As três máscaras
do terror,
de Mario Bava
Black
Sabbath / I Tre Volti de La Paura, Itália/França, 1963

Esta crítica
é uma versão abreviada da original, presente no livro The
Haunted World of Mario Bava. Editora: FAB Press (o livro pode ser
comprado on-line pela fabpress.com)
História #1:
IL TELEFONO / THE TELEPHONE
Il Telefono é repleto de toques fascinantes, e marca um
passo definitivo no desenvolvimento do giallo, embora seja freqüentemente
motivo de escárnio para os críticos como uma obra fraca
e previsível. Muitas destas críticas provêm da versão
da AIP, que reescreveu a história para o consumo norte-americano,
mas seu corte original não é sem interesse. Em sua ênfase
em uma atmosfera sombria repleta de pessoas moralmente comprometidas,
o filme antecipa os gialli posteriores de Bava como Sei Donne per L'Assassino
(Blood and Black Lace) e Cinque Bambole per la Luna d'Agosto
(Five Dolls for an August Moon).
A situação é simples: Rosy é uma prostituta
de alta classe que está sendo aterrorizada por chamadas telefônicas
de seu ex-cafetão, recém-escapado da prisão. Procurando
consolo, ela chama sua ex-amante Mary. Rosy nada suspeita que Mary está,
na realidade, por trás das chamadas telefônicas, no esforço
de trazer Rosy de volta a seus braços. O plano é bem sucedido,
e elas passam a noite juntas. Na manhã seguinte, enquanto Mary
escreve uma nota explicando a situação a sua amante, Frank
aparece inesperadamente. Após estrangular Mary até a morte,
ele se volta para Rosy. Entretanto, Rosy escondeu uma faca sob seu travesseiro
e quando Frank faz sua investida, ela o esfaqueia mortalmente. O episódio
termina com Rosy reduzida a lágrimas, cercada pelos cadáveres
de seus amantes.
Pela primeira vez em sua carreira, Bava rejeita a idéia do heroísmo
neste segmento. O episódio inteiro gira em torno da idéia
de sexualidade. As três personagens envolvem-se sexualmente de um
modo ou de outro, e o inevitável ciúme que explode conduz
à morte violenta. Mary tira vantagem dos medos de Rosy orquestrando
uma série de falsas chamadas telefônicas. Ela assume a identidade
de Frank, estabelecendo-se desse modo como o "macho"/dominante
do relacionamento, com o único propósito de forçar
seu caminho de volta à cama de Rosy. O plano de Mary funciona,
mas não sem repercussões sérias. Quando Frank retorna,
estrangula-a até a morte com uma de suas próprias meias
de seda. O uso de um objeto de fetiche como uma meia deixa clara a conexão
entre a violência e a sexualidade. Embora Bava não faça
adesão a atitudes conservadoras, ele reconhece, não obstante,
que o comportamento imoral pode conduzir a conseqüências mortais.
O relacionamento preliminar entre Rosy e Frank (isto é, prostituta
e cafetão) já não é saudável, e o papel
de Mary no triângulo estraga as coisas ainda mais. Quando ele mata
Mary, Frank sibila: "cadela suja! Você sempre se meteu nas
minhas coisas." Uma vez que claramente considera Rosy sua "propriedade"
(ela é sua amante, e sua "empregada"), esta frase toma
implicações sutis. Frank, o "fantasma" ausente
off-screen, tem algumas conexões interessantes com os vilões
dos filmes posteriores de Bava La Frusta e Il Corpo (The
Whip and the Body) e Schock. Nestes dois últimos, as histórias
tratam de mulheres destruídas e conduzidas à insanidade
por machos sádicos e dominadores. Tal como aquelas duas mulheres,
Rosy não é sem qualidades. Seu principal defeito é
ser facilmente manipulada, primeiro por Frank e depois por Mary. A imagem
final de Il Telefono descreve Rosy enquanto se encontra na cama,
completamente arrasada por toda a confusão, enquanto a câmera
faz uma panorâmica sobre Frank e Mary. Rosy é uma vítima
tanto quanto qualquer um dos assassinados que a manipularam, e não
há indicação de que seu papel como "sobrevivente"
é particularmente feliz.
História #2:
IL WURDALAK / THE WURDALAK
Il Wurdalak conta a história de um camponês russo,
Gorka, que é transformado em um wurdalak. Um wurdalak é
uma espécie de vampiro que bebe somente o sangue daqueles que mais
amam. Quando retorna a sua família, Gorka lentamente infecta sua
família, até que todos se juntam ao rincão dos mortos-vivos.
A narrativa é conduzida por Vladimir, um jovem nobre que interromper
sua viagem até Jassy para passar a noite numa pequena casa de campo.
Como Kruveian e Gorobec de A Maldição do Demônio ou
o Dr. Eswe de Mata, Bebê, Mata, Vladimir é um homem de razão
que repudia superstições; em comum também com aqueles
outros protagonistas, suas ações têm pouco impacto
positivo. Durante sua estada na casa de campo, Vladimir cai de amores
por Sdenka, a filha mais nova de Gorka. Ela está visivelmente atraída
por ele e adverte-o do perigo. Como Gorka esteve ausente por tanto tempo,
a família teme -- com razão, é o que se vê
-- que ele tenha se transformado em um wurdalak.
Previsivelmente, Vladimir descarta estes medos como absurdos, e quando
Gorka retorna de sua viagem, não há literalmente nenhuma
saída. Tendo se livrado do temido wurdalak Alibek, às custas
de sua própria alma, ele retorna para espalhar o contágio
a sua própria família. Os motivos de Gorca são de
difícil de descrição. Em um momento ele é
gentil e amoroso, mas é capaz de se enfurecer por pouca razão.
Um dos momentos mais arrepiantes do filme ocorre quando Gorca estende
a mão para seu neto pequeno, Ivan. Quando a mãe do menino
detém a criança, Gorka solta: "Qual é o problema,
mulher? Não posso acariciar meu próprio neto?!" As
implicações de pedofilia, com o vampiro/molestador molestando
seu próprio neto, são verdadeiramente perturbadores. Como
Gorka afaga o cabelo do menino enquanto se sentam ao fogo, Bava cria uma
perfeita zombaria da harmonia familiar. As implicações da
cena tampouco passam sem complemento. Mais tarde nessa noite, Gorka rouba
a criança e a leva pela floresta afora, onde drena a vida do menino.
Brevemente, seguem-se os outros membros da família. O vampirismo
é frequentemente interpretado de uma maneira sexual, por razões
óbvias, e confinando as atividades vampirescas de Gorka a um ambiente
familiar, Bava introduz elementos de incesto. É um material consideravelmente
forte, de fato, e a profundidade do drama que Bava investe no episódio
vai além dos mais "inocentes" filmes atuais do gênero.
No intervalo de trinta e poucos minutos, Bava se inclina mais profunda
e completamente nas implicações que alimentam o mito do
vampirismo do que qualquer outro cineasta jamais ousou. A Gorka cabe a
imagem usual do amoroso patriarca, mas seu contato com o mal o transforma.
Mesmo assim, ele ainda parece amar sua família, implicando que
seu desejo é simplesmente o de que eles estejam em seu mesmo plano
de existência.
Ao contrário dos outros dois segmentos, Il Wurdalak é
mais expansivo e inclui algumas cenas rodadas em exteriores. Contudo mesmo
os exteriores são ausentes de vida: não somente não
há nenhuma pessoa ao redor, mas a própria terra parece morta
e estéril. Como em A Maldição do Demônio,
Bava assegura que o ambiente tenha um visual consistentemente lúgubre
filmando em falsos exteriores. Do começo ao fim, o filme tem o
visual de um pesadelo expressionista, e a utilização hábil
das cores por Bava é colocado em uso incessantemente. Para escolher
o exemplo mais óbvio, considere o azul soturno que acompanha o
retorno de Gorka. Além de simbolizar o pavor dos membros da família,
ele age como uma indicação sutil da nova situação
de Gorka como um morto-vivo, e como um prenúncio do clímax
do filme, em que a morte reina suprema sobre a casa.
História #3:
LA GOCCIA D'ACQUA / THE DROP OF WATER
La Goccia d'Acqua é o último e melhor segmento do
filme. De fato, como um filme contido, pode ser o maior trabalho de Bava.
É uma história simples: numa noite tempestuosa, a enfermeira
Chester é chamada para preparar o corpo de uma médium morta
para os serviços funerais da manhã seguinte. Enquanto veste
o cadáver, a enfermeira Chester nota que a velha mulher ainda está
usando um belo anel de diamantes. Ela rouba o anel e retorna para casa,
mas sua consciência culpada manifesta-se de diferentes modos: uma
mosca, inicialmente vista pairando em torno do cadáver, aparentemente
segue-a até em casa, onde continuamente pousa no anel da médium;
o som de água gotejando, ouvido primeiramente quando a enfermeira
acidentalmente derrubara um vidro da água, torna-se quase ensurdecedor
para a mulher assustada; e finalmente, a própria médium
parece materializar-se, literalmente matando a enfermeira Chester de medo.
A enfermeira Chester é motivada pela ganância, como tantos
protagonistas de Bava, mas não escapa de punição.
Tal como personagens como Massimo e Christina em Blood and Black Lace,
enfermeira Chester é frustrada por um defeito trágico. Em
Massimo e Christina, este defeito é emocional; isto é, Massimo
é incapaz de amar, enquanto Christina é compelida a cometer
crimes terríveis na busca da afeição real. No caso
da enfermeira Chester, entretanto, Bava apresenta uma personagem cuja
moralidade básica se revolta contra o ato de roubar o anel de uma
mulher morta; para tal pessoa, mesmo um crime aparentemente sem vítima
pode ter conseqüências terríveis. Embora seja possível
interpretar o destino final da enfermeira Chester como resultado de superstição,
tal interpretação não se sustenta. Desde o começo,
ela está bem ciente dos laços da mulher morta com "o
mundo dos espíritos", e abertamente zomba deles. Não
há nada literalmente sobrenatural nesta história. Os medos
que atormentam a enfermeira Chester nascem de uma consciência culpada,
não da intervenção do além. Em seus gialli
posteriores, Bava se concentra em personagens completamente amorais. A
idéia de uma consciência culpada tem pouca consequência
para estas pernonages, simplesmente porque elas não têm nenhuma
consciência; suas desgraças derivam unicamente de uma visão
cada vez mais paranóica do mundo, em que a violência é
sempre um fator dominante. Bava não incentiva o espectador a julgar
a enfermeira Chester. Pelo contrário, seu objetivo é forçá-lo
a identificar-se com ela. Ela não é uma pessoa violenta
ou má, e o fato de que um insignificante furto a afeta tão
pessimamente prova que ela não é uma criminosa endurecida.
Encorajando o espectador a compartilhar a histeria crescente desta personagem,
a sugestão de Bava é que as pessoas -- tanto as basicamente
boas como as totalmente más -- devem ser responsabilizadas por
suas ações. As imagens aparentemente fantasmagóricas
que amedrontam a enfermeira Chester estão de fato, como as chamadas
telefônicas que atormentam Rosy em Il Telefono, totalmente
inofensivas. Não obstante, a natureza do medo é tal que
enquanto acredita-se no que se vê, há perigo real.
CRÍTICA GERAL
O título italiano deste filme se traduz como "As Três
Faces Do Medo", e serve como uma representação
frouxa dos três tipos de horror que fascinaram Bava. Cada segmento
trata de um tipo muito específico do medo: Il Telefono trata
do enlace obsessivo de Bava entre a sexualidade corrompida e a morte violenta;
Il Wurdalak trata da destruição interna da unidade da
família por um membro corrompido; e último, La Goccia
d'Acqua concentra-se nos demônios da mente, e no estrago que
podem causar.
Como em qualquer antologia, as histórias variam na eficácia.
A primeira é boa, especialmente na versão italiana, mas
sofre de uma brevidade estrutural. Bava não tem tempo o bastante
para desenvolver todo o potencial da história. A segunda história
é uma tese honorável do mito do vampiro. O terceiro segmento
é uma das verdadeiras obras-primas de Bava -- e sua espetácular
eficácia serve principalmente para diminuir o apelo dos outros
dois segmentos. Em termos de execução física o filme
mal podia ser melhorado: a iluminação rica e cheia de texturas,
a imaginativa direção de arte e a atenção
dispensada ao clima combinam em uma visualmente exuberante experiência
cinematográfica, mas a verdade é que Bava faz seu melhor
trabalho nos filmes de uma só história que o permitem criar
um clima consistente do começo ao fim.
A AIP certamente nunca mostrou qualquer respeito pelo trabalho de Bava,
mas para o lançamento norte-americano deste filme (re-intitulada
Black Sabbath) a companhia superou-se na audácia. Bava tinha
estruturado cuidadosamente o filme de modo que as histórias tivessem
um efeito cumulativo, mas a AIP imaginou que o público jovem se
cansaria rapidamente se não se assustasse logo de pronto. Como
resultado, as histórias foram reorganizadas levianamente. A climática
trilha sonora de Roberto Nicolosi foi mais uma vez desprezada em favor
de uma atrocidade de Les Baxter, e alguns dos frames mais sangrentos foram
escurecidos ou ampliados oticamente para diminuir as imagens orfensivas.
O segundo e terceiro segmentos sofreram menos na tradução
(Boris Karloff faz sua própria dublagem), mas Il Telefono
é transformado de um thriller erótico eficaz em uma totalmente
implausível história de fantasmas.
Bava e Boris Karloff deram-se magnificamente bem durante as filmagens,
embora seu relacionamento viesse a ter um lado negativo. Tanto Christopher
Lee e Vincent Price recordam Karloff como alguém muito lisonjeiro
do diretor e muito orgulhoso de As Três Máscaras do Terror
(Lee recorda: "lembro-me de Boris, que não elogiava muito
facilmente, dizendo 'eu faria qualquer coisa para Mario Bava -- eu o amo!'"),
mas a interferência do AIP resultou em uma tragédia que afetou
profundamente as vidas dos dois homens. Preocupados que o filme poderia
ser demasiado intenso, Sam Arkoff e James H. Nicholson insistiram que
Bava tornasse as coisas um pouco mais leves... no último dia de
filmagens. A genial solução de Bava foi filmar Karloff,
em fechado close-up, galopando velozmente. Diminuindo a velocidade, Karloff
se volta para o público. Depois de terminar seu monólogo,
Karloff segue veloz; então, sugestivamente, a câmera de Bava
faz um travelling para trás revelando toda a ilusão, repleta
com o ator montado em um falso cavalo de carrossel e técnicos manipulando
galhos na frente da câmera! Bava preocupou-se de pronto que os enormes
ventiladores utilizados para fornecer a ilusão de velocidade agravassem
os problemas respiratórios de Karloff, mas o ator ficou tão
excitado com a idéia que se decidiu a fazê-la de qualquer
maneira; os medos de Bava tinham bom fundamento, e o velho ator de 76
anos realmente veio a pegar um resfriado severo antes de deixar Roma.
Depois disso, a saúde de Karloff deteriorou-se gradualmente e quando
morreu em 1969, um Bava acometido pelo pesar responsabilizou-se por acelerar
sua morte. Como uma nota de rodapé irônica, este footage
foi julgado um pouco aliviador demais, e assim não foi incluído
na versão de exportação da AIP.
Troy Howarth
Tradução
de Fernando Verissimo
copyright do original: Troy Howarth
Reproduzido com autorização do autor
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