Terror na Ópera, de Dario Argento

Opera/Terror at the Opera, Itália, 1987


Terror na Ópera, de Dario Argento

O título já faz a bondade de estabelecer este filme como uma espécie de peça emblemática na obra do cineasta. Fica bastante claro que a ópera do título faz parte do que será convencionado durante o enredo e que o tal terror é instituído como nos outros filmes de Argento, porém não é qualquer coisa de óbvio como a ópera, seus elementos e suas significações se tornam parte fundamental de toda a operação cinematográfica que compõe algumas das seqüências mais belas de tudo que Argento já filmou. Pois é bem verdade que Terror na Ópera - logo este que torna todas as idiossincrasias, obsessões e traços autorais de Argento em elementos indispensáveis de sua confecção - marca um momento de transição, de mudança, mais especificamente uma continuação da ascese alcançada pela personagem de Jennifer Connelly em Phenomena e que Argento não concede aos protagonistas de Tenebre e Mansão do Inferno, justamente os trabalhos anteriores do diretor e que talvez apontam para esta necessidade da busca pela transcendência, por uma renovação que especialmente em Tenebre era impossível de se alcançar mas que em Opera é tudo o que a protagonista e o autor procuram.

O que imediatamente distingue Terror na Ópera de outras realizações de Argento é a urgência com que os enquadramentos, os planos e os movimentos de câmera nos são apresentados. A câmera corre, espia, procura, tropeça, trafega e embrenha-se o tempo inteiro em apartamentos, corredores, estúdios, cabines telefônicas e, obviamente, no teatro Regio, a casa de ópera onde boa parte do filme se passa. Tem-se a impressão de estar num filme de estudante, como aponta Daniel Caetano na sua crítica para Mansão do Inferno, onde a cada momento existe um sem número de dúvidas e certezas sobre o que filmar ou não, se tal corte é interessante em tal instante ou se é melhor dar continuidade ao mesmo plano. Próximo do "cinema-punho" de um Sam Fuller, Argento traz sua agressividade desta vez muito mais para o plano do nosso olhar: nossa relação com o que a câmera filma é imediata, temos geralmente as mesmas reações que ela diante do objeto filmado e receamos o mesmo que ela durante os momentos de maior suspense. Para isso Argento exibe todo o savoir faire que adquiriu em anos de crítica cinematográfica, e nas parcerias com gigantes como Sergio Leone e George Romero, quando por exemplo acompanhamos a jovem cantora Betty (Cristina Marsillach) na escuridão da sala de estar com apenas uma faca às mãos sabendo que o assassino se encontra em seu apartamento. Sem nenhum som até dado momento, de repente escutamos as batidas de um coração. Estas vão ganhando maior freqüência e força, culminando com o próprio enquadramento se movendo semelhantemente a um batimento cardíaco. Um momento da mais absoluta angústia, onde Argento pratica toda sua capacidade de criar tensões e climas aterradores.

É esta capacidade, por sinal, que o diretor utiliza plenamente na infame seqüência onde, durante a apresentação de uma ópera, um grupo de corvos voa à altura do teto do teatro Regio. Momento de total domínio e controle sobre a encenação, impressiona a capacidade de Argento em criar uma linguagem fundamentada unicamente num vocabulário cinéfilo de quem acima de tudo ama esta probidade do cinema em "substituir nosso olhar por um mundo que corresponde aos nossos desejos". Portanto é para Argento questão primacial, não importando o quão absurdo possam parecer em termos de narrativa, ter em seus filmes as imagens que mais o fascinam, que mais o intrigam em termos de concepção e realização. Percebemos assim o que para Argento o cinema detém de tão especial: a criação de um universo que corresponda às fantasias, a concretização de uma inocência no olhar.

Talvez seja a procura por esta inocência que obrigará Argento a submeter sua heroína a toda sorte de horrores e atrocidades durante o filme. Desta vez não temos o assassino de capa preta e chapéu como em O Pássaro das Plumas de Cristal e Prelúdio Para Matar, figuras que tentam apenas ocultar suas identidades a fim de evitar quaisquer problemas com testemunhas ou outros contratempos; trata-se de uma figura indistinta, alguém que Betty não tem como identificar e que a atormenta nos pesadelos relacionados à sua traumatizada infância. Este "fantasma" usa uma capa escura no rosto, portando dos outros assassinos criados por Argento apenas as luvas pretas (mesmo neste aspecto temos a impressão que se trata de um acerto de contas com aquilo que o cineasta já estabeleceu em obras passadas, um "basta"). A novidade aqui, de qualquer jeito, é a protagonista ser obrigada pelo psicopata a presenciar e "assistir" aos assassinatos. Para isto Betty tem um esparadrapo com agulhas colocado um pouco abaixo de seus cílios, impossibilitando ela, uma vez posicionada em frente ao local onde irá ocorrer uma nova chacina, de piscar e fechar os olhos ou mover-se para outro local que não seja aquele da matança. O que seguirá destas experiências é a procura de Betty pela purgação, pelo imaculável. Se estas seqüências são de uma agressividade algumas vezes quase insuportável, existe uma necessidade para tal: como em Tenebre, o cineasta se aventura aqui na auto-reflexão de seu trabalho, mostrando como pode ser ingrata para um diretor a consciência daquilo que realiza ou deixa de realizar em seus filmes. A reação de Argento para esta constatação não será tão diferente da de Betty para os horrores a que é sujeitada, e o que percebemos nestas imagens violentas é a procura pelas formas mais harmoniosas, por uma estilização que eleve o simplesmente grosseiro à ousadia de um grande cinema.

Não é à toa que Opera é o único filme onde os dois personagens que usualmente mais interessam Argento são reunidos: Betty, a jovem cantora de ópera, nos lembra a bailarina Susy Banyon de Suspiria como também a estudante Jennifer de Phenomena na sua jovialidade, enquanto Marco - um diretor de filmes de suspense que se aventura na direção do Macbeth de Giuseppe Verdi - é obviamente uma alusão ao Peter Neal de Tenebre. Se existe da parte de Argento esta noção clara do que vem a ser o seu cinema e inclusive um posicionamento bastante específico diante da violência que perpetua nas telas, em Opera pela primeira vez delineia-se uma vontade de se distanciar deste mundo de horrores que o persegue assim como aos protagonistas de seus filmes. No surpreendente final, Betty consegue se livrar dos horrores que teve de presenciar durante seu percurso de diva numa entrega completa ao que existe de mais belo nas coisas. Uma opção talvez exagerada de Argento, mas com certeza honesta o bastante para deixar clara a ambição do cineasta em superar os horrores para um diferente direcionamento deste olhar, um olhar capaz de passar do apavorante ao mais deleitoso e sublime.

Bruno Andrade