Blood and black lace, de Mario Bava

Sei Donne per l'Assassino, Itália/França/Alemanha Ocidental, 1964

Esta crítica é uma versão abreviada da original, presente no livro The Haunted World of Mario Bava. Editora: FAB Press (o livro pode ser comprado on-line pela fabpress.com)

SINOPSE:

Isabel, uma modelo na chique casa de moda Haute Couture, que é de propriedade da recente viúva Condessa Christina Cuomo e gerenciada por Massimo Morlacchi, é assassinada brutalmente por um assaltante desconhecido. A investigação subseqüente da polícia, representada pelo arrogante inspetor Sylvester, revela a casa como um verdadeiro antro de drogas, corrupção e chantagem. Quando se descobre que Isabella mantinha um diário que detalhava estas indiscrições, tudo é jogado em dúvida. Inicialmente o diário cai nas mãos de Nicole, que promete levá-lo à polícia, mas outra das modelos, Peggy, consegue tirá-lo de suas mãos sem que ela perceba. Mais tarde nessa noite, Nicole vai visitar seu amante Frank em seu antiquário; lá, ela é aterrorizada por sons estranhos e por sombras fugazes, mas antes que possa escapar, é atacada e morta por uma figura misteriosa vestida de preto.

Descobrindo que a jovem morta não mais possui o diário, o assassino foge do antiquário e sequestra Peggy em seu apartamento. Embora a menina estarrecida assegure ao assassino que queimou o diário, ele se recusa a acreditar, recorrendo assim à tortura. Quando remove a máscara do seu assaltante, revelando Massimo como o culpada, ela é forçada a pagar com sua vida.

Massimo havia previamente ajudado sua amante Condessa Christina a assassinar seu marido, mas quando Isabella descobriu o assassinato, o chantageou. Uma vez que suas demandas se tornaram demasiado elevadas, ele matou-a, sem perceber que ela tinha escrito tudo no diário. Agora que o diário e tudo que levava a seu conhecimento haviam sido eliminados, Massimo parece não ter nada a temer.  Entretanto, o inspetor é convencido de que o assassino está bem abaixo de seu nariz, resolvendo então colocar todos os homens ligados aos crimes atrás das grades. Em um movimento arrojado para afastar a suspeita de seu amante, a Coundessa Christina veste a roupa do assassino e mata uma outra modelo. De modo que este crime ocorre enquanto os homens estão na cadeia, eles obviamente não podem ser culpados, sendo assim liberados. Contudo Massimo está bem ciente de que não está ainda fora de perigo; ele instiga um plano astucioso para levar Christina à sua própria morte, dando ao mesmo tempo à polícia a impressão que ela era a maníaca procurada. O tiro sai pela culatra, entretanto, e os amantes culpados morrem nos braços um do outro.

CRÍTICA:

Concebido inicialmente pelos co-financiadores da Alemanha Ocidental como um thriller policial de rotina, no modo de Edgar Wallace, Sei Donne per l'Assassino representa um tremendo avanço no desenvolvimento do moderno filme de horror. É, de fato, discutivelmente o primeiríssimo filme slasher, embora esse rótulo diminua as conquistas de Bava por razões que se tornarão logo aparentes.

Neste filme, Bava retira a ênfase nas personagens e motivações psicológicas, criando desse modo uma literal sinfonia da violência em que ninguém é o que parece. No paranóico ambiente do filme, não se deve confiar em ninguém. Homens de negócio aparentemente respeitáveis revelam-se assassinos sádicos; todos os outros ou são seguros-de-si e intocáveis (por exemplo, o inspetor) ou traiçoeiros chantagistas. Desnecessário dizer que os espectadores em busca de um filme "pra cima" sobre pessoas felizes e maravilhosas não devem se arriscar. Bava usa sua câmera para que o público fisicamente tome parte na ação, sem encorajar contudo a simpatia do espectador com as personagens; por estas razões, muitos críticos continuam a vilipendiar Sei Donne, levando Bava a responder pela criação de uma celebração sem remorsos do sadismo.

Com bastante frequência, as personagens de Bava são marcados por sua incapacidade de amar. Em nenhum outro filme este conceito é mais aparente. Ainda que a maioria das personagens principais estejam envolvidas em relacionamentos, elas são demasiado travadas em seus próprios mundos para sentir realmente algo pelos outros. O estranho negociante do antiquário, Frank, por exemplo, gaba-se ao inspetor de que "não acredita em relacionamentos permanentes, exclusivos". E mais, ele parece genuinamente não afetado pelo fato que duas de suas amantes foram mortas selvagemente. Somente quando a polícia o considera suspeito das matanças que ele passa a demonstrar interesse em qualquer coisa além de sexo e drogas. Ao inspetor também falta qualquer paixão, mesmo aparentemente pelo seu trabalho; ele quase pode ser visto como uma paródia das figuras de autoridade da escola Joe Friday/DRAGNET: "just the facts, ma'am". Somente a Coundessa Christina exibe alguma emoção verdadeira, embora paradoxalmente esta conduza a sua desgraça. Seu amor por Massimo é completamente genuíno, de tal modo que não lhe deixa enxergar suas falhas e a compele a cometer atos hediondos para mantê-lo ao seu lado. Em contraste, Massimo é exclusivamente preocupado com posses: carros rápidos, roupas caras, o centro de moda, etc. É ele quem compele Christina a assassinar seu marido, permitindo-o controlar, desta forma, o negócio da moda. Finalmente, quando se cansa da Condessa, ele arruma friamente uma maneira de se dispor dela, utilizando-a como um bode espiatório para seus crimes. Em sua incapacidade de amar Christina, Massimo literalmente se destrói. Enquanto considera que pode usar qualquer um para obter o que quer, ele não leva a força e os recursos de Christina em conta. Christina é cegada totalmente por suas emoções -- não há nada que possa fazer para controlar isto -- mas, ironicamente, se Massimo tivesse investido ao menos algum amor genuíno em seu relacionamento, poderia provavelmente fugir à culpa de seus crimes; é a SUA impotência emocional que o destrói, não alguma fraqueza da parte de Christina.

Muitos filmes de Bava lidam com pseudo-aristocratas moralmente falidos, e Sei Donne não é nenhuma exceção. Christina tem a distinção do título: é uma condessa, e este título rende seu status social elitista.  Com sua classe social, naturalmente, vem o dinheiro -- aquilo que fornece as motivaçõess das personagens.  Da mesma maneira que a família de Menliff em The Whip and the Body se utiliza de sua "superioridade" social para se desligarem da sociedade, Christina habita um mundo de seus próprios desígnios. O Christian Haute Couture Salon é menos um negócio que um símbolo de benesses sociais; os vestidos/modas que ela ajuda a promover alinha-se com seu próprio bolso, permitindo que ela se aparte dos "comuns" de Roma. A óbvia desconfiança de Bava em tal gente privilegiada -- que deriva de sua desconfiança em julgar as pessoas por sua aparência -- vem a termo de maneira bem forte. Christina, peão que é no jogo de Massimo, é ainda uma assassina decepcionante. Quaisquer características simpáticas que ela possua derivam de sua incapacidade em encontrar o amor e a atenção das pessoas certas; ela é cercada por sicofantas que secretamente fofocam sobre ela e que, como no caso de Massimo, tramam tomar sua riqueza. Ainda mais reveladora é a personagem de Richard Morrell, um assim-chamado marquês que possui um título extravagante e pouco mais. Um palhaço, Morrell faz objeção a ser algemado pela polícia e orgulhosamente anuncia que, como um aristocrata, está acima de tal tratamento. Como Christina, Morrell vive também em ambientes muito "exclusivos": uma villa que é aparentemente assombrada pela sempre presente figura de um antigo retentor da família, de visual singularmente triste. Morrell é um sanguessuga que vive dos salários de sua atraente noiva Greta, uma das modelos da Coundessa Christina. É o medo de Morrell de que seus débitos a Isabella sejam descobertos, destruindo assim sua imagem como um playboy rico, que arremessa Greta na tragédia. A ironia da morte de Greta é que a Coundessa Christina, que já se utiliza da imagem da menina para promover seu negócio, usa sua morte como um álibe de ferro para a inocência de Massimo (ela é morta enquanto Massimo e Morrell debilitavam-se na cadeia). Com sua morte, o verdadeiro assassino é libertado, enquanto o imprestável Morrell é poupado de todo o embaraço. A sutil alegoria é que ela é um dos aristocratas imorais usando a mais acessível, "inferior" classe trabalhista para seus propósitos nefastos. A noção da elite excessivamente privilegiada, isolados do restante do mundo, saciando todos os seus caprichos, informa muitos outros filmes de Bava, incluindo Banho de Sangue e Lisa e il Diavolo (Lisa and the Devil) (ambos lidam com as figuras da Condessa/mãe super-protetora que tentam impedir que suas proles mentalmente aberrantes se espalhem), Il Rosso Segno della Follia (Hatchet for the Honeymoon), e Mata, Bebê, Mata. Esta idéia também está presente no primeiro western de Bava, La Strada per Fort Alamo (The Road to Fort Alamo), em que os colonizadores europeus são descritos como racistas ambiciosos, enquanto os assim chamados indesejáveis (os americanos nativos, os fora-da-lei) são mostrados de maneira mais humanista. A sugestão de Bava parece ser que a falta de contato com a realidade cotidiana é uma coisa perigosa, mesmo se o mundo de um modo geral está longe da perfeição (cf. Cani Arrabiati / Rabid Dogs).

Executado com uma perspicácia mórbida e repleto dos deslumbrantes toques estilísticos que tiveram tão profunda influência em Dario Argento e Martin Scorsese, Sei Donne representa uma etapa lógica na maturidade crescente de Bava como cineasta. Os recursos um tanto limitados dos gêneros do gótico e do peplum deixaram o diretor ansioso por tentar algo novo. Embora La Ragazza che Sapeva Troppo (The Girl Who Knew too Much) tenha permitido que ele deixasse pra trás as armadilhas artificiais do filme de época, ele ainda sofre de certa falta de maturidade -- pode ser o primeiro giallo, mas é um giallo incerto. Em As Três Máscaras do Terror, o diretor deu um passo no sentido correto com o segmento "Il telefono" (seu segundo thriller com ambientação contemporânea), mas Sei Donne permanece o primeiro exemplo verdadeiramente sanguinolento do giallo. É um filme de tal crueldade sem remorsos e cinismo amargo que agitou o gênero em seus próprios fundamentos. Mesmo se não é o melhor thriller a sair da Itália (esta honra pertence a Prelúdio para Matar, 1975 de Dario Argento), é um exemplo compendioso do que fascina os conhecedores no trabalho de Bava, e do que outros consideram estar faltando, ou do que consideram simplesmente ofensivo.

Visualmente falando, Sei Donne é uma dos filmes mais bonitos de Bava: não há um único plano que não pareça positivamente reluzir. Ainda que criticado pela inconsistência por Maitland McDonagh em BROKEN MIRRORS/ BROKEN MINDS: THE DARK DREAMS OF DARIO ARGENTO, não há nada descuidado no visual do filme. Antecedendo os massacres engenhosamente coreografados de Argento por diversos anos, Bava não deixa escapar nenhuma oportunidade de dar plena vazão a sua imaginação nada convencional. Uma mulher tem seu rosto repetidamente esmagado de encontro ao tronco de uma árvore; o rosto de uma outra jovem é rasgado em pedaços por uma luva de metal laminada (ecos da sequência de abertura de A Maldição do Demônio), e uma outra vítima é escaldada à morte por uma fornalha em brasa. A sedutora encenação de Bava e seu uso impecavelmente orquestrado da cor emprestam a estas cenas uma beleza perturbadora; Hitchcock pôde ter sido pioneiro no aspecto auto-analítico, voyeurístico do cinema, mas Bava foi o primeiro a confrontar clamorosamente a mórbida obsessão do público com a violência. A violência é intensa, distante de qualquer coisa em Psicose de Hitchcock (1960) ou em Peeping Tom de Michael Powell (1960), mas dificilmente há qualquer sangue derramado. A cor vermelha, irrevogavelmente associada a atos de violência por razões óbvias, é predominante na paleta de cores doces de Sei Donne, dos telefones e dos adornos vermelhos do Haute Couture Salon ao batom e esmalte que adorna os corpos das modelo-vítimas; a consciência culpada de Massimo é reafirmada em sua vestimenta com manchas carmesins. Este uso da cor não é hiperbólico, mas antes serve como uma representação simbólica da narrativa manchada de sangue.

O uso direção de arte por Bava fornece o particular impacto de Sei Donne. A idéia mesma de ambientar um violento thriller de assassinato nos confins de uma casa de moda é um conceito deliciosamente irônico, estabelecendo imediatamente um conflito inquietante entre a ação e o ambiente.  Superficialmente, o Haute Couture Salon representa um patamar de beleza e cultura -- é aqui que os pessoas vão para se embelezar -- mas, uma vez mais, as coisas raramente são o que aparentam no universo de Bava: para dizer o mínimo, a corrupção que se esconde por trás desta exterioridade prova ser destrutiva e mortal. Com seu sempre critativo uso de cor e sombras, Bava empresta ao Salon um visual ao mesmo tempo sinistro e belo. Da mesma maneira que o diretor encontra beleza nos vários assassinatos que percorrem a narrativa, a ambientação logra ser tanto perturbadora quanto agradável ao olhar.

Em uma crítica bastante laudatória de Sei Donne (cf. FANGORIA # 100), Tim Lucas comenta o ponto de vista "maturamente misógino" do filme, embora não há qualquer maneira de negar que as personagens masculinas são apresentadas muito desfavoravelmente. Não há heróis neste filme, e Bava não incentiva o espectador a simpatizar com ninguém. O assassino vestido em negro, sua face escondida com uma escarfa de seda branca, representa o lado mal de todo homem. Ao contrário de posteriores "assassinos em série" como Freddy Krueger, o assassino de Bava é apresentado sem qualquer personalidade. Parte da razão que o gênero do slasher tem recebido tanta crítica negativa é que, intencionalmente ou não, poucos cineastas apresentaram seus assassinos como figuras heróicas que seguem punindo pessoas merecedoras que, de uma forma ou de outra, tenham quebrado os códigos morais da sociedade. Bava nunca comete este erro.  Ao invés disso, ao provocar uma resposta estimulante do público durante as cenas do assassinato, Bava está encorajando o público não apenas a recuar e examinar seu próprio código moral, mas também a pensar no poder do visual. De um modo muito concreto, não-abstrato, Bava força o espectador a enxergar o incrível potencial do cinema de fazer mesmo os atos mais horripilantes parecerem perturbadoramente bonitos.

Mesmo se os filmes que inspirou (incluindo Haloween de John Carpenter, 1978, e Cabo do Medo de Martin Scorsese, 1991) não sejam, Sei Donne permanesce um filme de poder e substância, e um clássico em seu próprio direito.

Troy Howarth

Tradução de Fernando Verissimo
copyright do original: Troy Howarth
Reproduzido com autorização do autor