Zumbi 2 - A Volta dos Mortos,
de Lucio Fulci


Zombie
, Itália, 1979


Zumbi 2 - A Volta dos Mortos, de Lucio Fulci

Diz-se que, dos três grandes cineastas italianos de terror, Lucio Fulci é facilmente caracterizável como aquele que dá menos atenção à geometrização e os efeitos de luz & cor em prol de uma ação gore que em contrapartida, ele sabe usar como niguém. Ora, basta observar o começo de Zombie para perceber que, ao menos, essa impressão deve ser relativizada. Depois de uma seqüência de abertura seca e misteriosa, onde um homem na escuridão atira na testa de uma pessoa (?) ensacada e presa com cordas (em um simples jogo de campo/contracampo), os créditos se iniciam franciscanos, em letra branca sobre preto e na pregnante música de Fabio Frizzi e Giorgio Tucci inspirada no som do grupo Goblin e bem à John Carpenter, numa melodia de sintetizador aparada por acordes um tanto lúgubres. Mas o mimo vem logo em seguida, na primeira seqüência pós-créditos: um barco à vela deserto que, mastro desgovernado, velas e timão se movimentando a esmo, se desloca Rio Hudson acima, até a Estátua da Liberdade. O barco, como no Nosferatu de Murnau, está vazio – saberemos – em função de uma maldição em que os homens se tornam zumbis. Mas é a construção da seqüência que emociona: antes do filme incorporar qualquer ponto de vista, o trecho se inicia por doze planos silenciosos, em 1 minuto e 15 segundos de pura exploração plástica dos interiores da embarcação e de localização geográfica do barco na baía. Sem qualquer canal de áudio ou elemento visível que conduza nossos olhos e nos indique o sentido daquilo que vemos, encontramo-nos num pequeno filme de avant-garde que faz mais questão de desconcertar do que propriamente de explicar. Esse simples começo de história, que revela dentro da obra de Fulci os caminhos improváveis de um verdadeiro esteta, por menos que seja já revela alguma coisa: Zombie será um grande filme.

Aproveitando-se do sucesso de Dawn Of The Dead (ou Zombie, como o filme ficou mais conhecido na Europa) nas bilheterias, os produtores de Fulci o convencem a fazer um filme sobre mortos-vivos, uma espécie de continuação do filme de George Romero. Surgiu Zombie, ou Zombi 2, como o filme espertamente se lançou para aproveitar o sucesso do original. As filmagens se passam em Nova York e no Caribe, o que poderia levar a crer que o cineasta tentaria incorporar em seu cinema o recente boom de evidência que o terror americano vem tendo (além de Romero, John Carpenter acabava de fazer muito sucesso com Halloween). Mas nada disso. Em Zombie, Fulci continua tão pessoal e tão presente à sua escola quanto possível. O que significa a mesma atenção aos rituais de morte, ao mesmo cuidado (ou falta de) na intencional grosseria da montagem, associada a um forte senso de composição de quadro.

O entrecho não poderia ser mais sumário. Um barco aparece desgovernado às beiras do Rio Hudson, Nova York. A filha do dono do barco e um jornalista a mando de seu veículo acabam se encontrando fortuitamente e decidem fazer uma viagem para a ilha onde mora o pai da moça. Para chegar lá, eles acabam convencendo um casal de aventureiros do mar dono de uma pequena lancha. Chegando na ilha, depois de um terrível susto subaquático no qual a lancha sai avariada, os quatro conhecem um médico que tenta a todo custo conter e entender o surto de mortos voltando à vida. Obviamente, só poucos desses permanecerão vivos até o fim do filme.

Se o argumento está entre as coisas mais óbvias possíveis, não se pode dizer o mesmo da encenação. Como já poderíamos perceber com a antológica seqüência inicial, o filme traz diversas seqüências ou micro-seqüências que são pérolas dentro de uma jóia que por si só – pela agilidade do filme, pela fluidez que exibe – já tem um bom valor. Mas Zombie, se ganha no cômputo geral, é entretanto um filme que encanta por seus momentos mais fortes que, como em todo cinema fantástico italiano, não estão necessariamente conectado aos pontos de clímax da história narrada.

Que melhor exemplo poderíamos dar do que o tal "susto subáquático" que a lancha recebe a caminho da ilha de Matoune? Cansada de procurar a tal ilha (que não constava do mapa mas era famosa pelos maus augúrios da população das pequenas ilhas dos arredores), a bela e voluptuosa Susan, uma das donas da lancha, decide parar um pouco a busca para fazer mergulho submarino. Unicamente com a parte de baixo do bíquini e o equipamento de mergulho – o que garante ao público masculino a primeira das duas únicas boas visões de nudez feminina no filme –, Susan desce e lhe acontece uma situação insólita: fugindo de um tubarão faminto, a moça esconde-se numa rocha repleta, como deveria, de vegetação aquática. Mas eis que, quase que preso à rocha, surge um zumbi – o primeiro do filme desde a seqüência original. A moça consegue escapar, mas o filme dá continuidade à cena a ponto de flagrar uma siderante e inacreditável luta subaquática do zumbi com o vampiro, acompanhada pela música-tema. Se chamamos "comic relief" a piadinhas ou personagens idiótico-engraçados nos filmes de ficção que retiram o espectador da trama principal para concederem-lhe uma pequena distração para que depois reentre melhor na trama, podemos chamar esse tipo de digressão narrativa tão freqüente nos filmes fantásticos italianos de "abstract relief": uma forma de o diretor ficar frente a frente com seu métier, unicamente como mestre de formas, à maneira de um pintor ou de um músico diante de piano e partitura – um outro exemplo poderia ser os famosos segundos em que os personagens de Missão Marte de Brian De Palma se maravilham diante de M&M's flutuando na gravidade zero. Nessa improvável batalha enter um tubarão e um morto-vivo, nenhuma progressão dramática, nenhuma informação vital à narrativa, nenhum clima a ser utilizável na continuação do filme, inclusive nenhum dos personagens principais! E ainda assim, trata-se de um momento notável.

Mas os grandes momentos de criação dentro dos filmes não são só abstratos. A mais forte cena do filme, inclusive, ocorre poucos minutos após a batalha travada entre o tubarão e o zumbi. Trata-se da cena da morte da esposa do médico, interpretada pela beldade Olga Karlatos que, saindo do banho, descobre que sua casa está sendo invadida por um zumbi. Impedido de entrar no quarto porque a mulher empurra continuamente a porta, o morto-vivo soca e quebra a porta de madeira, deixando uma afiada ponta à mostra. Aproveitando o buraco criado, mete a mão e puxa a cabeça da moça em direção ao graveto assassino. Num novo jogo de campo/contracampo tão simples quanto angustiante, vemos o graveto se aproximando lentamente do olho da mulher. A câmera acompanha em 180º o graveto e depois o olho, até um plano em 90º flagrar o pedaço de madeira cravando o olho até perfurá-lo numa das cenas de gore mais criativas da história do cinema de terror. O final do filme, apocalíptico, mostra os zumbis tomando a cidade de Nova York, após devastarem quase toda a população de Matoul. Como no cativante Vampiros de Almas, de Don Siegel, o importante não é saber o que os zumbis "significam"; o importante é saber que eles vêm atrás de você...

Ruy Gardnier