Entrevista com Carlos Lyra


Como foi seu primeiro contato com o violão e com a música?

Meu primeiro contato com o violão foi em virtude de um acidente no exército. Eu estava no exército, dei uma topada e quebrei a perna lá em quatro lugares diferentes, quatro fraturas, então me mandaram para casa. E lá, com a perna estirada pra cima, não tinha nada pra fazer e minha mãe resolveu me contemplar com um violão. E eu peguei o violão e comecei, comprei um método chamado Paraguaçu. E aprendi as primeiras posições, e quando a perna já estava boa eu já estava viciado em violão. Daí apareceu um sargento da aeronáutica, que era meu vizinho e que era um grande violonista clássico, fantástico, o Zé Paiva. Tocava muito bem, um cara assim um pouco sombrio, mas tocava um violão, que era um verdadeiro menestrel. Só a mão dele já tinha uma elegância... Aí eu fiquei encantado com aquele negócio e ele começou a me ensinar o violão clássico, me ensinou colocar a mão no lugar, aí eu comecei a tocar violão direito pra valer. Daí foi um passo só. Aí depois disso comecei a aprender as coisas modernas, jazz, cifras, eu me impressionava muito com aquela música de Dick Farney, as letras de Antonio Maria, Custódio Mesquita, já me interessava... E aí outro vizinho fantástico veio me socorrer com um pouco de violão. Eu tinha passado na mão do Bandeirantes, que era um cara que tocava o viloão por cifras, era um negócio novo, fiquei uma temporada com ele, e quando ele foi pra São Paulo, aí fui parar na casa desse meu vizinho, que era um dos maiores violonistas do Brasil, Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto. E aí eu ia lá pra casa dele, sentava e ficava assistindo ele tocar. Um dia eu peguei o violão e comecei a dedilhar, e o Garoto falou: "Pôxa, você até que tem jeito, eu vou te ensinar a tocar". E começou a me ensinar a tocar violão... Mas pouco depois ele morreu, infelizmente, e eu não tive aula por muito tempo. Mas aí eu não parei mais, continuei estudando violão e foi assim que eu acabei montando uma academia de violão para ensinar e dali deslanchou uma carreira, que eu descobri também que tinha uma vocação para ser compositor, mais do que qualquer coisa. E entre as primeiras coisas que escrevi sozinho, como Maria Ninguém e Quando Chegares, e depois foi sucedendo com uma série de parceiros importantes. Em ‘55-‘56, fazia músicas com Ronaldo Boscoli, o Lobo Bobo, e mais adiante com Geraldo Vandré. Que aliás ganhou o primeiro Festival da Canção com uma composição minha chamada Menino, que depois foi gravada por Silvinha Telles um disco da Odeon, que de um lado tinha Menino, e do outro lado tinha Foi a Noite, de Tom Jobim e Newton Mendonça, e foi aí que eu fiquei conhecendo as duas feras, mais tarde trazidas por João Gilberto. Por telefone, liga o Tom Jobim pra mim e diz: "Alô, Carlinhos, aqui é o outro lado do disco". Foi assim que fui me encontrar com Tom Jobim e João Gilberto, que era amigo dele.

Jobim dizia que você foi o melhor melodista da Bossa Nova...

É, essas coisas do Tom Jobim de ser generoso, ele fez uma apresentação do meu livro Memórias Musicais, ele fez uma apresentação que, se as pessoas lerem e acreditarem, eu não preciso me preocupar com mais nada. Posso ser o novo compositor Carlos Lyra, com quase tanto prestígio quanto o Tom. Porque o que ele escreveu ali, e dito por ele... Dali pra frente tive como parceiros o Geraldo Vandré, o Gianfrancesco Guarnieri, tive ligação no Teatro de Arena, tive que fazer músicas para o Vianinha, para A Mais-Valia vai acabar, fiz música para o Chico de Assis... Ali naquele momento começou minha integração política, porque no Teatro de Arena comecei a me politizar, através d’A Mais-Valia..., essa peça do Vianninha. E no Teatro de Arena em geral, o Guarnieri, o Boal, aquela turma toda, fui me politizando e acabei fundando, junto com o Vianinha, o Leon Hirszman e outras pessoas o Centro Popular de Cultura,que é uma outra virada na minha carreira. Vinha com a Bossa Nova, aquela coisa bem comportada, uma música de classe média, o próprio discreto charme da burguesia . E ela veio se desgastando, começou a ficar uma coisa meio monótona, aquela coisa do amor, o sorriso e a flor, a flor, o sorriso e o amor, o amor e o sorriso, e chegou uma hora que começou a me atordoar aquele negócio, e eu disse "tô precisando tomar um banho de realidade brasileira", isso inspirado pela posição do CPC e do Teatro de Arena. E comecei a procurar Zé Ketti, Nelson Cavaquinho, Cartola, esses caras dos morros cariocas, das escolas de samba. E fui trazer esses caras pra minha casa, a gente tomava cachaça até umas cinco da manhã, e trocando figurinha, trocando muito... E aquelas músicas todas, que eu deveria ter gravado eu mesmo, mas eu tive aquela idéia de juntar aqueles compositores todos, aqueles crioulos de morro, e levar aquelas músicas deles para a Nara Leão, convenci a Nara a gravar o disco com a música daqueles crioulos do morro todos, que ficou sendo a Nara pede passagem. Toda aquela trajetória da Nara, eu tenho orgulho de ter sido a pessoa que provocou isto. Porque quem conhecia os crioulos na verdade era eu... Mais tarde eu também me entusiasmei, apresentado por Bené Nunes, me apresentou uma música de um sujeito chamado João do Vale, que era outra fera, um grande poeta maranhense, da terra de meu pai. Fiquei enlouquecido por João do Vale... E daí saiu a idéia de fazer um show chamado Opinião, onde juntou-se a Nara, o João do Vale e o Zé Ketti pra fazer um trabalho bem politizado.

Isso a partir do trabalho do CPC...

A partir do CPC é que começou a virada q transformou a Bossa Nova em MPB. A gente já se preocupava mais em fazer a Influência do Jazz, O morro não tem vez... Em vez de apenas, entende?, a Minha namorada, o Corcovado, entende?, aquelas coisas mais líricas... Abossa nova sofria uma tranformação, e se transformou até em música política, porque ali eu já fiz a Canção do subdesenvolvido, com Chico de Assis. E eu era o mais politizado. Comuna de carteirinha, como se dizia. Enquanto Tom Jobim dizia: "eu sou da direita festiva". Então a gente tinha esse antagonismo político, mas nos tínhamos uma convivência perfeita, uma perfeita comunhão artística, eu e o Tom. Apesar de cada um ter uma cabeça política .

Mas você, na época, acreditava de fato na hipótese de revolução?

Não era uma expectativa de revolução. A revolução que a gente pensava no CPC era uma revolução cultural, antes de mais nada. Não me lembro nunca de ninguém ter falado em luta armada, tomar o poder pela força. Era tomar o poder pela cultura. Era levar a cultura para todo mundo, era conseguir levar cinema, teatro, era o que estava na nossa cabeça. Duvido muito que entre aqueles intelectuais, Ferreira Gullar, Leon Hirszman, que alguém estivesse pensando em espingarda, revólver, canhão... A gente queria levar cultura pro Brasil inteiro, tanto que o CPC tinha células no Brasil inteiro. Não havia uma idéia revolucionária, em termos de tiroteio, tanto que nos surpreendeu muito quando a UNE foi atacada, metralhada, umas duas vezes. Inclusive no dia em que caiu o governo, em que os militares tomaram o poder, foi uma surpesa para nós aquele tiroteio todo. Ninguém esperava aquilo. Foi uma decepção muito grande. Se supunha que os revolucionários armados deveriam pegar suas armas, ir para a rua e resistir, e tentar matar alguns... Ninguém fez nada, foi todo mundo perplexo pra casa. Muito decepcionado, porque tinha acabado ali, definitivamente, naquele momento, até os dias de hoje, um melhor desenvolvimento da cultura no Brasil. Que nos anos ‘60 foi, nada mais, nada menos que primeiro mundo cultural. O Brasil era Primeiro Mundo Cultural. Era! Porque é aquele troço que eu digo, eu cito Cromwell, um grande entusiasmo nos movia, e a gente não sabia para onde, talvez por isso mesmo o grande entusiasmo. Mas nesse caso, dali para frente, o Brasil não conseguiu mais nada até o dia de hoje, até hoje, agora. Nós estamos em plena mediocridade. Fomos abafados e sufocados por aquele movimento sinistro, onde não só os militares, mas muitos civis, da maior importância, são os grandes responsáveis, os militares não são responsáveis, os militares estão na minha lista de inocentes úteis. O s civis por trás daquilo eram muito mais perigosos. Então, por que eu digo que o Brasil era primeiro Mundo? Porque, se você fizer um levantamento do Brasil naquela época, nos anos 60, você vai ver que a gente tinha feito a bossa nova, isso entre ‘56 e ’63, que eu chamo de as sete vacas gordas da cultura brasileira, você tem a bossa nova, você tem o cinema novo, o teatro de vanguarda com o Arena, o Oficina, o TBC, você tem a poesia concreta de Ferreira Gullar, Décio Pignatari, Irmãos Campos, Gullar. Você tem uma literatura que começa a florescer fantasticamente com Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Otto Lara Rezende. Tinha gente que escrevia muito bem, cronistas maravilhosos como Vinícius de Moraes. Os cronistas dos jornais eram Vinícius, Nelson Rodrigues. Os políticos do Rio de Janeiro conviviam na noite com esse tipo de intelectual e os políticos tinham melhor informacão. Abandonados em Brasília, que não tem esquinas e raramente... a não ser ultimamente, que começa a ter jornais, e tal... Então Brasilia ficou abandonada às moscas, essa coisa trágica de ter passado a capital para Brasília... Então tudo que acontecia no Brasil nos aos 60 era isso. E não era só em relação à cultura. A cultura também abrangia os esportes. Fomos campeões de tudo. Era boxe com Éder Jofre, tenis com a Maria Esther Bueno, Miss Universo com Maria Vargas, salto triplo, pesca submarina, tudo... E campeão de tudo o mais que você quiser, foi o primeiro bicampeão de futebol, com Pelé e Garrincha, bicampeão de basquete... Então era primeiro mundo cultural mesmo. Dali pra frente a minha trajetória ficou mais difícil, porque eu fui me exilar em Paris.

Foi nessa fase que você foi fazer o Padre e a Moça?

Ainda não. Bem, sim... Foi exatamete nessa tragédia de ’64, foi que veio uma das minhas parcerias com cineastas. Eu já tinha feito com Leon Hirszman a música da Mais Valia, meu próximo parceiro foi Joaquim Pedro de Andrade, começou com Couro de Gato. A primeira mulher dele era grande fã minha, a Sarah. Ela convenceu Joaquim a me chamar e ele foi me procurar, isso foi antes do CPC. E o Joaquim me chamou pra fazer Couro de gato, me mostrou na moviola. E o filme não tinha diálogos, era todo comentado com música. E ele gostou muito do meu trabalho, eu gostei muito de trabalhar com ele. Uma pessoa finíssima, agradabilíssima, inteligente, muito culto. Uma integridade que vale a pena comentar aqui, um homem de uma integridade a toda prova. E essa figura me chama pra trabalhar, pra fazer a música do filme dele. Fomos premiados em Oberhausen na Itália e por aí afora. E logo depois, mais tarde, ele me chamou pra fazer um novo trabalho. E esse novo trabalho foi engraçado, porque estávamos em ‘64, tínhamos acabado de levar aquele soco na cabeça do golpe, e receber aquele troço foi tão violento que eu somatizei e fiquei com as costas ferradas, uma hérnia, eu tive que ficar sentado. Fiquei praticamente paralisado, com as costas ferradas, paralisado na cadeira. Quando eu tô ali, meditando sobre a minha tristeza, chega o Joaquim Pedro de Andrade, constrangidíssimo, me pedindo pra fazer a música do filme que ele tava fazendo, O Padre e a Moça, sobre um poema do Drummond. E que infelizmente o Tom Jobim tinha começado mas não podia continuar, porque o Tom estava morrendo de medo de fazer música pra um filme comprometido politicamente. E o Tom não quis acabar: "olha, não dá, eu prefiro não me meter em nada dessas coisas, senão pode atrapalhar minha carreira nos Estados Unidos". Ele sempre foi muito aberto, muito franco em relação a isto, não vai aí nenhuma crítica a isso, apenas uma constatação. Levantei da cadeira, não sei como, que eu estava sentado, há dois dias que eu não podia levantar. O fato do Joaquim me chamar, eu me levantei com ele, me arrastando, tava andando, chegando na moviola, pra fazer a música do Padre e a Moça. E nesse momento, eu tive um momento em que eu botava assim umas beatas que apareciam no filme, e eu digo "vamos deixar essas beatas fazendo uma zoeira, um zumbido na música do filme"... Porque para mim beata sempre foi uma coisa negativa. Então vamos botar as beatas uivando, ganindo e chorando. E Joaquim: "Puxa, você é engraçado, você ao mesmo tempo que é conservador, você é racionalista, mas você é muito ousado". E ele estava até com medo de deixar mas ficou assim. Nisso nós chamamos o Guerra Peixe para fazer arranjo, era um amigão meu. Ele era fã meu e eu fã dele. E eu acho que foi um trabalho legal, juntando os amigos todos. Com o Paulo José, que já era amigo antigo do Teatro de Arena, Helena Ignez, Mário Carneiro. Foi uma coisa muito gratificante fazer a música desse filme.

É bastante diferente dos seus trabalhos até então...

Não, é preciso não confundir o Carlos Lyra compositor com o Carlos Lyra bossa nova. O bossa nova é apenas uma faceta do compositor. Eu também faço outro tipo de música, até umas coisas eruditas, um prelúdio para piano meio chopiniano, musiquei Machado de Assis e Castro Alves, que é completamente diferente daquilo que a gente está acostumado a ouvir como bossa nova. Chega o João Gilberto, um sambinha bossa nova, e todo mudo acha que bossa nova é batidinha de samba. Não é não, bossa nova tem baião, tem modinha, tem o diabo a quatro. Então ou bossa nova é tudo que eu fiz, inclusive a música do Padre e a Moça, ou então bossa nova é um sambinha, Lobo Bobo, Você e eu, e o resto é o compositor Carlos Lyra em outras facetas.

Além de ser distante da música popular, até por contar com o Guerra-Peixe, a música tem um aspecto religioso...

Tinha isso, porque tinha a coisa das beatas. O próprio tema do filme, do poema do Drumond, tinha um padre... Então eu cometi coisas incríveis. Eu peguei até um tema de que aparece nas missas, Dias Irae... (Lyra canta um dos temas do filme), e eu botei isso como parte da música. Eu inseri aquele troço na minha composição e inseri ali. E outra coisa que eu também botei, era uma música que se tocava muito na França, em casamentos (Canta). Tinha até uma letra em latim que eu aprendi no colégio Santo Inácio. Então, essa música eu inseri ali também, que era uma música religiosa que se cantava muito em latim, na França, mas no Brasil cantava-se pouco. Mas eu aprendi isso no Santo Inácio. Inseri esta melodia, pra mim está trabalhada e posta, junto com Dias Irae. A música ganhou prêmio de ‘65 e ‘66, juntaram toda a premiação naquela época.

E como foi a gravação das vozes das beatas?

A gente soltou o mulherio, o coro, no estúdio, e saiu cantando qualquer coisa. Deixava vagar e soltar a voz. Joaquim ficou horrorizado, mas depois ele disse: "achei legal isso, mas eu não tive coragem, você é muito audacioso" Foi aí que ele me cobriu de elogios. E eu sempre gostei de criar música de filme. A minha orquestração para o filme Gimba, de Flávio Rangel eram seis pares de tamanco, uma gaita e um violão. Inspirado naqueles filmes do Kurosawa, aqueles sons que você não sabia de onde vinha. Eu falei "eu quero fazer assim, mas com seis pares". Então seis pares vinham, você não sabia de onde vinha aquele som estranho. Essa coisas, eu gosto de mexer, fazendo música pra filme, brincar com isso.

Você já conhecia o Guerra-Peixe?

Já, o Guerra Peixe era o meu orquestrador principal na Rádio Nacional, ele e o Radamés. Aliás, eu fui chamado, antes da Revolução, antes do Golpe, o Dias Gomes, que era o diretor artístico, me chamou pra ser o diretor musical da Rádio Nacional. E fui para lá trabalhar nesta rádio. O Dias Gomes dizia: "esse negocio da tevê não pegou, um horror, precisamos prestigiar a Rádio ainda...". Quem te viu, quem te vê. E a gente foi lá com a Rádio essa coisa boa, maravilhosa. E conseguimos fazer coisas boas na Rádio. Tudo que eu fazia o Guerra Peixe chegava e orquestrava pra mim, ele e o Radamés. Ele trabalhava muito comigo. Minhas músicas com orquestração desses dois. E o Guerra ficou muito meu amigo nessa época, ele fez um elogio para a minha música Aruanda, "Essa é a música mais importante do cancioneiro brasileiro popular, estrutura A-A-B-A, é assim, estrutura de sonata, você faz certo, certíssimo". Aquelas coisas dele, evidentemente que é só uma visão parcial dessa realidade, mas era muito engraçado ele falar essas coisas, esses depoimentos, que é muito gratificante para mim, né?

Mas é coerente com as opções estéticas dele, que se ligou muito na corrente nacionalista da música erudita...

Agora, um cara desses me fazer um elogio, eu tenho que pegar e transformar numa comenda e andar com ela no peito, né?

Você chegou a se relacionar com o pessoal da música erudita?

Não, minha posição com música erudita era uma coisa muito eclética... Eu, pra mim, o maior compositor é Giacomo Puccini, eu detesto ópera, mas adoro Puccini... Não suporto Verdi, eu não suporto Beethoven, não aguento ouvir Bethoven, me causa alergia. Mas eu tenho uma paixão por Villa-Lobos, por Stravinski, por Prokofiev, por Ravel e Debussy sobretudo, que são as grandes influências da bossa nova. Então eu tenho paixão por uns, e outros eu não consigo ouvir. Beethoven, Haendel, eu não tenho paciência para essa gente... Adoro Bach.

Com relação às querelas entre nacionalistas e modernistas, dodecafonistas, você se interessava?

Não me afetou, e muito pelo contrário, nem me interessei por isso. Eu não tinha posições. A minha posição com a música era de sentar e ouvir. Tem posições muito radicais, por exemplo, eu conheci Vinícius, e ele ainda guardava um vestígio de achar que Orson Welles era o maior cineasta do mundo. E eu, quando vi Cidadão Kane, não sei como aguentei até o final do filme. Pros cineastas havia lições fantásticas, mas... aquele tipo de coisas com uma pressão muito romântica demais, não me atrai, eu sou clássico, eu gosto do classicismo. O neo-romântico e o neo-clássico, é o Villa Lobos, por exemplo, é o Stravinski. Agora, coisas pesadas do romantismo como Goethe, eu realmente estou fora.

E sobre a visão do CPC sobre a bossa, musicalmente?

No CPC, na verdade, é o seguinte: a música popular brasileira mudou de bossa nova para MPB. Ali começaram a aparecer o Chico Buarque, o Gilberto Gil, são todos, confesso por eles mesmos, filhos da bossa nova, filhos dessa bossa nova, até o próprio Tom Jobim, que se diz da direita festiva, mas junto com Vinícius de Moraes fez o Morro não tem vez, e não estava mais fazendo Corcovado, já tinha dado uma outra...

Você acha que ele estava seguindo esse caminho?

É, "tristeza Nao tem fim..", ele juntava com o Vinícius e fazia música política. O Tom Jobim era inteiramente político, a música dele era inteiramente política, progressiva, não tinha nada a ver com a piada da direita festiva, que ele se dizia, era progressista. Politicamente corretíssimo.

Mas as canções eram cada vez mais sofisticadas...

É, porque a bossa nova, na primeira fase, tinha uma coisa de forma que era muito válida, você encontrar a forma da harmonia, da melodia, da letra, aquilo era muito importante, aquilo também deu uma virada na música popular brasileira. Porque não tinha música de classe média, não tinha uma coisa brasileira equivalente ao jazz. Tinha o chorinho, mas não era popular. A bossa nova, como tinha letra, era cantável, ela se propagava pelo mundo inteiro. É uma música de classe média do mundo inteiro. Não é só no Brasil, ela tem comunicação nos lugares mais recôndidos do mundo. Bossa nova entra, porque ela entra pela classe média, que é uma força muito grande neste mundo. Todos aqueles que se opõem a ela, e que são de esquerda , e que pretendem um dia, superar essas contradições de classe... Classe média é uma contradição a ser superada, e olha que tem muito trabalho aí pela frente, porque é fogo. Classe média é um negócio e a música bossa nova é uma música de classe média. É por isso que ela tem essa força internacional imensa. Durante anos, durante os quarenta anos da bossa nova, ela tá aí firme. Mas ela precisava sofrer uma modificação, porque já estava ficando tatibitate com o negócio do amor e flor, a flor e o amor, tava ficando, né?... vai ficando meio comprometedor para a gente. Não aguentava mais aquilo, foi ali que, quando eu entrei para o CPC, eu comecei a mexer com aquilo. Comecei a procurar Zé Ketti, Nelson Cavaquinho, João Do Vale, essas coisas pra tomar um banho de realidade brasileira, pra transformar a minha música. E graças a Deus eu estava certo, porque dali pra frente comecei a fazer Maria do Maranhão, comecei a fazer a Influência do Jazz, fiz a Canção do Subdesenvolvido, que é uma canção bem-humorada, mas é uma canção definitivamente política, de protesto.

Mas a "Influência do Jazz" sempre foi tocada jazzificada...

Ela foi tocada com influência do jazz, mas ela não pretendia ser tocada como jazz. O Tom Jobim até me gozou, ele dizia "Essa Influência do Jazz é uma música subliminar...". Mas ela não tinha uma postura jazzística, ela era uma crítica da demasiada influência do jazz no samba, ela era um samba, samba bossa nova. Agora, os instrumentistas que tocam ela, até hoje, sempre improvisam direto em cima da Influência do jazz. O feitiço se voltou contra o feiticeiro. Os jazzistas todos se encantam e improvisam, acho que nem se ligam na letra... Muito engraçado...

E os boatos de que você teria largado a música e virado astrólogo?

Não, isso é lenda... Astrologia, xadrez, sempre foram hobbies paralelos. Agora, evidentemente que um compositor como eu, chega no Brasil medíocre, dominado pela ditadura do Médici, não estão interessados em bossa nova, em cultura ou o que seja, a única coisa que vingava era TV Globo e suas novelas, a música de consumo imediato, o teatro digestivo, o cinema pornô e uma música descartável. Então, nesse clima, as pessoas prestam atenção no que Carlos Lyra está fazendo. Por exemplo, a Revista Caras, eles querem saber o que que ele tá fazendo...? Eles foram na minha casa, e eu estava fazendo mapa astral, jogando xadrez. Então eles vão dar notícia sobre isso. Acharam, "Ah, isso é bom"... Porque as pessoas da mídia, a nossa mídia inteiramente corrupta e sinistra, ela fica procurando o quê que é bom para vender jornal, o que é bom para vender revistinha. E ficaram entusiasmados... Então teve uma época, especialmente durante um mês, que todos os jornais, todas as revistas publicaram: O astrólogo! E todos ficaram entusiasmados. A monocultura no Brasil é assim, é rápida, e virou astrólogo, virou monocultura. Mas eu nunca me dediquei mais à astrologia, agora mesmo estou fazendo o mapa astral para o filho de um amigo meu que nasceu, estou fazendo o mapa astral pra ele. Isso quer dizer que eu estou me desviando da minha carreira musical para...?, não, isso é apenas um hobby, eu gosto muito de fazer isso como eu gosto de jogar xadrez, como eu gosto de ler. São apenas partes da minha cabeça. Eu nunca larguei a música para fazer astrologia coisa nenhuma.

E seus mais recentes trabalhos, seus últimos discos, como se saíram?

Os últimos discos, feitos a duras penas, foram o 25 anos de Bossa, no Jazzmania, depois o Bossa Lyra, feito para o Japão, que depois a BMG lançou aqui, mas já tirou de cartaz, depois fiz um disco chamado Carioca de algema, que tem várias músicas de homenagem ao Rio e também foi distribuído pela, EMI, que foi considerado um disco de resistência, tiraram de catálogo também... Tem letras de Millôr Fernandes e de outros também, Paulo César Pinheiro também, bastante coisa... Então, a verdade é que há um desinteresse absoluto no Brasil pela cultura em geral. Eu fico vendo internet, a informática, qual seria a cultura e as informações que os jovens estão tendo. Porque a coisa foi para um buraco tão grande que hoje em dia você encontra jornalista escrevendo mindingo ou coisas parecidas. Escrevem coisas apavorantes. Mas os jornalistas nos anos 60, naquela época, as pessoas escreviam feito Nelson Rodrigues, Otto Lara Rezende, Vinicius de Moraes... Hoje em dia a indigência cultural é muito grande. "Você conhece Carlos Drummond? Já ouvi falar". É nesse nível. Então, a gente sabe que estamos num nível de mediocridade muito grave,mas sabe também que ainda tem pessoas na resistência, se dedicando à cultura, ao cinema, ao teatro. Mas cinema é muito caro. Teatro, para você montar uma peça, tem que ter patrocínio, por isso que se você não tiver três ou quatro atores da Globo, sejam bons ou não, você não tem uma peça de teatro. E disco, música ficou caro também. Você consegue fazer shows em lugares alternativos, faculdade e tal... E se você quer montar um show no teatro, também está difícil... Porque custa uma fortuna, botar o som, botar isso, botar aquilo... Então, está caro e as pessoas não querem investir, porque sai caro. Então é muito mais fácil você nivelar por baixo, faz um pagode e joga numa garagem, num estacionamento qualquer, bota um som lá e vende dois mil, três mil ingressos, nivela por baixo e segue em frente, porque é nisso que nos dedicando aqui no Brasil e estamos sendo sobejamente recompensados, porque isso é o que está acontecendo com essa cultura aqui.

Voceê tem a expectativa de descobrir novos nomes surgindo numa nova fase de produção intensa?

Pode ser que agora, com a virada do século, uma pretensa restauração e respiro da economia, pode ser que aconteça alguma coisa. Mas eu prefiro ver primeiro para garantir.

Você tem acompanhado o Cinema Brasileiro?

Não, o cinema brasileiro acabou, como acabou a música brasileira, depois dos 60. Aquele negócio que tinha, aquele surto cultural, continua a mesma coisa, você vai ouvir Caetano, Chico Buarque, mas você não as coisas novas, é difícil. Pode ser até que tenha, e deve ter, mas não há maneira de promover, porque é muito complicado, a não ser que seja apadrinhado por um monstro sagrado, não vai acontecer nada. E as pessoas que aparecendo, nao me dizem nada também, porque eu faço uma grande diferença entre música para você ouvir e música com letra maiúscula. Tem muito pouca. Com a morte do Tom Jobim nós perdemos um baluarte importante, com isso. Ainda bem que tem a memória, porque quando as pessoas cansarem de tocar a Garota de Ipanema, Insensatez, Meditação, essas coisas, não sei o que vai ser de nós. Porque por enquanto ainda estão tão gravando e tocando essas músicas. Você vê o Dori Caymmi aí, com músicas maravilhosas, e ninguém sequer lembra que Dori é um grande compositor. Com letra e música com M maiúsculo. O Theo de Barros, em São Paulo, um grande músico, e ninguém sabe quem é... E vai por aí. Os nossos grandes compositores conhecidos são grandes poetas, não são grandes compositores, são grandes poetas. Como compositor musical, não apareceu nada que me interesse, que me faça subir pela parede, como eu subo pela parede com Stravinski, com Ravel e Debussy e como eu subo pela parede com Tom Jobim.

Entrevista concedida a Clara Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano