O título
já faz a bondade de estabelecer este filme como uma espécie
de peça emblemática na obra do cineasta. Fica bastante
claro que a ópera do título faz parte do que será
convencionado durante o enredo e que o tal terror é instituído
como nos outros filmes de Argento, porém não é
qualquer coisa de óbvio como a ópera, seus elementos e
suas significações se tornam parte fundamental de toda
a operação cinematográfica que compõe algumas
das seqüências mais belas de tudo que Argento já filmou.
Pois é bem verdade que Terror na Ópera - logo este
que torna todas as idiossincrasias, obsessões e traços
autorais de Argento em elementos indispensáveis de sua confecção
- marca um momento de transição, de mudança, mais
especificamente uma continuação da ascese alcançada
pela personagem de Jennifer Connelly em Phenomena e que Argento
não concede aos protagonistas de Tenebre e Mansão
do Inferno, justamente os trabalhos anteriores do diretor e que
talvez apontam para esta necessidade da busca pela transcendência,
por uma renovação que especialmente em Tenebre
era impossível de se alcançar mas que em Opera
é tudo o que a protagonista e o autor procuram.
O que imediatamente
distingue Terror na Ópera de outras realizações
de Argento é a urgência com que os enquadramentos, os planos
e os movimentos de câmera nos são apresentados. A câmera
corre, espia, procura, tropeça, trafega e embrenha-se o tempo
inteiro em apartamentos, corredores, estúdios, cabines telefônicas
e, obviamente, no teatro Regio, a casa de ópera onde boa parte
do filme se passa. Tem-se a impressão de estar num filme de estudante,
como aponta Daniel Caetano na sua crítica para Mansão
do Inferno, onde a cada momento existe um sem número de dúvidas
e certezas sobre o que filmar ou não, se tal corte é interessante
em tal instante ou se é melhor dar continuidade ao mesmo plano.
Próximo do "cinema-punho" de um Sam Fuller, Argento traz sua
agressividade desta vez muito mais para o plano do nosso olhar: nossa
relação com o que a câmera filma é imediata,
temos geralmente as mesmas reações que ela diante do objeto
filmado e receamos o mesmo que ela durante os momentos de maior suspense.
Para isso Argento exibe todo o savoir faire que adquiriu em anos
de crítica cinematográfica, e nas parcerias com gigantes
como Sergio Leone e George Romero, quando por exemplo acompanhamos a
jovem cantora Betty (Cristina Marsillach) na escuridão da sala
de estar com apenas uma faca às mãos sabendo que o assassino
se encontra em seu apartamento. Sem nenhum som até dado momento,
de repente escutamos as batidas de um coração. Estas vão
ganhando maior freqüência e força, culminando com
o próprio enquadramento se movendo semelhantemente a um batimento
cardíaco. Um momento da mais absoluta angústia, onde Argento
pratica toda sua capacidade de criar tensões e climas aterradores.
É esta capacidade,
por sinal, que o diretor utiliza plenamente na infame seqüência
onde, durante a apresentação de uma ópera, um grupo
de corvos voa à altura do teto do teatro Regio. Momento de total
domínio e controle sobre a encenação, impressiona
a capacidade de Argento em criar uma linguagem fundamentada unicamente
num vocabulário cinéfilo de quem acima de tudo ama esta
probidade do cinema em "substituir nosso olhar por um mundo que corresponde
aos nossos desejos". Portanto é para Argento questão primacial,
não importando o quão absurdo possam parecer em termos
de narrativa, ter em seus filmes as imagens que mais o fascinam, que
mais o intrigam em termos de concepção e realização.
Percebemos assim o que para Argento o cinema detém de tão
especial: a criação de um universo que corresponda às
fantasias, a concretização de uma inocência no olhar.
Talvez seja a procura
por esta inocência que obrigará Argento a submeter sua
heroína a toda sorte de horrores e atrocidades durante o filme.
Desta vez não temos o assassino de capa preta e chapéu
como em O Pássaro das Plumas de Cristal e Prelúdio
Para Matar, figuras que tentam apenas ocultar suas identidades a
fim de evitar quaisquer problemas com testemunhas ou outros contratempos;
trata-se de uma figura indistinta, alguém que Betty não
tem como identificar e que a atormenta nos pesadelos relacionados à
sua traumatizada infância. Este "fantasma" usa uma capa escura
no rosto, portando dos outros assassinos criados por Argento apenas
as luvas pretas (mesmo neste aspecto temos a impressão que se
trata de um acerto de contas com aquilo que o cineasta já estabeleceu
em obras passadas, um "basta"). A novidade aqui, de qualquer jeito,
é a protagonista ser obrigada pelo psicopata a presenciar e "assistir"
aos assassinatos. Para isto Betty tem um esparadrapo com agulhas colocado
um pouco abaixo de seus cílios, impossibilitando ela, uma vez
posicionada em frente ao local onde irá ocorrer uma nova chacina,
de piscar e fechar os olhos ou mover-se para outro local que não
seja aquele da matança. O que seguirá destas experiências
é a procura de Betty pela purgação, pelo imaculável.
Se estas seqüências são de uma agressividade algumas
vezes quase insuportável, existe uma necessidade para tal: como
em Tenebre, o cineasta se aventura aqui na auto-reflexão
de seu trabalho, mostrando como pode ser ingrata para um diretor a consciência
daquilo que realiza ou deixa de realizar em seus filmes. A reação
de Argento para esta constatação não será
tão diferente da de Betty para os horrores a que é sujeitada,
e o que percebemos nestas imagens violentas é a procura pelas
formas mais harmoniosas, por uma estilização que eleve
o simplesmente grosseiro à ousadia de um grande cinema.
Não é
à toa que Opera é o único filme onde os
dois personagens que usualmente mais interessam Argento são reunidos:
Betty, a jovem cantora de ópera, nos lembra a bailarina Susy
Banyon de Suspiria como também a estudante Jennifer de
Phenomena na sua jovialidade, enquanto Marco - um diretor de
filmes de suspense que se aventura na direção do Macbeth
de Giuseppe Verdi - é obviamente uma alusão ao Peter Neal
de Tenebre. Se existe da parte de Argento esta noção
clara do que vem a ser o seu cinema e inclusive um posicionamento bastante
específico diante da violência que perpetua nas telas,
em Opera pela primeira vez delineia-se uma vontade de se distanciar
deste mundo de horrores que o persegue assim como aos protagonistas
de seus filmes. No surpreendente final, Betty consegue se livrar dos
horrores que teve de presenciar durante seu percurso de diva numa
entrega completa ao que existe de mais belo nas coisas. Uma opção
talvez exagerada de Argento, mas com certeza honesta o bastante para
deixar clara a ambição do cineasta em superar os horrores
para um diferente direcionamento deste olhar, um olhar capaz de passar
do apavorante ao mais deleitoso e sublime.
Bruno Andrade