Prelúdio para matar,
de Dario Argento
Profondo
Rosso, Itália, 1975

Eu
sonho em vermelho. Meus pesadelos são banhados em vermelho... Vermelho
é a cor da paixão, do prazer. Vermelho é a cor das viagens pelas profundezas
escondidas do subconsciente. Mas acima de tudo: vermelho é a cor da raiva...
e da violência.
Dario Argento
Uma imagem - uma apenas
- interromperá os créditos de Prelúdio Para Matar: um plano de
uma sala, com a câmera baixa enquadrando uma mesa, duas cadeiras, um abajur,
a vitrola de onde sai uma melodia infantil e uma árvore de natal. Surgem
duas sombras na parede, uma esfaqueando a outra. Escuta-se um berro. A
sombra esfaqueada cai no chão, fora do plano. Dois pés calçados com pequenos
sapatinhos - aparentemente uma criança - invadem o extremo direito do
quadro. Uma faca suja de sangue é jogada à frente dos sapatinhos, e o
plano se encerra nesta composição. Uma imagem. Voltamos aos créditos,
novamente com a trilha dos Goblin.
Na cena seguinte estamos
num conservatório musical. O CinemaScope voa por pilares e colunas, com
todas as suas nuances utilizadas para chamar a atenção do espectador nestes
primeiros planos para a cenografia, rústica e de moldes clássicos. Após
uma pequena movimentação de grua na qual a câmera desce da direita para
a esquerda, o grupo que está tocando a música a qual escutamos é reenquadrado.
O inglês Marcus Daly (David Hemmings), professor de jazz, está
no meio de sua aula. O jazz que está sendo tocado, por sua vez,
parece remontar o trabalho de Ennio Morricone para outro filme de Argento,
O Gato de Nove Caudas, no aspecto bastante tradicional de sua execução.
Marcus interrompe seus alunos, não está satisfeito, diz que existe algo
de errado, que seus alunos estão tocando muito bem, de maneira muito cuidadosa,
formal, mas que esta música precisa ser "suja"; em outras palavras,
que a beleza do tipo de música que estavam tocando reside justamente no
que possui de grosseiro, inacabado, por conta em boa parte de ter nascido
em bordéis e do apelo popular que possui. Esta é a primeira cena em que
Argento estabelece regras pelas quais Prelúdio Para Matar se desenvolverá:
o horror, o que existe de belo nele, é justamente aquilo que há de violento,
de rude, do susto mais vagabundo ao assassinato mais sangrento, e é assim
que devem ser os filmes do gênero segundo professor Dario.
Helga Ulman (Macha
Méril) está prestes a realizar uma apresentação de seus poderes psíquicos
no "Congresso Europeu de Parapsicologia". A dançante dolly
de Argento nos encaminha pelos corredores do local onde as palestras
estão ocorrendo, atravessando a cortina de entrada para o palco onde em
poucos instantes sucederá uma apresentação. Esta cena obtém o trunfo de
unir a beleza da mise en scène de Argento a uma praticidade raramente
presente no seu trabalho, compondo um plano de apresentação e exploração
do ambiente onde se passará a seqüência que inicia a narrativa de Prelúdio
ao mesmo tempo em que serve ao jogo simbólico do diretor. No momento em
que a câmera atravessa a cortina vermelha (o Rosso do título original)
o espectador vê - através do uso da câmera subjetiva, sempre usada à perfeição
por Argento - uma quase que exata reprodução do que poderia muito bem
ser uma sala de cinema ou um teatro de ópera (com poltronas, espectadores
e uma atração), e logo depois um zoom nos aproximará ao palco onde
à frente de gigantescas cortinas vermelhas (novamente o Rosso)
se encontram os professores Giordani (Glauco Mauri) e Bardi (Piero
Mazzinghi) e a conferencista Helga. Argento chama a atenção do
espectador para sua condição participativa nesta cena (nós "entramos"
com a câmera e nos "unimos" ao público presente na palestra)
ao mesmo tempo em que parece querer nos mostrar, com o uso bastante consciente
de "vermelhos profundos", que algo importante está para acontecer.
O professor Giordani
falará dos progressos e recentes descobertas sobre paranormalidade e tocará
rapidamente no assunto da comunicação entre insetos (um tema que retorna
em Phenomena) antes de introduzir a sensitiva lituana que reside
a pouco tempo em Roma. É neste momento e não antes que Argento mostra
o que para ele seria a função da câmera e como esta se relaciona com seu
projeto cinematográfico: a médium avisa de imediato que suas capacidades
nada têm a ver com "mágica, o esotérico ou previsão de futuro"
e que consegue apenas e tão-somente pressentir pensamentos no instante
em que se formam e jamais aqueles que estão por vir. Esta cena é filmada
com os personagens de Giordani, Bardi e Helga de costas para a câmera
- os dois homens ocupando cada extremo do widescreen e apenas ela
ao centro - de tal maneira que podemos nos ver redimensionados no público
comparecente à palestra, pela primeira vez plenamente emoldurado num plano.
No momento em que a paranormal começa a descrever suas aptidões um zoom
nos aproxima de seu cabelo loiro, abandonando os outros dois especialistas
presentes e culminando num maravilhoso painel simbólico onde seu crânio
- servindo para Argento como a câmera cinematográfica o serve, ou seja,
detendo e registrando apenas o que sucede no momento, no instante, a evidência
do presente que pode ser a sombra de um passado - é posto em oposição
ao teatro onde ocorre a conferência - que remonta por sua vez o cinema
do quadro New York Movie mas também uma casa de ópera, reflexo
dos interesses estéticos de Argento transformados aqui em espaço cênico
e material. O que segue é o primeiro momento em que um retorno abrupto
de eventos passados é acontecimento motivador dos desequilíbrios e dos
distúrbios que permeiam e redefinem as narrativas de todos os filmes de
Argento: algo invade grosseiramente a percepção de Helga durante a demonstração
de seus poderes, uma presença que transmite "pensamentos pervertidos,
assassinos", obviamente alguém da platéia que, segundo a médium,
"Já matou... E matará de novo". Bardi passa um copo d'água para
acalmar a alterada Helga enquanto ela discorre sobre uma cantiga infantil
numa casa, uma morte e a presença de sangue - "nosso sangue".
Neste momento uma pessoa se levanta (sabemos disso novamente através do
uso da subjetiva) e abandona a palestra enquanto é repetida a frase "Esquecer...
para sempre" pela sensitiva.
Após o fim da palestra
Helga fala a Giordani um pouco sobre os pensamentos que irromperam sua
mente, "ao mesmo tempo cruéis e infantis". Fala também que não
pôde expressar todas as sensações que a afetaram naquela hora, mas que
sabe quem é o assassino. Pouco após descobrirmos que este ainda se encontra
no local da palestra (novamente denunciado pelo uso da câmera subjetiva)
e que escondido escuta a conversa entre a médium e o professor, Argento
nos brinda com uma das mais belas cenas de sua carreira: num formidável
plano-seqüência passeamos por cima e pelos lados de bolinhas de gude,
desenhos infantis sobre assassinatos, um boneco de pano vermelho espetado
por diversas agulhas e outros brinquedos bizarros até o momento em que
Argento mobiliza sua câmera para culminar em duas facas, seguindo este
último percurso de seu plano com o corte para um superclose dos olhos
do assassino sendo pintados. Esta seqüência dá o tom que distancia Prelúdio
Para Matar dos primeiros trabalhos de Argento, pois elementos como
a câmera acrobática (O Pássaro das Plumas de Cristal), a obsessão
pelo corte repentino (O Gato de Nove Caudas, onde há também o uso
de closes dos olhos do assassino) e a trilha sonora rock'n'roll (Quatro
Moscas no Veludo Cinza) só serão utilizados e unificados para fins
bastante específicos à empreitada do diretor aqui. Se há uma palavra capaz
de descrever a função que Prelúdio Para Matar teve à sua época
na obra de Argento, esta seria "depuração".
Das três propostas
de início para o filme - a primeira imagem que surge ainda durante os
créditos; a apresentação de Marcus e a sugestão de uma diferente proposta
de música aos seus alunos; e a longa seqüência no "Congresso Europeu
de Parapsicologia" - apenas duas serão desenvolvidas no plano narrativo.
Argento abandona rapidamente a auto-reflexão de sua obra que a cena no
conservatório musical dá a impressão de sugerir, preferindo desenvolver
na abordagem e nas inovações de sua direção este aspecto que, como o tema
da comunicação entre insetos, será plenamente trabalhado em outro filme
(Tenebre). O enredo será portanto resultado do choque entre a primeira
cena e a reação de Helga ao tê-la "transmitida" à sua mente,
descobrindo quem é o assassino e trazendo ao filme este relevo, o surgimento
de algo que já estava enterrado e "esquecido para sempre". A
fatalidade é que este "algo" foi fatal o bastante para uma primeira
vítima e assim o será para a médium, assassinada a machadadas no mesmo
momento em que o pianista Marcus, seu vizinho, testemunha o acontecimento.
É na troca de protagonistas
que terá início uma investigação, verdadeira raison d'être da obra
de Argento, e apesar de várias e constantes alusões a Hitchcock certamente
a referência fundamental aqui é Antonioni. Se existem ecos de Marnie
- Confissões de uma Ladra nos traumas psicanalíticos que invadem de
quando em quando a narrativa, Psicose no desaparecimento de Helga
que nos deixa como protagonista Marcus e Festim Diabólico na presença
de um cadáver escondido cuja presença é importantíssima à trama, é Blowup
que figura de maneira intensa na investigação realizada pelo pianista
com a ajuda da repórter Gianna Brezzi (Daria Nicolodi). Com a certeza
que presenciou algo quando atravessou o corredor que conduz ao quarto
de Helga que pode ou não ter importância às suas inquirições, o pianista
terá primeiro que realizar uma série de pesquisas que o levam a uma villa
abandonada onde aparentemente um assassinato ocorreu muitos anos antes.
Argento leva sua câmera ao imenso casarão e dele explora as imensas potencialidades
de seu aspecto fantasmagórico - terreno de Corman e Tourneur, o da "casa
mal-assombrada" - e também diversos joguetes de sombras e luzes,
sempre belas e de grande impacto. A busca que o protagonista e Argento
realizam por fragmentos de um passado, a única alternativa de resposta
para os assassinatos, prefigura o momento mais importante desta seqüência
(e possivelmente do filme): olhando atentamente a parede de uma das salas
da villa, Marcus percebe que há algo pintado por detrás
dela. Intrigado, aproxima-se e percebe uma faca banhada em sangue despontando
no que obviamente se trata de um desenho pintado numa superfície e
ocultado por uma fina e falsa parede. Por ser pequeno o defeito que possibilita
ver o diminuto fragmento do desenho, Marcus pega um pedaço de vidro e
risca a camada de concreto que o esconde. Argento trabalhará ao mesmo
tempo nesta cena suas impressões sobre representação visual e a capacidade
de síntese oferecida pela montagem cinematográfica - uma imagem que se
revela aos poucos, que é montada aos poucos por Marcus e que ao
final é recriada a partir de impressões única e exclusivamente narrativas
(tudo o que foi descoberto pelo pianista até o momento). É esta cena,
mais do que qualquer outra, que revela como para Argento tudo pode
ser cinema, que qualquer discussão sobre crença na imagem (e para
crer é necessário questionar) só se torna válida quando desta idéia surge
outra, a de crença no mundo, de forma que ambas se tornam intrínseca e
inexoravelmente inseparáveis. Como o cineasta aceita este credo com muita
força é capaz também de problematizá-lo: pois o pianista descobrirá sim
um desenho que muito esclarece sobre o que pode ser o caso que investiga,
mas um pedaço do desenho, justamente o mais importante, não lhe será revelado
pois o que se afigurou - um outro desenho - respondeu suas equivocadas
impressões.
Se já tivemos muito
de Blowup até aqui - e a presença do ator inglês David Hemmings
só reforça a impressão de um verdadeiro tributo ao filme de Antonioni
-, é apenas na seqüência final que Argento subverte e trespassa seu ponto
de partida e molde inicial. A pessoa que segundo o desenho descoberto
por Marcus seria o assassino será morta num acidente. Retornando para
sua casa após o ocorrido, o pianista se lembra da ocasião em que testemunhou
o assassinato de Helga, especificamente de quando passou pelo corredor
do apartamento dela. De volta ao cenário do crime, Marcus passa lentamente
pelo corredor, desta vez com o olhar distanciado de um investigador, analisando
detalhe por detalhe. De imediato a presença de vários quadros presentes
nas paredes do corredor chamam a atenção do pianista, mas é um espelho
- um espelho posto à frente de um destes quadros - que revelará onde falhou
na sua busca: o assassino se encontrava à frente de um destes quadros,
seu rosto se misturando com os outros rostos presentes na pintura e refletido
no espelho. O aspecto unidimensional do espelho - e uma tela de cinema
não se faz muito diferente - não possibilitou ao pianista naquele momento
perceber que se tratava do assassino, e será apenas após um processo de
reensino do olhar (a investigação para ele, o filme para nós) que Marcus
poderá voltar ao ponto inicial (o apartamento de Helga) do percurso que
teve de traçar. Capacidade incrível esta de Argento de confundir nossas
expectativas sobre o que é e o que deixa de ser cinema a cada cena, a
cada quadro.
Obviamente o assassino
se encontra no apartamento, pronto para aniquilar o pianista, e é durante
sua confissão (sim, há uma confissão) que retornamos à primeira imagem
do filme. Apenas com o ressurgimento desta cena - agora com sua função
de flashback esclarecida e especificada - Argento pode dar prosseguimento
ao último ato de Prelúdio Para Matar (último ato em todos os seus
filmes): a punição do assassino com sua morte, o fim de um passado que
não pode e não tem como resistir ao presente. Após atingir Marcus com
uma machadada no ombro, o psicopata leva um chute do pianista e tem seu
colar preso ao mecanismo de um elevador pouco antes deste ser acionado
e degolá-lo. No "vermelho profundo" do sangue daquele responsável
pelas mortes, Marcus observa seu reflexo - ele próprio agora um assassino.
Não se sai impune de um filme, lembra Argento, e não deixa de ser também
nosso o reflexo contido nesta última cena.
Bruno
Andrade
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