Entrevista com Alice de Andrade

A gente queria que você
falasse sobre os processos de restauração dos filmes do
Joaquim Pedro, especificamente de O Padre e a Moça.
Essa história toda
de restauração começou em 98, fazia dez anos da morte
de meu pai, e então eu e meus irmãos e a Ana Maria Galano,
que é a última mulher dele, começamos a nos mexer
pra tentar, por um lado, poder repor o acervo em boas condições
de conservação, porque a gente sabia que...(interrupção
para ajeitar o microfone)...toda essa história começou em
98, fazia dez anos da morte do meu pai, e a gente tinha tido a proposta
de um distribuidor pra vender os filmes, e a gente já tinha verificado
antes e verificou mais ainda, que o acervo tinha problema de preservação,
os filmes tinham poucas cópias, as cópias já estavam
velhas, estragadas. A gente pediu às cinematecas, onde estão
depositados os negativos, pra fazerem laudos do estado dos masteres, que
são os suportes que permitem a tiragem das cópias. Então,
quando teve um laudo que não era bom, com vários filmes
com problemas, entre os quais O Padre e a Moça, que simplesmente
não tinha mais som, porque em geral um negativo original, que é
o material que vem da filmagem, e passa por um laboratório, é
montado, cortado e a partir daí você pode copiar o filme,
esse negativo original não serve pra tiragem de mais de dez cópias.
A partir de dez cópias, ele já está estragado. Então
simplesmente é um absurdo total se tirar cópia a partir
de negativo original, a não ser que ele seja um filme que não
vá ter muito alcance, aí você tira só três
cópias, quatro cópias, até aí isso ainda se
justifica, mas no caso de um filme que tem pretensões de público,
você tem que imediatamente fazer um internegativo, porque cada internegativo
permite a tiragem de dez cópias - quer dizer, teoricamente, né?,
tudo isso num padrão internacional de qualidade, quer dizer, claro
que aqui a gente tira vinte, trinta - mas teoricamente um negativo origina
dez cópias. Macunaíma, imagina, é um filme
que rodou mundo, que teve um tremendo sucesso, evidentemente tinha servido
pra tiragem muito mais do que dez cópias, né?, e só
quando os filmes já estavam com problema de preservação,
com os negativos cortados, ou faltando perfuração, com rasgão,
toda essa espécie de problema mecânico, mecânico e
químico, que às vezes ocorre com o suporte fílmico,
só quando já haviam os problemas é que então
ia-se fazer o internegativo. Isso porque, bem, você pode entender
- diante de uma arte nascente como era, na época, o cinema novo
- que todo mundo pensasse em fazer os filmes e não pensasse em
cuidar deles. Mas hoje...
Isso é um problema
de muito tempo, centenas de filmes cujos negativos se perderam...
Pois é, mas acontece
que é um processo que continua, né? Então, no ano
2000, com um ministério que realmente se ocupa do cinema, com uma
secretaria que trata exclusivamente disso, é tempo de, primeiro,
se restaurar o nosso patrimônio, porque os filmes feitos desde o
início da história do nosso cinema, há muitos filmes
muito bons, então que pelo menos estes sejam imediatamente e o
mais rapidamente possível, restaurados, que haja uma cultura de
restauração, de preservação, de oferecimento
de cópias pro público com um mínimo de qualidade,
desses filmes que permitem a nós repensar o cinema brasileiro,
discutir o cinema brasileiro, formar um público, porque são
filmes ótimos e que têm o maior interesse, são muito
atuais e que têm o maior interesse para o público em geral,
porque permitem, imagina, permitem você entender a sociedade brasileira
numa época dada, não é? Então lógico
que isso é da maior importância. Bom, voltando ao início
da história, em 98 uma amiga também na França resolveu
que ia fazer um festival e que iriam homenagear o meu pai. E a gente então,
ela me chamou pra trabalhar com ela no festival, e a gente saiu procurando
as cópias, e foi se dando conta de que simplesmente não
havia cópias, e que a gente tinha a possibilidade de pedir a tiragem
de novas cópias pros diversos parceiros que ela tinha, mas que
não havia negativos. Então eu fiquei muito deprimida com
isso, ainda mais porque estava se aproximando a data, e eu resolvi que
eu ia parar de trabalhar com ela e trabalhar nisso. E a partir de então,
isso aí foi em março de...
.. 97?
... 97, eu acho... E, então,
a partir daí eu comecei a trabalhar nisso. E na época da
Copa do Mundo - não, foi em 98, março de 98. Porque na época
da Copa do Mundo, o governo brasileiro promoveu no Carrossel do Louvre,
em Paris, onde eu moro, uma manifestação muito grande de
cultura brasileira, e que tinha, entre outras coisas, um festival de cinema.
Então eu escrevi pro Ministério da Cultura, escrevi pra
Secretaria de Assuntos Especiais, dizendo que devia haver - porque era
uma coisa sobre futebol, claro, era por ocasião da Copa -, que
deveriam passar o Garrincha, passar o Macunaíma,
no festival, como representante da filmografia brasileira, e passar o
Aleijadinho, já que eles tinham lá dentro uma exposição
de arte barroca. E batalhei muito por isso, e eles: "não";
estavam decididos a fazer uma mostra só com os filmes novos. Então
a gente resolveu pedir pra esse pessoal mostrar o filme lá, na
Secretaria de Assuntos Especiais do governo, pedir ao Ministério
da Cultura que... quer dizer, a visibilidade dos filmes, seria a desculpa
pra justificar a restauração. Então eu comecei a
pedir pra todo mundo pra fazer muitas delas, né?, e uma das entidades
que realmente apoiou essa proposta foi a União Latina, que mandou
uma carta dizendo que se interessaria em projetar os filmes dali a não
sei quanto tempo, e o Festival de Biarritz. Então, em vista de
um pedido de retrospectiva, em vista disso e tal, eu consegui que afinal
o Ministério da Cultura financiasse a restauração
do Macunaíma. Mas vocês estão mais interessados
no Padre e a Moça? É sobre O Padre e a Moça?
Acho que está fora do assunto, né? Então a gente
acabou o assunto do Macunaíma, cortou aí, e, bom,
quanto a O Padre e a Moça, o que acontece é que uma
vez restaurado Macunaíma, o filme foi copiado, muito bem.
O Padre e a Moça estava sem som e com a imagem já
em curso de restauração, mas com os próprios recursos
do MAM, sendo feito muito devagarzinho, e o curador da Cinemateca do MAM
não estava satisfeito com o resultado que ele tinha obtido e queria
refazer algumas coisas. Então, como havia outros filmes com problemas,
afinal o Ministério da Cultura me ouviu, e resolveu financiar então
tudo o que havia de urgente, que eles chamavam de um projeto minimalista
de restauração, que era o que havia de urgente, refazer
esse som do Padre e a Moça, fazer uma restauração
de som do Macunaíma, que também estava com problema
de som depois da tiragem de várias cópias, porque - mais
uma vez - as cópias foram tiradas a partir do original, e no processo
de tiragem de cópias os laboratórios brasileiros não
são a melhor maravilha do mundo, e de novo o negativo original
se estragou. E a imagem do Padre e a Moça seria então
completada e os outros filmes teriam um internegativo financiado, pra
então, a partir daí, as cópias ficarem intactas na
geladeira e a gente trabalhar com os internegativos. Então foi
o que foi feito. O Padre e a Moça, a gente já estava
há alguns anos com todas as cópias do filme bloqueadas porque,
no caso, como não havia mais negativo, a gente tinha que tirar
o som das cópias, de algumas cópias, das melhores cópias,
disponíveis, então a gente estava prendendo o filme, o filme
não podia mais ser visto. Então, quando o Ministério
financiou isso, eu peguei uma cópia da Cinemateca de Lisboa, uma
cópia na Cinemateca Francesa e uma cópia aqui que tem depositada
na Funarte, e levei as três, a gente num laboratório francês,
especializado nisso, nós fizemos entrar as três cópias
em paralelo no computador, e sincronizamos essas cópias por um
telecine de imagem semi-restaurada, quer dizer, restaurada mas com a qual
o conservador ainda não estava satisfeito. Então foi uma
maravilha esse processo, porque primeiro você vê quais cópias
estão inteiras, né?, quais estão faltando pedaço,
e você sincroniza todas, então se essa tá faltando
um pedaço você põe um silenciozinho aqui... tinha
uma que realmente tava inteirinha mas que tinha um fundo (imita um som
constante e grave), a cópia brasileira, justamente, que eu acho
que foi tirada de uma segunda ou terceira leva, porque justamente estava
mais nova, né? E as outras duas cópias que estavam depositadas
na Europa estavam mais bem conservadas e tinham uma qualidade de som regular.
Então esse processo de se juntarem os três sons, ou seja,
a cada trecho você vê qual que está melhor, junta todos
em um e depois faz os processos possíveis, que existem hoje, de
limpeza de ruído, de freqüência, do que dificulta o
entendimento do filme... E sempre sincronizando de acordo com o vídeo,
não é?, às vezes o ator fala outra fala, que não
é o que disse o dublador, e tal...
Então a cópia
já está pronta, a parte do som...
O som tá ali, tem
um DAT ali, e eu tô levando pra São Paulo, vai o original
no ótico, a Cinemateca Brasileira tá fazendo o novo contratipo,
que é o internegativo em P&B - se chama contratipo -, então
eles estão fazendo isso a partir do negativo original copiando
imagem por imagem destes tais cinco rolos com os quais o conservador do
Rio não estava satisfeito. Então, eles vão fazer
isso nas próximas três semanas, esse ótico deve ficar
pronto rápido, não é?, a Secretaria para o Desenvolvimento
do Audiovisual já autorizou, então vou mandar fazer amanhã
e normalmente daqui a um mês o filme vai estar pronto. Mas o que
se chama nesse caso de uma restauração, não é
uma restauração, é uma salvaguarda, quer dizer, a
imagem está estragada - ponto. Então, pra corrigir os problemas
de arranhão... porque, o que faz o negativo original? Se arrebenta,
por exemplo, ele é colado, e quando você filma quadro a quadro,
você filma o rasgão, evidentemente, então, a marca
da coisa, é claro que ele pode a partir dali correr normalmente
numa máquina de laboratório pra originar cópia, mas
a marca do acidente permanece, então o filme fica podendo servir
à copiagem numa boa, mas cheio de cicatriz, né? Então,
agora, tem um pessoal, a Andrea Queiroga, que é uma moça
que trabalha com distribuição, que é muito séria,
e muito bacana, e que se associou com um alemão, que é especialista
em financiamento, e tal, e eles conseguiram uma sociedade com um laboratório
especializado em restauração, que é um laboratório
multinacional na Europa, então eles têm sede em Londres,
sede em vários lugares, e o departamento de restauração
fílmica fica na Bélgica. Então, a gente tá
assinando um contrato com eles, pra eles então, se a gente chegar
a um acordo, eles poderem recuperar os filmes. E aí o processo
é escanear e então restaurar como se restaura uma fotografia,
né?, só que aí o computador calcula e faz o mesmo
conserto em vários fotogramas de uma vez, e tal, mas são
máquinas muito caras, é um processo extremamente custoso,
e o mérito desses dois aí que têm uma produtora chamada
Limite, que tá fazendo esse trabalho, é de ter convencido
uma empresa internacional grande como é essa, o laboratório
se chama Maxi, a entrar de parceiro do Brasil na restauração
dos filmes, que são muitos. Então eles estão fazendo
normalmente o Macunaíma de graça, entrando de sócios,
né?, Macunaíma seria o primeiro filme que inauguraria
esse projeto, então eles estão fazendo toda a restauração
de imagem de Macunaíma e a restauração de
som de graça, a partir do negativo original e do material que eu
tinha encontrado na França e que serviu pra fabricação
do internegativo que é esse que tá sendo usado, fui eu que
fiz lá na Europa com o material que tava lá, não
com o negativo original, então a partir dessas duas matrizes a
gente vai de novo fazer esse mesmo processo que foi feito com som, só
com a imagem e corrigir então a imagem toda e aí, sim, o
filme fica preservado, e aí ele é gravado em DV e pode ser
comercializado em todos os formatos e, bom, até segunda ordem,
o DV é um formato definitivo, e aí acaba a minha luta, a
minha cruz...
Mas essa cópia
do Padre e a Moça, quando estiver pronta, vocês vão
fazer cópias, né?, a partir dela. Mas a matriz, por exemplo,
vai ficar morando onde, no MAM?
Não, acho que vai
morar na Cinemateca Brasileira, que é um organismo atualmente no
Brasil, autorizado pelo British Film Institute, a restaurar filmes. Então,
na Cinemateca Brasileira há um serviço de restauração,
os técnicos são competentes, eles são treinados fora,
então eles são o tentáculo do Ministério da
Cultura para a preservação fílmica. Então,
agora, as outras matrizes sem problemas, pode haver, por exemplo, duas
matrizes a partir do mesmo negativo, né?, então o ideal
seria que houvesse uma matriz no Rio, uma matriz em São Paulo,
um internegativo ou um contratipo, e cada vez que se precisasse de cópia,
esse material originaria cópia seja no Rio, seja em São
Paulo, e aí sim a gente estaria com tudo seguro. Mas, além
do projeto da Andrea, que em princípio não envolve todos
os filmes do meu pai, a gente fará então o projeto complementar
através das leis de incentivo, e tal, e fechará a preservação
de todos os filmes. É o que se espera, se a gente tiver energia
pra isso... Cópias não contam, estão espalhadas,
tem uma parte no Rio, na Cinemateca do MAM, uma parte em São Paulo,
na Cinemateca Brasileira, e uma parte com um produtor que ele cuida muito
bem dos materiais, e os materiais que estão com ele não
têm muito problema.
Esse produtor é
o Barreto?
Não, um cara de São
Paulo. Não, Barreto tá na Cinemateca do MAM. Não,
é o César Mêmolo, da Lynx Filmes, que tem um lugar
apropriado e guarda as latas dele, e as cópias são ótimas,
e tem cópias legendadas, e tem internegativo, e tem tudo que precisa,
e tem press-book, tem cartaz e tem tudo. É o único. O resto...
O Guerra
Conjugal tá legal?
Guerra Conjugal foi
produzido pelo Walter Clark, que morreu. Então, é o mesmo
problema. Guerra Conjugal tá nesse processo minimalista,
ele e Os Inconfidentes devem ter um internegativo feito. Todos
os filmes, Couro de Gato, Brasília, os que tão
fora dessa lista que eu dei. Quer dizer, Os Inconfidentes, Vereda
Tropical não têm internegativo. Justiça seja feita,
porque foi também produzido pelo César Mêmolo... Mas
não tem internegativo só dele. E os outros dois... Couro
de Gato tá direito. Direito, entenda-se, é ter um contratipo.
É claro que tá rasgado, arranhado... Brasília
tá desbotado... Mas existe um contratipo, um internegativo. Então,
pode-se fazer cópia, o filme tá vivo.
Os que realmente correram
risco, mesmo, foram ‘Macunaíma’ e ‘O Padre e a Moça’?
Tudo corre risco, né?
Agora... Porque na verdade, eu acho que acaba mesmo é se não
tiver mais cópia, e se a imagem for deteriorada por uma quantidade
grande de fotogramas, porque você, bom, pode aproximar, via computador,
uma imagem de outra, fazer meio um segmento de animação,
que o computador adivinha, entre esse movimento e esse, que ele decomponha
o movimento de acordo com o tempo. Duração de ação.
Mas certas coisas o computador não pode inventar, né?
É uma coisa assim
muito especial, porque, sei lá, de uns quinze dias a um mês
pra cá, teve uma retomada assim de se falar do Joaquim...
É, porque diante de
tanto esforço, diante da objetividade dessa realidade, quer dizer,
a gente tava indo pro ministério já com tudo organizado,
porque é muito trabalhoso, tudo isso, né?, você inventariar,
como é que estão as cópias, os negativos, não
sei o quê, saber se você restaura, de que materiais você
vai dispor, quais você vai escolher, tudo isso é trabalho.
Então a gente já tinha feito esse trabalho. Então,
pro Ministério, que espera começar realmente um programa
de restauração mais amplo, pro Ministério, a gente
era os candidatos ideais, né?, porque já estava com tudo...
Então foi isso que disse o José Álvaro Moisés,
que ele faria um projeto de restauração que começaria
pondo em dia todos os filmes do meu pai. E que depois, então, em
função disso, e acho que em função de também
promover essa consciência, né?, da preservação,
ele decidiu homenagear meu pai nesse prêmio aí que eles criaram.
E fazer uma retrospectiva em São Paulo e no Rio, acompanhando esse
prêmio, tudo isso foi idéia do José Álvaro
Moisés. E fazer o catálogo, que ficou muito bonito...
Essas novas cópias
quando estiverem estalando, os internegativos quando estiverem nota 10,
vocês pensam em fazer mostras?
É, isso aí
a gente pode fazer, o governo fez essa, agora a gente faz o resto, né?
O governo fez esse primeiro passo muito importante, agora, a partir daí,
o projeto tem que viver por si só. São filmes muito atuais
e eu acho comerciais. Se forem bem lançados, eu tenho certeza de
que é um negócio, é um bom negócio.
O Padre e a Moça realmente
eu não conheço quase ninguém da minha geração
que tenha visto, é quase impossível as pessoas verem, nunca
viram no cinema, então eu tenho a maior curiosidade, eu queria
ter ido ao MAM no sábado (seria apresentado na programação
da Mostra Rio, do Grupo Estação), pra ver qual era a reação...
Não passou, a cópia
tá presa.
Ah, não passou?!
Não.
Eu soube, um amigo meu
foi lá e ficou danado, soltou os cachorros em cima do Ministério...
Soltou os cachorros em cima
da pessoa errada...
Você não
acha que o Secretário deveria ter feito alguma coisa?
Ele fez, mas não adiantou.
Ele, não, as pessoas competentes. Mas depois a gente fala sobre
isso. Senão vai sair do tema... mas... imagina, vocês já
viram filme restaurado? Já viram La Belle e La Bête?
É lindo, isso é a restauração digital, você
pode restituir ao filme todas as possibilidades de uma fotografia em branco
e preto bem tirada. Então, o filme volta a ter, a oferecer as possibilidades
que ele oferecia na época, e O Padre e a Moça é
um filme em que a fotografia é muito importante, né?
E não é
nem um pouco datado, comparativamente a alguns outros filmes dessa época,
que foram feitos contra o golpe, etc. e tal...
É, uma história
universal, uma história de amor e... uma língua muito bonita,
os diálogos muito bonitos, os atores muito bons. O técnico
de som ficava maravilhado. Falava: "que vozes...!" (Alice
imita o francês interpretando um dos atores de O Padre e a Moça)
"Nada!" Ele, né?, ele é francês,
aprendendo, ficava olhando a Helena Ignêz, dizendo (interpreta):
"que é que você tem?"
Quem era o técnico
de som?
O que fez a restauração
sonora. Chama-se Henri Dupont, ele que fez tudo. E, na restauração,
no processo de restauração, graças a essas grandes
tecnologias, apareceram sons que a gente não escutava nas cópias.
Você via a cópia, assistia a cópia, e não escutava
o som, tipo: rio, que passava longe, roupa batendo no vento, um monte
de sonzinhos assim pequenininhos, grilinhos, não sei o quê...
que você não ouvia. Aí quando juntaram as três
pistas e ele limpou, e saíram as freqüências inoportunas,
o som do filme mesmo apareceu. E, puxa, foi emocionante...! E ele ficava,
né?, dizendo "que vozes, que vozes!". E chamava:
"venham ouvir": (interpretando) "Nada!"
Bárbaro. E aí quando gritava "Mariana",
ele ficava (Alice imita o francês movimentando os lábios
com dificuldade; risos). Ele repetia tudo errado, né? (risos) Aí
ele pegou um assistente português, que de vez em quando dizia pra
ele o que era. "O que é que ele disse?" É
um cara muito bacana, esse, se chama Henri Dupont. E que mais que eu posso
dizer pra vocês? É isso, o mais engraçado é
isso.
Você poderia falar
só um pouquinho da reação do seu pai, do que ele
se lembrava em relação ao filme...
Já contaram, não?
Outras pessoas... Não, porque o problema é você saber
que não pode usar uma entrevista mais de dez minutos. Então
não adianta, você querer usar minha entrevista dez minutos,
não vai poder, então...
Não, assim, se
você tiver...
Eu acho que eu posso falar
da casa (A casa onde Joaquim Pedro morou, cuja demolição
fôra documentada).
Você já deve
estar cansada...
Não, eu tô a
fim de falar da casa. A casa, aquela casa era muito...
Era do Lúcio Costa,
não?
Não... A parte de
baixo meu avô comprou pronta. A casa de baixo eles compraram já
pronta, numa época em que Ipanema não devia ter muita coisa,
né? E minha avó achou a casa, e convenceu meu avô
a se mudar e a ir pra lá, meu avô não queria, e tal...
E depois, quando o meu pai ficou adulto, e se casou, eles tinham dado
apartamento pros outros filhos e resolveram ajudá-los a construir
ali. A idéia de construir em cima, aonde o meu avô antes
tinha um escritório recuado no terceiro andar, porque a casa tem
dois andares em baixo... E aí o meu avô deixou que eles demolissem
o escritório e que construíssem lá em cima essa casa
que, aliás, transfigurou o projeto inicial, e a casa seria tombada,
não houvesse sido construída aquela coisa lá em cima,
que por dentro é muito bonito, mas por fora acabava com o projeto,
né? Então, todo mundo, todo o cinema novo passou por ali,
não é? As reuniões políticas de cinema, tudo
se fazia lá...
Terra em Transe
foi filmado lá, não é?
Terra em Transe foi
filmado lá, houve grandes brigas, meu pai e o Mário Carneiro
se atracando naquela sala, tinha uns socos de faroeste ali dentro, ante
os olhares desesperados das filhas de ambos, que eram amicíssimas...
Qual o motivo da briga,
exatamente?
Não interessa. Um
era produtor do outro, e sei lá por que razão, brigaram.
Coisas que acontecem no cinema.
Mário contou a
relação dele com o Joaquim, ao mesmo tempo que se gostavam,
eles brigavam o tempo todo.
É. Bom, eles se gostavam
muito. Todos os filmes passavam por lá, até o meu, Dente
Por Dente, foi feito lá. E você entrava em casa, encontrava
o Chico Buarque na sala e todo mundo discutindo, e...
Todo mundo tinha o telefone
de lá...
É. E o telefone de
baixo, também, tem muita gente que sabe de cor. A casa foi cenário
de grandes festas, né? Antológicas... E essa casa tão
querida e tão bonita viu também fugas de meu pai pela janela,
na época da ditadura, né? Bater na porta a polícia,
ele sair, ele sair pelo telhado, descer pela frente... Grandes ladrões,
local de grande trânsito de ladrões... Tinha um tradicional,
um "paraíba" baixinho com as pernas cabeludas que entrava
de short pela janela, e passeava pela casa quando tava todo mundo dormindo...
Teve uma história que Cristina e o meu pai brigaram e Cristina
tava dormindo no sofá da sala e aí acordou e viu um cabeludo
descendo, com as pernas cabeludas, descendo as escadas, e ela tava meio
dormindo, e falou "Joaquim...?", e aí o cabeludo
se aproximou, e meu pai era também cabeludo, e aí ele se
aproximou e ela disse: "Joaquim!", ele pulou por cima
dela na janela e sumiu... e era um ladrão. Ela: "Joaquim!!"
(risos), pensou que ele tava abandonando o barco, se suicidando... (risos)
E o outro, como um gato, escafedeu-se pelo telhado, depois pela árvore,
depois pelo muro... E houve grandes roubos, ali também, muito interessantes,
uma vez, do ladrão entrar com todo mundo dentro da casa, vinte
pessoas dentro da casa, entrar, fazer um circuito perfeito, roubar televisão,
não sei o quê, e minha avó velhinha, da janela, ver
sair a televisão e ser posta numa bicicleta onde já esperava
outro malfeitor, e a avó dizer: "que é que tá
havendo com essa televisão?" e o ladrão dizer:
"tô levando pra consertar", e ela disse: "gatuno!"
E ela tinha sempre um vidrinho de amônia, pra jogar nos ladrões...
(risos) Então foi buscar o vidrinho de amônia: "Gatuno!
Gatuno!" E o ladrão saiu pela contramão de bicicleta
e nós de carro, fusca, perseguindo... A casa tem muita história...
E, bom, agora... É viver sem ela... Guardar na lembrança.
Entrevista concedida a Clara Linhart, Camila
Maroja e Daniel Caetano
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