2% ao mês, 15% ao ano. Em um ano, o filme ficou preso pela censura no Brasil... No caso do O Padre E A Moça pegou muita censura mineira, né? Teve muita reação clerical contra o filme, do bispo de Diamantina, que morreu agora. Enfim, Deus o leve em paz... Mas o quanto ele pôde chatear a gente, ele caía em cima. Teve até um encontro no meio da rua, Joaquim Pedro tava assim parado e estávamos tomando um chopinho com um primo de David Neves que era ex-prefeito. E esse ex-prefeito disse pra Joaquim: "olha lá, aquele ali é seu parente, vem andando todo de branco com aquela gravatinha. É até meio parecido contigo, Seu Joaquim". E nós fomos ver, ele tinha uma coisa meio parecida com Joaquim assim, meio magrinho... Ele sentiu que a gente estava falando dele, e ele já deu um olharzinho meio desconfiado... E aí o primo do David disse " Cuidado com ele, que ele vem a ser o promotor público da cidade, vai querer prender vocês todos, que ele odeia essa história de ‘O Padre e a Moça’. Ele vem pra cá e vai falar, você vai ver". Aí ele, veio vindo, veio vindo, veio vindo, e abriu o jogo: "Vocês são dessa equipe que está fazendo o filme?", aí Joaquim respondeu: "Mas parece que eu sou seu primo". "Se é primo, eu não sei, eu sei que vocês estão fazendo um filme que está desagradando muito ao Monsenhor, e se eu tiver oportunidade, eu enquadro todo mundo". Fez um discurso reacionaríssimo, impressionante. Então eu senti que em Minas ia ser muito difícil de se levar o filme. Houve muito preconceito, muita coisa absurda... Depois, essas coisas foram se acalmando, Joaquim conseguiu passar, teve uma mão do Braga forte, comprou um pouco o filme, por conta da linhagem de Joaquim Pedro ser primo de Vivi, que era mulher dele, enfim, a família Mello Franco ajudou muito o Joaquim a saldar esta dívida braba, que Joaquim herdou e Luiz Carlos Barreto também. Mas enfim, eu não sei como foi feito direito isso, que achei genial porque isso permitiu a Joaquim entrar por outros caminhos. Mas agora vamos dar uma pauzazinha para a gente voltar a falar do O Padre e a Moça, o filme.

Antes disso, ainda nesse início de propostas do Cinema Novo, quando vocês fizeram ‘Arraial do Cabo’, ‘Couro de Gato’, como é que estavam as propostas estéticas na sua cabeça?

As minhas propostas estéticas eram sempre um pouco de artista plástico, défoqué, como dizia o Jean Bouguide, ele dizia: "você é um artista plástico défoqué , não adianta, você vai sempre ficar pensando como artista plástico" . E aí Joaquim dizia: "escuta, a gente tá fazendo um filme, não tá fazendo gravura"... Ele ficava às vezes danado com essa mania que eu tinha de ficar elaborando muito a imagem como se fosse um mural em movimento. Eu tinha essa mania de que o cinema no fundo era um mural em movimento. E Einsenstein, que gostava muito de artes plásticas, e tinha mania de uma elaboração... Depois eu vi na França o copião do Viva México, onze horas seguidas de copião, eu vi na Cinemateca, tem umas vinte ou trinta pessoas que puderem ver isso aí... E era incrível, que aparecia o Eisenstein, ele deixava a camera ligada, então daqui a pouco ele entrava no quadro e ajeitava o ator... Depois, ele corria de novo, olhava a câmera pra ver se o enquadramento tava legal. E o Tissé ficava ali acertando as luzes. Então você via todo esse processo de elaboração da imagem feito por Eisenstein e por Tissé, e pelos os atores, evidentemente, mas era um clima desse perfeccionismo, quer dizer, uma vontade técnica muito elevada de fazer um produto ser realmente o melhor possível... Ele sempre ia descobrir uma maneira de melhorar a imagem, de criar uma riqueza maior. Ele tinha uma formação de artes plásticas muito desenvolvida, fazia desenhos, bons desenhos, caricaturas. Gostava de grandes cartunistas, gostava muito de Goya, gostava de um inglês, esqueci o nome dele agora, mas que fazia também muita caricatura... E Daumier também, que fazia caricaturas... Então ele guardou muito essas influências. Depois ele começou a estudar El Greco. Tem um livro sobre Cinema e Artes Plásticas do Eisenstein , tem um artigo longo dele sobre El Greco, ele ficou muito encantado. Aquela luz mística que o El Greco transmite, uma iluminação de dentro, uma iluminação mágica, ele estudou aquele negócio. Sobretudo muita influência de El Greco e dos maneiristas da época, aquelas figuras alongadas, compridas, a câmera sempre baixa, umas angulações, umas roupas que envolviam todo o corpo, uns gestos largos, as mãos aparecendo muito... Tem muita coisa do El Greco em Eisenstein, sobretudo nessa fase de Eisenstein radicalmente formalista dele, já quase pós- revolucionário, ele já não tinha mais tanto entusiasmo por mostrar o povo. Aquelas obrigações que a política impôs a linguagem dele, certas limitações, certos assuntos... Enfim, mas o que eu queria dizer com isso é que, nesse momento, havia em mim essa vontade de não perder o meu passado e a minha formação de ser pintor e fazer com que ela se compusesse com essa vertente em que eu tinha entrado do cinema. Então às vezes ficava meio chato mesmo As pessoas diziam: "eu quero ver o ator, o rosto do ator, o ator, a voz do ator!". Eu dizia: "Isso não tem muita importância, o que é importante é que a silhueta do ator tá muito melhor do que se botar uma luz na cara, se eu fizer isso vou estragar todo o clima em volta". Tinha umas brigas meio chatas, era uma coisa complicada. Mas Joaquim tinha muita sensibilidade.

Só com Joaquim Pedro, ou com os diretores em geral?

Com Joaquim mais do que com Paulo César. O Paulo César tinha sido namorada de Ana Letícia, que também era gravadora. Então ele ia fazer um filme comigo e Oswaldo Goeldi. E Ana Letícia tem uma formação, pelo convívio entre namorados, de uma gravadora e uma pessoa que tinha sensibilidade também com cinema... Paulo César gostava muito de gravura, de alto contraste do Goeldi. E o Goeldi foi o que nós usamos para fazer o letreiro de Arraial do Cabo, foram gravuras do Goeldi .... Então depois Paulo sentiu tanta confiança em mim que ele dizia: "agora quero plano geral, quero isso, quero aquilo", e tá acabado, ele não olhava pela câmera. Já Joaquim tinha uma necessidade profunda de examinar o quadro, quando o quadro estivesse acessível. Ele só deixou de usar quando o filme se tornou documental. Por exemplo, no caso do O Padre e a Moça , tem a fuga da Helena Ignez descendo o morro com o Paulo José, e aí eu já estava trabalhando com a teleobjetiva, não havia tempo dele acompanhar enquadramento nenhum, era eu e a realidade, eu trabalhando só no registro, passei a ser documentarista num certo momento do filme. E é muito bonita essa fase. Depois eu descobri umas variações de foco, foco no primeiro plano. Então são planos elaborados pelo olhar, eu me sentia mais livre. Joaquim gostava de marcar um plano minuciosamente, inclusive ele pegava a câmera, saía andando, carregando câmera, tripé e tudo... Às vezes eu marcava de brincadeira, eu marcava um lugar e ele acabava exatamente no mesmo lugar. Porque meu olho era mais elaborado, quer dizer tinha passado por muito mais muito mais distância, por gravuras, arquitetura, tinha trabalhado com Oscar Niemeyer, cheguei a fazer uma casa, meu olho era, digamos assim, mais elaborado... já tinha uma experiência bastante grande de gravura. Iberê Camargo, de quem eu fui aluno durante seis ou sete anos, todo dia no escritório dele...

Quando foi isso?

Desde 49 até eu viajar pra Europa, em 53. Depois voltei novamente ao atelier dele, em 54. A vida inteira, quando ele não estava no Sul, praticamente nos víamos pelo menos duas vezes por semana. Às vezes eu ia lá no atelier dele tomar cafezinho. Durante um longo período era diário. Eu era realmente um pouco... eu ajudava bastante, tirava prova pra ele e a gente naturalmente, depois de um longo período de aprendizado, teve uma amizade que durou até o fim da vida. Então, eu tinha essa formação, que era até um peso para as pessoas que trabalhavam comigo. Quem não gostava disso dizia: "O Mário é muito simpático e bom de trabalhar, mas quando ele vem com essa mania de querer fazer não sei o quê e citar nome de não sei quem, sai de baixo...". Tinham pessoas que eram até meio grossas. Eu dizia "olha, vai trabalhar com outra pessoa, tem um monte de gente boa aí, mas comigo tem que ser nessa base, dessa qualidade que eu quero dar e é uma coisa minha, meu recado é esse e estamos conversados". E até hoje, eu acho que eu sou um pouco assim mesmo, eu não perdi essa vontade de elaborar a imagem o máximo possível, embora eu reconheça que hoje em dia não é mais o mesmo tipo de coisa que se fazia... minhas preocupações visuais evoluíram. Hoje, a minha gramática visual hoje é completamente diferente daquele tempo, mas eu acho que uma permanência dessa preocupação continua até hoje, acho que numa boa. O filme do Joel Pizzini, por exemplo, Enigma de um dia, que quase ganhou prêmio lá em Veneza. É um filme em que a imagem é muito necessária para a elaboração do filme. Faz parte de quem faz o filme ter essa preocupação.

Com ‘Garrincha’ teve isso?

O Garrincha, embora o Joaquim tenha dito até numa entrevista que foi meu filme menos criativo meu, porque havia vários câmeras... Mas eu acho que a minha colocação das câmeras em campo, quer dizer, já era prevista no roteiro, eu fui co-roteirista com ele. Eu fiz a colocação das câmeras e depois o Carlinhos Niemeyer, que já morreu, infelizmente, ele usou tudo aquilo, até deu uma entrevista logo depois da gente fazer o Garrincha. Quando apareceu o resultado, o Canal 100 foi lá e colocou as câmeras exatamente no mesmo lugar, fazendo os mesmos enquadramentos e começou a fazer os filmes dele... E eu fiz uma seqüência lá naquele subterrâneo, eu gostava muito desse negócio de pouca luz, embora os filmes daquela época não permitissem muita iluminação natural. Você entra naquele subterrâneo, os jogadores se esquentando, aquela luz só de néon, uma luz esquisita, difusa, muito distante de qualquer modelo americanizante de iluminação. Aquilo era um desastre... Joaquim disse "eu não quero nem ver, você filma sozinho!". Me largou com a câmera lá e eu fiz um documentário, aliás o filme começa com essa seqüência, que eu acho extraordinária, acho que eu consegui ali exatamente uma maneira formal moderna de ver aquilo sem botar nenhuma luz, só com a luz natural mesmo. E num filme TRI X 250 asa ou 300 ASA . Mandei e veio, saiu muito bem. Embora tivesse gente chutando bola em cima de mim, com raiva, porque todo mundo queria uma graninha. Enfim, essas coisas... Quando fiz Garrincha quase morri. O Garrincha chutou a bola assim. Eu vi a bola vindo assim, senti um negócio passar assim e queimou a minha orelha (faz o gesto da bola passando rente ao rosto). A bola voltou, por cima de mim, lá do meio do campo. Ele passou a mão na minha orelha e disse: "Ô Ruço, você nasceu de novo!" e saiu correndo, as pessoas ao meu lado brancas. A bola passou aqui, ó... Se tivesse ido na minha cara, eu estava com uma super tele, ela ia atravessar minha cabeça, saía inteira aqui atrás... Essas coisas acontecem quando você está filmando, o risco é grande. Uma vez um cigano botou uma winchester na minha cabeça. Ele tinha matado vários ciganos , havido um conflito. Eu estava filmando esse cigano que era assassino, ninguém sabia de nada, e aí o cara achou que a gente tava filmando pra entregar ele. Isso, lá em Goiás, e tinham uns fazendeiros que tinham bebido. O cara pegava a winchester, e eu digo: "eu vou morrer se vocês pegarem a winchester". E o cara com o dedo na minha cara: "Vou te matar, eu te mato!". Tudo mundo lá atrás, eu dizia: "fiquem quietos aí, que eu vou conversar com ele". Ele dizendo que ia me matar, e eu disse: "Pode confiar amigo, é um filme sobre a cordialidade do homem brasileiro, e você com uma Winchester na minha cabeça, não vai ficar bem no filme, não vai ser usado não...". Tinha uns documentários meio malucos na época para mostrar as qualidades do homem brasileiro. E esse era sobre a cordialidade do homem brasileiro, e eu com um winchester na cabeça... Mas enfim, havia de tudo. Mas a gente está aí pra isso.

Vcê chegou a ler o roteiro do O Padre e a Moça antes da filmagem?

Li. Acompanhei desde o início tudo. Porque tinha essa origem no Carlos Drummond. E o doutor. Rodrigo tinha uma coisa, ele lia o roteiro de Joaquim, ele lia de noite e fazia umas observações com uma canetinha vermelha. Joaquim acordava às vezes e mostrava: "Olha o que papai escreveu ontem aqui". Dizia assim: "Joaquim Pedro, cuidado com o rocambole!". Era uma expressão francesa, rocambolesco era uma coisa que ultrapassa o humor e passa a ser um humor meio operístico, fantasioso demais. E Joaquim ficava procurando, "onde é que eu rocambolei nesse texto?"... Era muito engraçado. Dr. Rodrigo era danado, tinha um olho muito agudo.

Você chegou a ter relações com Dr. Rodrigo?

Conheci bastante doutor Rodrigo, ele era muito amigo de meu pai. Tinha uma ligação via UNESCO e o Patrimônio Histórico, e eles eram de uma época, era bastante antigo esse relacionamento. Tanto que essa moviola e essa câmera que vieram com o sueco, o Arne Sucksdorff, foi um plano urdido, vamos dizer assim, por Joaquim Pedro e David Neves. Porque eles foram conversar com papai, e eles resolveram que o melhor caminho seria a UNESCO encaminhar esse equipamento por essa pessoa via Patrimônio Histórico, pra criar um núcleo de documentação dentro do Patrimônio. E isso foi feito. Eu estava lá na França na época, e vi uma lista com vários nomes de documentaristas que queriam vir ou não poderiam vir. E aí sobrou querendo vir de fato o Arne Sucksdorff. Eu já tinha visto uns filmes dele muito interessantes, achei muito bons, pensei : "esse cara vai topar, vai ser ótimo". Aí por acaso ele topou vir. Ele foi muito útil aqui para todo uma geração, Dib, os irmãos Escorel, tanto Eduardo quanto Laurinho, Cacá, todo mundo foi aluno dele durante um período dado, até o próprio David também, quem estava podendo acompanhar as aulas dele... Eu não pude acompanhar as aulas dele porque eu já tava filmando. Mas foi muito importante. Então, essa relação entre o Patrimônio e UNESCO depois veio a dar em outras coisas... Eu acho que o próprio Limite teve uma verba, foi o primeiro filme a ser tombado, que a UNESCO conseguiu dar um dinheiro para a recuperação do filme. É muito raro um filme ser tombado pelo patrimônio... Enfim, eram coisas assim feita graças a essa relação muito forte. Depois houve essa coisa dos monumentos tombados, monumentos universais pela UNESCO, evidentemente veio uma inspiração brasileira, tombamento feito aqui de algumas coisas de Ouro Preto, que virou cidade universal. Depois Brasília, uma cidade modularmente universal- Não é Brasília que é tombada, mas ela não pode ser alterada nos seus volumes, né? Salvador tem uma parte grande também para o Patrimônio da Humanidade... Meu pai depois foi incumbido da salvaguarda do Monumento da Núbia, pelas experiências importantes que tivera com Dr. Rodrigo. Eu não sei exatamente, porque eu ficava um pouco afastado, pra deixar David... Porque David gostava muito de bater papo com papai, falava umas coisas meio escondidas, meio cochichadas, era genial... Coisas de política... Ele gostava muito de manobrar, de fazer com que as coisas dessem certo. Depois ele ficava com um arzinho vitorioso, era genial... E aí Joaquim Pedro gostava um pouco também dessa coisa de inventar uma trama que desse certo, como essa, em que veio material, criou-se esse núcleo... O primeiro filme do núcleo foi sobre o Mosteiro de São Bento, A nave de São Bento. Infelizmente desapareceu o negativo, sumiu o filme. Mas isso não tem muita importância...

O próprio Aleijadinho também já foi feito com essa ambigüidade desse negócio do Patrimônio, não com a UNESCO, mas com esse núcleo que foi criado...

Vocês se conheceram muito jovens. Como você conheceu Joaquim?

De fato, a gente se conheceu, basicamente, porque nós namoramos a mesma namorada, que foi Sarah... Basicamente foi isso. Eu era colega de Sarah, eu comecei a namorar Sarah quando estava no colégio Andrews, eu tinha 16 anos, 17 anos. E Sarah era uma pessoa muito inteligente, tinha muito entusiasmo por cineclube, essas coisas... Esse namoro durou bastante tempo, mas era uma coisa meio adolescente, uma coisa que você sabe que não vai se eternizar. Mas eu tinha um lado meio romântico, meio bobo e ficava muito entusiasmado, muito caído... E aí comecei a sentir que quando ela fez vestibular pra Física, acabou-se o colégio Andrews, eu fiz arquitetura, ela foi pra física. Aí eu ganhei de prêmio uma viagem para a Europa. Eu mantive uma correspondência, mas eu sentia que o tom já não era o mesmo... E aí quando eu voltei, a Sarah falava com muito entusiasmo de um Joaquim Pedro... Em 53, fomos passar o carnaval em Ouro Preto. Eu tava já meio abalado, sentindo que as coisas não estavam muito bem., e já tinha tido alguns sinais de que a minha saúde não estava muito boa, que eu precisava me cuidar, mas ao mesmo tempo ficava sentindo que não estava muito legal o namoro... Quando eu estou lá no hotel, dali a pouco eu procuro Sarah, olho pra baixo, aí lá embaixo estavam Joaquim e ela, tinha um banquinho lá embaixo e eles estavam se beijando... Eu tive um choque danado... Nós tínhamos ido à casa do dr. Rodrigo na véspera, e eu senti que Joaquim tava esquisito, ele saiu pra pegar umas batidinhas lá em baixo, ele pegou com uma bandeja, na mão, de repente a gente ouve um barulhão... Joaquim caiu da escada, com todos os copinhos de cachaça. Dr. Rodrigo disse pra mim: "O meu filho é muito boa pessoa, mas ele tem mal ao álcool...". Joaquim reapareceu com novos copinhos, com as batidinhas, mas muito esquivo comigo, nenhum papo. Aí eu pensei: "Bom a coisa tá ruça pra mim, eu vou-me embora". Quando eu vi essa cena, peguei minha mala e fui embora pro Rio de Janeiro. E, dito e feito, peguei logo um tífano brabo, misturado com mononucleose, quase morri, perdi 18 quilos. O pai de Sarah achou que eu estava com câncer de sangue por causa dos remédios que me deram... E eu acabei indo pra Europa, onde comecei essa história dos filmes. Acabou-se o namoro e começou o namoro dela com ele... A gente só se aproximou de fato, de uma maneira mais radical, quando eu fui fazer Arraial do Cabo, em que Joaquim assumiu a produção, que o Montanha ficou doente no meio do caminho... E nós nos aproximamos, que eu já conhecia tanto Joaquim por causa de tantos imbróglios sentimentais, e ele a mim, que a gente se associou como dois velhos amigos que se encontram apesar dos pesares. Bom, há mulheres no caminho, mas nem por isso nosso caminho será diferente do que terá de ser, porque tinha de aturar essa cumplicidade que havia de namorada querer namorar os dois. Porque claro que o ideal para Sarah seria namorar Joaquim e a mim, mas isso era impossível. Eu comecei a namorar Marília depois, aí aliviou a área, porque... Depois Joaquim ganhou prêmios, e tal... Depois de Couro de Gato ele foi pra Londres, para os EUA, passou um período lá na França, e isso também deu a ele um certo afastamento, até voltei a namorar um pouco Sarah... Uma coisa um pouco perturbadora, porque nós éramos muito jovens, e tínhamos esses caminhos mais ou menos em comum... Mas depois tudo se acalmou. Tem até uma carta muito engraçada de quando eu decidi casar, Joaquim me escreveu dizendo: "Mas você é louco, como é que vai casar? Nós cineastas não devemos nos casar. Formaremos famílias infelizes, o cinema no Brasil não tem futuro. Mas já que você decidiu casar, esse passo absurdo, eu vou fazer a mesma coisa, eu vou pedir Sarah em casamento, vamos casar todo mundo logo, que é melhor!". Ele acabou casando por procuração com Sarah, Dr. Rodrigo foi quem fez o papel de Joaquim Pedro no casamento... É isso, ficou uma grande amizade, porque tanto continuei amigo de Sarah, de quem sou amigo até hoje, como sempre fui muito amigo de Joaquim Pedro, embora houvese sempre uma certa desconfiança primeiro nos meus passos, embora tivesse muito confiança profissional em mim. Nem tanta, sempre foi muito desconfiado... Como todo bom mineiro. Me dava sempre um livro pra ler: "Você tem certeza que já leu isso direito?", era o Manual do American Cinematographer , e tal... (risos) É, e criávamos bodes, feito a noite americana (efeito para uma cena filmada de dia parecer noturna). Eu dizia: "Joaquim, acho que essa noite americana não tá muito boa", "Não, se o American Cinematographer diz, pode confiar!". Aí eu fiz uma noite americana, deu o maior bode, porque eles mandavam superexpor 3 ou 4 pontos no diafragma. E eu achando: "isso não vai dar certo...". Acabei ligando pra Líder, e falaram "Não, basta um diafragma só, dois já é demais". Uma parte nós perdemos do filme por causa dessa noite americana, inclusive era quando Paulo José foi correr atrás de uma mula sem cabeça. Ele levou um coice da mula, quebrou um dente, um ciso... Mas, enfim, foi uma coisa, perdemos material que poderia ter sido muito precioso, por causa dessa informação. O American Cinematographer. nem sempre diz a coisa mais conveniente, aos brasileiros pelo menos. Mas eu lia tudo aquilo. Mas há muito tempo eu já lia o American Cinematographer, desde Arraial do Cabo, Sérgio Montanha me deu um American Cinematographer pra eu poder acompanhar a câmera dele, ter cuidado. Mas eu nunca fui de fato uma pessoa como o Fernando Duarte, que desmontava todo dia a câmera inteira, filho de relojoeiro. Ele adorava limpar a camera inteirinha, fazia isso com carinho, com cuidado. Isso sempre me deixou um pouco... Eu dizia, "eu não tenho esse amor pelo material". É uma coisa que me escapa, eu gosto mais de um bom pincel, a câmera pra mim já extrapola a minha necessidade de mergulhar no material. Feito Saldanha, Saldanha adora uma câmera...(Carneiro se refere ao fotógrafo, montador e diretorLuís Carlos Saldanha) Eu já desmontei uma vez, quando foi necessário fui lá e desmontei, mas não faz parte dos meus afetos ficar cuidando do material. Nesse lado, eu sempre fui visto com uma certa desconfiança por Joaquim e muitas outras pessoas. "O Mário não tem essa vocação pra ter esses cuidados, ele não gosta de laboratório...". Mas quando foi necessário fazer um outro tipo de revelação, em Capitu, eu senti que era uma fotografia que precisava ter um outro tipo de granulação, de um tom mais antigo, eu fiz vários testes, descobri qual era o tempo de revelação certo, o ideal é de doze minutos, fiz com noveminutos, um filme Dupond, excelente, ficou maravilhoso. Aí o Ricardo Aranovich apareceu lá em casa: "Como é que você fez isso?. Como é que foi? Eu sinto que esse filme não tem uma revelação normal". Eu disse: "eu peguei um filme sub revelado, só nove minutos...". Mas eu nunca fui muito de ficar fuxicando em laboratório, essa coisa de aferir a câmera pra ver se a lente tá limpa. Eu sempre dei isso para os meus assistentes de câmera, e digo pelo amor de Deus, porque eu não gosto muito disso não.

Em ‘O Padre e a Moça’ você só teve um assistente?

Foi, Fernando Duarte foi meu assistente e também foi no Porto das caixas. Mas só que eu não deixava o Fernando fazer as coisas, porque eu não sabia direito o que era assistente direito, então eu fazia tudo. Quando ele queria fazer o foco, e eu dizia: "Porque você vai fazer o foco?", e ele dizia: "Mas eu vou fazer o quê então? Eu tenho que fazer o foco, Mário...". De fato, em Arraial do Cabo eu não tive assistente, então eu fazia tudo: o foco, botava filme, limpava a câmera carregava nas costas, fazia tudo. E então eu achava estranho. "Por quê que eu preciso de um assistente, se fiz um filme que ganhou 5 prêmios internacionais sem assistente? Eu preciso é de um carregador!". Mas depois eu me dei conta que o assistente é fundamental, e aprendi a usar o assistente, tive vários assistentes que depois viraram grandes fotógrafos... Pedrinho Moraes foi meu assistente, Fernando Duarte, que depois virou mestre de toda uma geração em Brasília, foi professor inclusive do Walter Carvalho. Eu digo que Walter Carvalho é um pouco meu neto, foi aluno de Fernando, então...

E a idéia de botar a câmera no ombro, a famosa câmera na mão, como é que foi?

Câmera na mão pra mim surgiu... Porque eu descobri mais tarde que câmera na mão já existia há muito tempo, inclusive o Napoleão do Abel Gance tinha câmera na mão, uma câmera enorme, amarrava uma tira de couro e saía carregando aquele elefante... Mas essa vontade de soltar a câmera é uma vontade antiga, já faz parte dos primórdios do cinema, bastante anterior aos anos... ‘59 foi quando se fez o filme. Mas aí nessa coisa de estar documentando e quando você está filmando ao vivo uma série de peixes no mar você tem que ter o tempo que tem a ação normal , não pode estar pedindo pra voltar, "Dá uma paradinha...", não tem isso. Eu comecei a me sentir preso ali no tripé. Ai eu pensei: "Vou tirar essa câmera do tripé e fazer tudo!" Peguei até um caixotinho e dei pra um cara carregar, e onde eu mandasse ele tinha que botar o caixotinho. Comecei apoiando a câmera nesse caixotinho. "Agora fica você em cima do caixotinho, que eu vou apoiar em cima da sua cabeça". Meu assistente verdadeiro era um carregador, o Levi, ótima figura... Até que daqui a pouco eu botei no ombro e disse: "Pô, essa câmera é ótima pra apoiar no ombro...". Botei a camisa no ombro e comecei a andar um pouco com ela, ter uma certa liberdade... Só que Paulo César gostava mais de plano fixo, aquela época estava completamente fora do normal você fazer planos em seqüência andando, geralmente era um quadro que você escolhia e ficava fixo. Pra fazer uma panorâmica, eu dizia "eu preciso fazer essa panorâmica, os caras estão andando, eu vou deixar eles entrarem e saírem de quadro, fica ridículo...". No final a gente acabou fazendo umas panorâmicas e depois a câmera foi se soltando um pouco mais. Mas na época, um pouco por influência do Eisenstein, havia uma grande ditadura do plano fixo, compunha o quadro e então ia ser aquele o quadro... Então as pessoas vinham andando em direção à câmera, elas vinham andando em direção à câmera e saíam do quadro, filmava de costas, mais um plano... Mas sempre quadros fixos, era muito difícil você pegar uma câmera e sair andando. Eu me lembro de um plano na praia, num filme do Cacá Diegues, um filme que tinha a Anecy Rocha, Joel Barcellos, um dos mais interessantes, A grande Cidade. Cacá pediu: "faz uma câmera aí". Eles vêm conversando e o Caca me pediu pra dar uma volta completa em torno deles, e eu fiz um troço que ficou perfeito, eu dei uma volta completa nos atores. E eu criei uma grande habilidade em fazer isso. Mas o Dib era melhor que eu, porque ele tinha uma altura ideal para a câmera. Mais baixo do que eu, e muito forte, o Dib é bem forte.Eu tenho um ombro mais alto do que o outro, uma perna mais comprida que a outra, a câmera tinha uma tendência a ficar meio do alto pra baixo, que é um enquadramento meio chato, meio pretensioso, reduz as pessoas. Então eu fiz muitos planos com a câmera assim, com a câmera debaixo do braço... (balança o braço pra baixo, como se carregando a câmera) Uma câmera meio cega... Então, com a câmera assim eu fiz vários enquadramentos meio aleatórios, pegava a câmera e levantava , comecei a fazer várias coisas um pouco acima, pra poder compensar essa minha altura excessiva... No Porto das Caixas, tem um momento em que eles andam por umas ruínas, muito lindos os planos, e era a câmera na mão, acompanhando eles... Enfim, era uma coisa que eu tentava compensar um pouco... Mas depois achei que já fiz muito plano na mão. Fiz muito comercial com câmera na mão, que eu era bom, não tinha mais nenhum problema de fazer câmera na mão. Todo mundo ficava meio arrepiado com câmera na mão: "vai tremer!", eu dizia "não...". Aí o aparecimento do Dib e o uso da câmera na mão pelo Glauber liberou a câmera na mão de uma maneira definitiva, porque o Dib era um gênio da câmera na mão e o Glauber começou a usar isso como uma linguagem característica, quase, do Cinema Novo. O plano seqüência meio abarrocado, dando voltas em torno dos atores, buscando o ator, o ator fugindo um pouco da câmera, as marcações do Glauber... Eu até escrevi uma coisa, que era quase uma análise, o diretor era mais um analista da câmera do que propriamente um diretor, ia analisando o movimento e ia falando coisas. O Dib ficava quase louco: "Eu não entendo metade do que o Glauber fala, mas vou me deixando levar pelo movimento do braço dele...". É uma outra transferência, o diretor se torna um guia da câmera. Isso criou uma linguagem muito importante para o cinema brasileiro. Quando a gente filmou depois O Padre e a Moça, tem umas seqüências em que eu fiz câmera na mão. Mas era muito difícil, porque eram umas sequências muito marcadas, era um ambiente muito pequeno, com a Helena se despedindo de Paulo José. A câmera tinha de vir pra cá, o Escorel me segurava, porque era uma câmera era bem pesada, era uma cameraflex também, mas não era aquele uso de muita ação... Se fazia um movimento e daqui a pouco parava. Se eu ficasse respirando... Esse vai e vem que o ator faz pra depois ficar parado era muito complicado com a câmera na mão, mesmo na mão dos melhores, mesmo Dib ia sofrer com isso., porque é muito desagradável parar, fazer um movimento, parar, voltar ao movimento e parar... Essa vontade que Joaquim tinha de criar um vaivém, um vaivém encontrado. Joaquim gostava muito desses planos difíceis, mas era muito pouco barroco, Joaquim era mais clássico, não gostava de movimentos aleatórios... Ele ficava muito... sofria. Tinha uns planos do Paulo José em que ele dá uma volta em torno da câmera. Eu prendi ele com uma corda, Paulo José tinha que andar sempre naquela mesma distância. Então eu sentia a corda esticada e estava bom, era por aí. Joaquim já ficava mortificado se mudasse um pouco, tinha que ser do mesmo tamanho, do mesmo enquadramento. Ele tinha essa necessidade de controle da imagem muito grande. Ele ficava meio desesperado quando o filme entrou numa fase documental, O Padre e a Moça, e eu fiquei muito senhor da imagem. Não havia como, naquela época, o ideal é que já tivesse vídeo pra se ligar na câmera, mas não tinha, então eu me salvei e pude fazer mais livremente, se não ia ser uma gritaria terrível... Mas, enfim, ele perguntava "Ficou bom?", e eu dizia "Ficou ótimo, pode deixar".

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Entrevista concedida a Clara Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano