Twin peaks, ano um


Bem-vindos a Twin Peaks

Twin Peaks, série de tevê de autoria de David Lynch, foi exibida nos EUA entre 1990 e 1991 e acabou prematuramente depois de ter o horário de exibição transferido, o que parece ter contribuído para uma baixa nos índices de audiência, causa alegada para o cancelamento. Lynch, seu idealizador, dirigiu então o último episódio, arrematando a série e fechando-a com chave de ouro.

Aqui no Brasil, qualquer um com mais de vinte anos se lembra do tratamento dado pela Rede Globo, a primeira exibidora, à série: os episódios, além de cortados, não tinham sempre sua ordem respeitada. Mais tarde, a Rede Record, tendo comprado o programa, o exibia antes do cult nerd Arquivo X, às sextas-feiras; foi só aí que se pôde assisti-lo na íntegra. Mais tarde ainda, há apenas três ou quatro anos, foi a vez da extinta TeleUno, canal a cabo, exibir Twin Peaks no infame horário de três e tanto da madrugada. Apesar disso tudo, parece que a série alcançou um certo sucesso no Brasil, tendo sido lançado pela Editora Globo o livro Diário secreto de Laura Palmer, escrito por Jennifer Lynch, a filha-do-homem, cuja proposta era de ser o diário mesmo de Laura, uma das peças-chave da investigação acerca do assassinato da jovem.

Enfim, tudo isso para dizer que eis aí uma boa oportunidade para quem conhece - e também para quem não tem noção do que se trata - de ter acesso ao projeto de tevê mais bem sucedido da carreira de David Lynch, pois que Twin Peaks acabou de sair em dvd; uma caixa contendo quatro dvds traz do episódio um - ou dois, já que o piloto, que costuma ser considerado o episódio um, não consta da caixa e sequer foi lançado em dvd - ao sete, abarcando o primeiro ano da série. A caixa, lançada pela Artisan, traz ainda meia dúzia de extras curiosíssimos, como uma vídeo-aula ministrada por Michael Anderson, o Little-man-from-another-place, sobre como falar ao contrário, recurso utilizado para todas as cenas que se passavam no Black Lodge, aquela sala cheia de cortinas vermelhas. Lá, toda a ação era filmada de trás para frente, inclusive o áudio, e depois invertida, de modo que cada gesto parecesse extremamente bizarro e, ao mesmo tempo, natural. As falas eram de tal modo grotescas que para toda conversação que se dava ali havia legendas; bom, para quem deseja aprender a técnica, a aula de Anderson é uma ótima introdução. No mais, nada de cenas deletadas ou finais alternativos, mas um tratamento tão cuidadoso para a imagem - a fotografia é sempre avermelhada nos interiores e mais azulada nas externas - e para o som que isso por si justifica já o lançamento em dvd.

Cada um dos dvds contém dois episódios - e o último, além do episódio de número sete, os tais extras - além de uma ou duas trilhas de comentário. Nesse primeiro ano, talvez o melhor da série, vemos as personagens se delineando, as esquisitices dos moradores da cidade aparecendo, a trama se construindo em seu sentido próprio de trama: isto é, os fios se unindo até se tornarem praticamente inseparáveis, ao invés de irem se desfazendo, como seria comum em qualquer trama policial. É desde aí que Twin Peaks mostra sua singularidade. Projeto concebido por David Lynch juntamente com Mark Frost, colaborador de sempre, a série, cujo mote principal era "que matou Laura Palmer", tinha um tal leque de intrigas internas que, ainda que tenha passado pelas mãos de quase uma dúzia de diretores e escritores, não perdeu jamais seu caráter lynchiano, a preocupação com um certo tipo de linguagem em que o signo vale como tal, e não traz nenhum recado de qualquer tipo. É também o terreno do destino que não é possível mudar, de um elemento - o amor? - que desencadeia uma tempestade avassaladora, um movimento do qual não é possível, ainda que se tente, escapar. Aqui a morte de Laura (Sheryl Lee) é mero pretexto para Lynch colocar em cena, mais uma vez, toda a sua concepção de arte - que para ele é cinema -, é um centro em que o que menos importa é o centro em si, importando mesmo como reunidor de toda a esfera da qual ele se faz centro. É um verdadeiro deleite assistir a cada cena da série, a cada nova pista descoberta pelo Agente Dale Cooper (Kyle Maclachlan) levar a lugar algum, a cada nova relação que emerge colocar tudo o que foi visto até ali de cabeça para baixo, em suma, assistir a cada episódio, ainda que saibamos que, contendo a caixa apenas o primeiro ano, falta-nos ainda a bagatela de 22 episódios, todos do segundo ano, sem data para lançamento. É porque o que vale ali é a construção de cada cena, é o tempo que se constrói em cada cena, é o destino que, pela paixão, o puro páthos, vai se escrevendo.

Vale lembrar ainda que o dvd foi lançado apenas na região 1, não estando legendado; de qualquer maneira, ver seu lançamento assim, tão bem cuidado, e visualizar a série em seu conjunto, faz pensar que fim poderiam ter outros projetos de Lynch, como o próprio Cidade dos sonhos/Mulholland Drive, sensação da temporada; do que poderia ter sido caso não tivesse sido recusado, posto que foi primeiramente concebido como série para a televisão. Mas isso hoje é coisa que ao destino pertence.

Juliana Fausto