The Whip and the
Body, de Mario Bava

La Frusta e il Corpo, Itália/França,1963

Christopher Lee em The Whip and the Body,
de Mario Bava
Dellamorte
Dellamore
O que persiste em
Mario Bava, mais do que os outros cineastas discutidos nesta pauta, são
certamente algumas imagens de predileção: uma figura sinistra aparecendo
por detrás da janela (Boris Karloff em As Três Máscaras do Terror,
Espartaco Santoni em Lisa and the Devil),
suas adoradas donzelas tocando o piano durante a noite (Barbara Steele
em A Maldição do Demônio, Daliah Lavi em The Whip and the Body),
a fixação por imagens duplas ou até mesmo pela questão da duplicidade
(as bruxas Katia e Asa Wajda em A Maldição do Demônio, o médico
que persegue a si próprio em dado momento de Mata Bebê Mata, todo
o cast de Lisa and the Devil) e obviamente a beleza, a plasticidade
inerente a todas elas. A impressão que se tem é que a partir destas cenas
- e não o contrário - o cineasta organiza seus enredos, e que inclusive
seus temas de predileção (em especial a ligação quase sempre inevitável
entre paixão e morte) surgem da força de um específico imaginário visual
traçado em seus filmes.
Se em A Maldição
do Demônio o cineasta reúne uma série de modelos já existentes na
cinematografia de gêneros (a elegância e o classicismo presentes nos filmes
da inglesa Hammer; a criação exagerada de climas oníricos como
em Jacques Tourneur e Jean Cocteau; a ambientação em estúdio dos filmes
da década de 30 da Universal), em As Três Máscaras do Terror
percebe-se uma tentativa de agrupar no formato do filme em episódios (tão
comum quanto particular ao cinema italiano nas décadas de 60 e 70) um
padrão ou uma idealização do que poderia ser um terror única e essencialmente
italiano. São sem dúvida dois belíssimos e especialmente importantes
filmes na obra de seu diretor, porém de alguma maneira ambos parecem almejar
um patamar de filme-sumário/filme-testamento que apenas Whip, desta
primeira fase de Bava, de fato alcança como um todo.
Contratado pelos produtores
para realizar um rápido veículo de horror estrelado pelo ícone Christopher
Lee (o Conde Drácula dos filmes de Terence Fisher), Bava fez de Whip
menos um exercício narrativo que um complexo e extremamente arrojado delírio
visual em cima dos temas e das imagens mais marcantes de outros filmes.
Já no início, quando o castigado universo familiar de A Maldição do
Demônio e do episódio Il Wurdalak de As Três Máscaras do
Terror se constrói diante de nossos olhos, sabemos estar em território
unicamente Baviano. O crédito de abertura - letras amarelas por cima de
uma cortina vermelha esparramada pela tela -, acompanhado pelo sensacional
tema composto por Carlo Rustichelli, de certa forma prenuncia
que algo de muito interessante está por vir. Porém, ao mesmo tempo em
que satisfaz as expectativas visuais de quem já conhece o cinema de Bava,
Whip choca com sua crueza. Pois se trata certamente do filme mais
físico do cineasta, um dos poucos onde os atos de violência praticados
pela figura opressora - aqui as chicotadas que Christopher Lee desfere
em Daliah Lavi - adquirem um impacto emocional mais direto junto ao espectador,
em grande parte por Bava despir tais cenas dos artifícios conferidos em
outros filmes a seqüências deste gênero. Não vemos aqui a artificialização
da cenografia como em Blood
and Black Lace, Perigo: Diabolik
ou Banho de Sangue - que por conta de suas impressionantes
dimensões ajudam a tornar fácil um distanciamento das ações que nelas
ocorrem - nem os jogos de luzes, nevoeiros e sombras presentes em Mata
Bebê Mata e O Planeta dos Vampiros: tudo o que Bava tem à sua
disposição são um chicote, seus dois atores e uma praia. O que é retirado
de recursos tão miseráveis são alguns dos momentos mais intensamente belos
de sua obra: o cenário poético envolve perfeitamente as cenas de sadomasoquismo
protagonizadas por Kurt (Christopher Lee) e Novenka Menliff (Daliah Lavi),
cada chicotada repercutida na aspereza da ambientação ou nas bizarras
expressões dos personagens.
Se por um lado é
Il Wurdalak que Bava parece mais ter em mente, especialmente nas
cenas em que um já falecido Kurt retorna do além-túmulo para convencer
sua amada Novenka de que a junção na morte conservará para sempre a paixão
de ambos, são certamente as imagens marcantes de A Maldição do Demônio
que o cineasta quer recriar aqui: uma mão que parece abandonar os limites
da tela e querer nos agarrar; uma cena de beijo onde um Christopher
Lee iluminado por verdes e azuis saturados engole a câmera; as cavalgadas
pela praia que dão início ao filme, onde acompanhamos o percurso que Kurt
Menliff toma para retornar à família da qual foi expulso; e as melancólicas
passagens na mesma praia onde Novenka se põe a fitar o mar quando percebe
que não tem como controlar seu desejo por Kurt. São cenas que não apenas
marcam profundamente nossas percepções mas que também reforçam nossa relação
com o assunto que Bava explora neste filme: o amor que para existir precisa
matar, não por ser doentio mas por ser levado às últimas conseqüências,
por ser voraz e por precisar ser saciado com a chama, com o ardor das
paixões. Sabemos que a filha da governanta Giorgia se matou por adoração
a Kurt, e veremos que o percurso traçado pelas vítimas neste filme não
é tão diferente: por mais que Kurt tente estabelecer um desprezo por Novenka
existe uma ligação impetuosa entre os dois que necessariamente irá levá-los
- e ao pai de Kurt - às fatalidades que acabam com suas vidas. Os outros
personagens apenas observam passivos, raivosos ou simplesmente incapazes
deste amor (como nos casos de Christian, irmão de Kurt, e sua prima Katia,
separados pelo forçado casamento de Christian com Novenka). Neste mundo
de belas imagens que Bava nos oferece também são belas as emoções e as
sensações proporcionadas: o tempo inteiro se ama um pouco, se sofre um
pouco e se morre muito. "Do amor à morte", nos lembra Bava,
antecedendo o Michele Soavi de Pelo Amor e Pela Morte como também
o David Lynch do maravilhoso Mulholland Drive. Apenas um mestre
consegue tornar noções tão distintas em uma única idéia, uma única imagem:
o fogo que queima os restos mortais de Kurt na última cena do filme, unindo-o
a Novenka por uma última vez enquanto seu chicote se desfaz em chamas.
Bruno Andrade
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