Cat in the Brain,
de Lucio Fulci

Un Gatto
nel Cervello, Itália, 1990
Acometido
por terríveis alucinações de morte e violência,
o famoso diretor de filmes de horror Lucio Fulci não consegue mais
se alimentar nem dormir. Logo depois de quase trucidar um pacato vizinho
a machadadas em um de seus delírios, Fulci entra no consultório
de um especialista em tratamento hipnótico, o Dr. Schwartz, para
se tratar. O médico, após assistir à obra completa
do cineasta, resolve dar prosseguimento ao tratamento com uma sessão
de hipnose; entre uma e outra volta do metronômio, o doutor revela-se
um psicopata feroz que aproveita-se da condição de Fulci
para atribuir-lhe a culpa dos crimes que passa a cometer.
Esta é a premissa
de Cat in the Brain (ou Nightmare Concert), filme tardio
onde Lucio Fulci resolveu fazer à sua maneira característica
um filme auto-reflexivo. Sem propriamente o intuito de exorcizar fantasmas
ou realizar uma daquelas auto-análises masturbatórias, Cat
é uma obra de inusitada ironia e de humor negríssimo, um
inventário delirante do sadismo, perversão e pesadelo que
constituem o bizarro universo de Fulci.
O filme se abre com
um plano em plongée do diretor sentado à escrivaninha escrevendo
um roteiro. A câmera se aproxima lentamente, enquanto ouvimos uma
voz cavernosa saída dos recônditos da mente de Fulci narrando
os detalhes da criação: "...uma garganta dilacerada...
um corpo cortado ao meio por uma motosserra... uma faca rasgando um coração...".
Uma passagem de foco e vemos o cérebro de Fulci em plena atividade,
um gato enlouquecido estraçalhando-o em mil pedaços... Segue-se
uma amostra prática de seu trabalho: uma sequência em que
somos conduzidos ao porão de uma casa qualquer onde um corpo feminino
nu repousa languidamente numa mesa cirúrgica; um homem delicia-se
com um filé fresco retirado do cadáver para em seguida dividi-lo
em partes com uma serra elétrica, passar os pedaços num
moedor de carne e atirar os restos aos porcos no chiqueiro.
No intervalo das filmagens,
Fulci tenta almoçar sem sucesso, enojado pelas asquerosas visões
da sequência que dirigiu. Como que aprisionado em seu próprio
universo macabro, tudo que atravessa o caminho cotidiano do cineasta transforma-se
em pesadelo: uma garrafa quebrada vira um cadáver putrefato; a
vizinha paraplégica torna-se um zumbi; a vizinha boazuda esfaqueia
o marido ciumento; um set de filmagens vira palco de uma orgia demoníaca
(numa paródia impagável do final de Terror nas Trevas);
uma entrevista para uma equipe de TV alemã é encenada como
uma orgia praticada por jovens nazistas.
Fulci utiliza sobras
e cenas censuradas de seus filmes anteriores (When Alice Broke the
Mirror, Ghosts of Sodom, Bloody Psycho, e outros) para
compor seus delírios, inserindo-as articuladamente na narrativa
como uma teia auto-referencial. O exercício metalinguístico
não para por aí; paródias sangrentas de Psicose
e Janela Indiscreta de Hitchcock ou do M de Lang surgem
volta e meia nas desvairadas alucinações do diretor. Mais
que intrusões cômicas, estas referências formam no
conjunto um gesto de tributo aos mestres, totalmente adequado à
estrutura que Fulci persegue em Cat – a de um filme-testamento.
Mas Cat só
é um filme pessoal na medida em que apresenta o auto-retrato do
cineasta numa chave irônica. Os brevíssimos relatos do cotidiano
de Fulci, quando não interrompidos por seus delírios (algo
bastante raro), sugerem um homem comum vivendo num ambiente comum. Como
no Exorcismo Negro de Mojica, um filme-irmão, o cineasta
se permite ser apresentado como um homem estável e respeitado (na
placa dourada que adorna a porta de sua casa lemos "Dr. Lucio Fulci"),
dono de distrações tão mundanas como iatismo e pescaria
e pequenas ilusões de notoriedade (como a atendente do consultório
que o reconhece contando para uma amiga: "é Lucio Fulci, o
famoso cineasta"), vitimado pela dedicação sem limites
a sua imaginação irrefreável. Embora um componente
de auto-indulgência esteja presente, Fulci subverte todo o tempo
sua imagem, voltando para si mesmo sua ironia.
Mas no universo psicótico
de Cat in the Brain, todo referencial de realidade se desintegra
no embate com a imaginação, deixando antever a verdade última
do cinema de Fulci: uma entrega ilimitada à fantasia e ao pesadelo
e a crença absoluta no poder encantatório (e, porque não,
hipnótico) da imagem em movimento.
Fernando Verissimo
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