Lisa e o Diabo, de Mario Bava

Lisa e il Diavolo
, Itália/Alemanha/Espanha,1972


Lisa e o Diabo, de Mario Bava

Esta crítica é uma versão abreviada da original, presente no livro The Haunted World of Mario Bava. Editora: FAB Press (o livro pode ser comprado on-line pela fabpress.com)

Como resultado da bilheteria de Gli Orrori del Castello di Norimberga (Baron Blood), o produtor Alfredo Leone deu carta branca a Bava pelo sucesso obtido. Com permissão para trabalhar (quase que) completamente sem interferência de produção, Bava finalmente teve uma oportunidade para exprimir sua visão puramente e sem compromissos. Jamais um homem de perder oportunidades, Bava agarrou esta com uma vingança, criando um bizarro, alucinatório e freqüentemente perverso trabalho de gênio. Das externas desmoronadas da villa aos assassinatos sangrentos que nela ocorrem, poucos filmes são tão obcecados por imagens de morte e decadência como Lisa and the Devil.

Como sugere o título do filme, a história envolve Lisa e Leandro (o diabo); todos os outros personagens são pouco mais que peças num jogo implacável e sangrento. Bava nada fornece sobre o passado de Lisa (Elke Sommer). Tudo que o espectador sabe é que se trata de uma turista visitando um país estrangeiro; sua nacionalidade e o nome do local que está visitando são ocultados. No entanto, Bava manipula facilmente o espectador a acreditar que Lisa é quem clama ser e que ela esteja totalmente perplexa pelo labirinto de horrores bizarros ao qual foi atirada. Contudo, ao fim do filme, esta idéia é relativizada. No último plano, Lisa se transforma em Elena. A questão então é: Lisa existiu na realidade em algum momento? A obsessão do diretor pelas aparências das superfícies está bem exposta aqui. Todavia, enquanto um filme como A Maldição do Demônio se conclui com perfeita claridade, Lisa é deliberadamente obtuso. Por baixo de seu envoltório enigmático, no entanto, se esconde um ponto de vista preciso e coerente. Lisa é uma alegoria sombria sobre as influências dominadoras que forças malévolas exercem sobre a vida de todos os humanos. A personagem de Lisa pode estar no âmago da narrativa - num certo sentido, o espectador enxerga através de seus olhos - mas ela é tanto uma peça quanto os outros personagens do filme. Lisa é uma personagem sem uma "biografia" simplesmente por não a possuir; ela jamais viveu. As obcecadas visões românticas de Carlo que a atormentam durante o filme não são imaginadas. Ela está revisitando estes eventos porque realmente os viveu. Lisa é Elena; a adição artificial de um novo nome não pode e não tem como significar que ela é uma nova pessoa. A sugestão de Bava aqui é que ela está revisitando estes locais porque precisa - está predestinado. Lisa/Elena está presa no seu próprio purgatório, forçada a reviver uma memória desagradável após a outra para a diversão de Leandro/O Diabo. Mesmo no fim do filme, quando embarca no avião numa última tentativa de se libertar, Lisa ainda encontra Leandro, literalmente, no banco do piloto. A última imagem dela, onde se reverte à sua verdadeira identidade - isto é, um corpo desanimado - é ao mesmo tempo irônica e elegíaca, e o espectador não tem mais dúvidas que ela será submetida à mesma provação repetidamente, por toda a eternidade.

Leandro é um personagem particularmente fascinante. O filme abre com um estrondoso estouro de pura luz branca. No que a luz se dissipa, Bava introduz um close de Leandro. As conotações superficiais desta luz branca são bastante óbvias: ela sugere uma visão espiritual - a pura luz do Éden. A ironia, claro, é que esta luz não conduz à salvação, mas sim à perdição. Da mesma maneira, o filme termina com um plano semelhante de Leandro. Ao fim dos créditos finais, a luz branca retorna antes de desaparecer na mais completa escuridão. Esse último fade possui dois propósitos: o primeiro, obviamente, significa que o filme acabou; no nível temático, entretanto, ele reflete a narrativa do filme. Todos os personagens parecem seguir Leandro em direção à luz, antes de serem consumidos pela escuridão e pela morte. No entanto, entre os dois estouros de luz ainda há muito a se considerar. Por exemplo, observemos o fato de Leandro estar quase sempre carregando um manequim; este ato alude ao estranhamente belo afresco do diabo carregando um corpo morto no início do filme. A sugestão de Bava aqui é bastante óbvia: o personagem humano, vivo ou morto, é pouco mais que um boneco. Os manequins servem como um constante lembrete disso. Bava chega a ilustrar essa idéia ao ter seus atores "interpretando" os manequins em certos pontos. Telly Savalas, que interpreta Leandro, investe muito charme e um humor singular no personagem. Ao dar a este personagem tanta personalidade (e o melhor diálogo do filme), Bava vividamente ilustra a atração sedutora do mal. Escuso e travesso, Leandro constantemente mente para todos os personagens. Ele dá a Lisa falsas direções na praça, por exemplo, e chupa pirulitos para esconder o fato de que esteve fumando - a Condessa (Alida Valli) não permite que fumem em sua casa. Freqüentemente visto reclamando sobre sua pesada carga de trabalho, na privacidade de um quarto repleto de manequins (sombras de Hatchet for the Honeymoon) ele imita comicamente seus patrões e fantasia sobre mais tempo livre em suas mãos. A deliciosa ironia é que, claro, Leandro é quem está no comando; é simplesmente conveniente para seus propósitos de encenação tomar a forma de um humilde mordomo.

Lisa não é um filme fácil, pois pede ao espectador que se mantenha alerta o tempo inteiro e que forme suas próprias conclusões sobre o que está realmente acontecendo. Bava torna completamente indistinta a linha entre realidade e fantasia; os dois finalmente se tornarão inseparáveis. Lisa captura a sensação de um pesadelo com mais poesia e imaginação que qualquer outro filme.

Com razão, Bava estava muito orgulhoso com o resultado final, mas o que deveria ter sido um momento de glória se deteriorou em completa humilhação quando o diretor foi forçado a retrabalhar o filme radicalmente por razões comerciais. Os distribuidores, assustados pela estrutura não-linear e pelo clima alucinatório, consideraram Lisa um produto impossível de ser lançado. A resposta do produtor Alfredo Leone foi forçar Bava a filmar cenas adicionais, aproveitando-se do sucesso de O Exorcista (1973), de William Friedkin. Estas novas cenas, contando com a participação de Robert Alda como um padre tentando exorcizar uma obscena e possuída Elke Sommer, destruíram totalmente o tom de sonho do original, porém pareceram aceitáveis aos distribuidores.

Esta nova versão, La Casa dell'Esorcismo, foi distribuída em 1975 e recebeu críticas merecidamente horrendas. De todos os filmes que Bava tem ligação, La Casa é certamente o pior, rivalizando até mesmo com o corte da AIP (American International Pictures) de Le Spie Vengono dal Semifreddo (Dr. Goldfoot and the Girl Bombs). Ao tentar visualizar os inexplicáveis horrores implícitos no original, o filme sucede em ser apenas risível. Pior: por tirar da narrativa o que o original tem de perplexo e ambíguo, o filme torna-se totalmente incompreensível. Onde Lisa é elegante e desconcertante, La Casa é grosseiro e odiável - dificilmente qualidades a serem associadas com Bava. Mesmo assim, Bava não deve ser culpado por esta atrocidade. Apesar de ter começado a filmar as cenas adicionais, ele recusou filmar qualquer coisa que considerasse blasfema. Isto resultou numa discussão com Leone, que acabou tomando a direção, terminando as cenas adicionais e supervisionando a re-edição final. Os dois homens mais tarde resolveram suas diferenças, mas não antes da obra-prima de Bava ter sido transformada em um dos piores plágios de O Exorcista de toda a história.

Felizmente, Lisa é hoje disponível para o grande público em vídeo, laserdisc e DVD. Em sua versão original, é um filme poderoso e de grande beleza, e uma belíssima prova do gênio e da inovação de Bava. É verdadeiramente um de seus grandes feitos.

Troy Howarth