Banho de Sangue, de Mario Bava

L'Ecologia del Delitto/Reazione en Catena/Bay of Blood, Itália, 1971


Banho de Sangue, de Mario Bava

Dos Homens e dos Insetos -
Mario Bava e sua Ecologia do Crime

A principal personagem de L'Ecologia del Delitto (também conhecido como Banho de Sangue, Reazione en Catena, Antefatto, Twitch of the Death Nerve, A Bay of Blood, Bloodbath, Carnage, Last House on the Left Part II, O Sexo na sua Forma mais Violenta ou Mansão da Morte) é a própria câmera. Perseguindo sua lógica particular, uma estranha moral que iguala homens a insetos, que insere sofrimento e ambição humanas num teatro delirante de morte e sadismo, ela assume pontos de vista, captura pensamentos e ações. À câmera tudo é permitido; em nenhum outro filme de Mario Bava ela ocupou uma posição tão central.

Como um brevíssimo prólogo para o seu ensaio radical sobre o olhar, Bava inicia o relato apontando sua câmera em mórbido êxtase para um inseto invisível que agoniza antes de cair morto nas agitadas águas de uma Baía. Em seguida acompanhamos a melancólica proprietária da mesma Baía, a Condessa Federica, nos seus últimos minutos de vida. Através da janela, numa sucessão curta de passagens de foco, uma gota de chuva transformada em lágrima se dissolve nas águas turbulentas da Baía; essas águas, seguindo seu movimento incessante, passam pela pequena luz saída de uma outra janela: a do pequeno barracão localizado na margem oposta à da Condessa. Aprenderemos depois que o habitante da choupana é seu filho ilegítimo e seu vingador último, Simon, posto ali para lembrá-la eternamente de seu amor proibido (ou das fraquezas da carne, como quer outra personagem). Como um golpe de vista, o primeiro de uma série, uma corda enlaça o pescoço da Condessa, imersa em nostalgia.

Quando nos planos seguintes a câmera revela o rosto do assassino sabemos que não estamos diante de um filme de mistério vulgar; quando logo a seguir, o assassino é morto com firmes e impiedosas estocadas por um matador invisível, nos sentimos entrar subitamente no território do giallo. É um território que Bava domina como ninguém, e é partindo das bases do gênero que o cineasta dá sequência à sua investigação.

Ecologia del Delitto é tido por alguns como um filme menor do maestro. Muitas das características mais incensadas por seus admiradores estão de fato ausentes ou presentes em menor escala (a construção de atmosferas lúgubres, a sexualidade mórbida). Mas o que pode parecer num primeiro momento um sinal de cansaço e decadência revela-se numa revisão um desvio calculado na carreira de Bava. Filmado boa parte em locações externas com ambientação contemporânea e utilização experimental e ostensiva de composições, movimentos de câmera e do zoom, Ecologia é o primeiro passo numa fase de auto-reflexão formal do cineasta (e do gênero, abrindo caminho para os gialli modernos de Dario Argento)

Ecologia tem o mérito bastante duvidoso de ser considerado um precursor dos slasher movies norte-americanos, tendo servido como fonte de inspiração (e de plágio descarado) para a série de enorme sucesso Sexta-Feira 13, de Sean S. Cunningham, onde adolescentes boçais e ultra-sexualizados eram executados barbaramente por um monstro mascarado com super-poderes, ressucitado das trevas da mais profunda idiotice para executar sua óbvia vingança. Não se encontra um centavo do gênio de Bava nestas cópias pálidas; elas podem se apropriar de algumas de suas conquistas formais (quando não de sequências inteiras!) para a exposição de seu inventário de perversões e escatologia, mas não fazem sombra à sua ousadia e inventividade.

Mario Bava realizaria em seguida, num espaço de dois anos, Baron Blood, um retorno ao horror gótico, e Lisa and the Devil, sua obra-prima. Lisa é um estudo brilhante sobre o corpo e o espaço no cinema, que leva a cabo uma estrutura narrativa de contornos quase abstratos, algo já ensaiado em Ecologia. Se Lisa é a reflexão e síntese repleta de ironia da filosofia da composição baviana, em que o cineasta se projeta na figura do demônio que tortura suas personagens/manequins, Ecologia é sua mais perfeita e mordaz exemplificação, a colocação em prática destes conceitos.

Auxiliado pela trilha sonora excepcional de Stelvio Cipriani, Bava constrói meticulosamente para cada bloco de personagens e seus dramas individuais uma atmosfera única, ora de intensa melancolia ora de pura frieza, apenas para melhor destruí-la em sequência, das mais diversas maneiras. Uma delas, recorrente em Ecologia del Delitto, demonstra sua lógica profunda ao efetuar uma mesma operação de distanciamento repetidas vezes: a câmera se desvia da ação para procurar entre frestas e folhagens a imagem de um observador oculto. Um plano obsessivo: um olho sem rosto à espreita, um olhar sem alma -- no jogo de espelhos criado pela câmera de Bava, quem observa é também observado todo o tempo. O papel do espectador é colocado em xeque, ficamos todos desconfortáveis porque somos nós, em última instância, que estamos sendo observados.

Fernando Verissimo