Argento hoje



Dario Argento dá indicações para sua filha Asia Argento, enquanto
o diretor de fotografia Giuseppe Rotunno só observa a beleza da moça


Mesmo entre os fãs mais ardorosos de Dario Argento existe a idéia que, após Terror na Ópera, o cineasta entrou em decadência. É verdade que a década de 90 foi complicada para Argento. Os orçamentos ficaram progressivamente menores e houve uma malfadada tentativa de filmar nos EUA (Trauma). Por outro lado, nos filmes em que foi bem sucedido, é possível notar Argento no melhor de sua forma.

Dos quatro longas e um média que seguiram Terror na Ópera, o único que dá espaço para especulações sobre uma decadência de Argento é Um Vulto na Escuridão (98). Uma segunda tentativa de adaptar O Fantasma da Ópera, o que primeiro decepciona é o pouco que o filme acrescenta ao belo Terror na Ópera. Exceção feita à abertura atmosférica homenageando Tim Burton e um ou outro momento na meia hora final, há muito pouco de interesse aqui. Nem mesmo temas recorrentes de Argento parecem se esboçar no filme (com exceção de sua paixão por animais). Já O Gato Preto (90) é um média-metragem que faz parte de uma coletânea de adaptações de Edgar Allan Poe chamada Dois Olhos Satânicos e muito melhor sucedido. É o ultimo dos típicos filmes de Argento e uma das melhores adaptações de Poe, muito rico em atmosfera ao mesmo tempo em que o diretor equilibra habilmente seus temas habituais ao universo do escritor.

Se não é um dos grandes filmes de Argento, Trauma (92) parece uma peça importante na evolução de sua obra recente. O filme teve problemas de produção e o corte final aparentemente desagrada o cineasta. Isto ajuda a explicar sua irregularidade, com alguns belos momentos convivendo com outros de menor interesse, incluindo uma cena envolvendo uma cabeça decepada falante embaraçosa. As características centrais de Argento estão lá, desde o investigador (no caso a filha do casal assassinado no inicio interpretada pela filha do cineasta, Asia) que para solucionar os crimes precisa retornar à imagem do assassinato que presenciou e decifrá-la até o universo bem particular que seus personagens habitam (assim como a Suíça de Phenomena, o Estados Unidos de Trauma pouco se diferencia das cidades italianas de seus demais filmes). Porém, o que me parece mais importante aqui é um prenúncio de mudança de tom que se consolidaria nos filmes subseqüentes, onde o ritmo mais frenético de Terror na Ópera - no qual uma elaborada seqüência tensa e violenta se seguia a outra de forma quase ininterrupta - começa a ser substituído por outro mais intimista e contemplativo.

Esta mudança está bem melhor definida em Síndrome de Stendhal (96; em vídeo, Síndrome Mortal). A síndrome do título se refere a uma disfunção cujo portador perde a noção de realidade diante de uma obra de arte. Uma das obsessões de Argento é a pintura e em vários de seus filmes anteriores se esboçava um desejo de transformar o filme num quadro. As cenas em que a protagonista "entra" em quadros são as que mais interessam Argento e elas de fato impressionam.

A trama diz respeito a uma policial que depois de ser estuprada por um serial killer que ela investigava começa lentamente a enlouquecer. Argento não facilita o desenvolvimento da narrativa ao espectador, quebrando-a bruscamente a toda hora: em um momento estamos num típico filme de caça ao assassino, em outros em um estudo psicológico, num romance, até o ato final onde se torna um híbrido de Vestida para Matar e Repulsa ao Sexo. O próprio tratamento da psicologia no filme oscila, nunca temos certeza até onde o diretor está levando aquilo a sério ou não. A cena final, porém, é uma das mais belas na obra de Argento: a heroína, já a esta altura ela própria uma assassina, corre enlouquecida enquanto um grupo de policiais tenta acalmá-la. Um corte para o ponto de vista dela e os policiais, pelo simples posicionamento da câmera, se tornam um grupo de homens prontos a estuprá-la.

Síndrome é um dos filmes mais perturbadores do autor, onde as coisas raramente se tornam claras ao espectador. Porém apesar do clima angustiante, do assunto e das constantes quebras, o filme segue um caminho bastante intimista acompanhando o trajeto da policial rumo à loucura. Ele é quebrado de tempos em tempos pelas duas seqüências de estupro, pelas cenas com os quadros e alguns dos assassinatos.

Esta mudança parece definitiva com o último trabalho do diretor, Insônia (2001). Antes de qualquer coisa, trata-se de um retorno a O Gato de Nove Caudas (70), o segundo e mais narrativo dos seus filmes. As semelhanças e, em especial, as diferenças entre os dois filmes são bastante esclarecedoras sobre os rumos da carreira recente de Dario Argento. Ambos giram em torno de uma investigação de uma série de assassinatos onde um jovem precisa da ajuda de um velho para solucionar os crimes. O grande diferencial está no ponto de vista: em O Gato de Nove Caudas é o jovem quem conduz a narrativa, enquanto em Insônia, o herói também é o jovem, mas é o policial aposentado interpretado por Max von Sydow com quem Argento mais se identifica e que carrega o espectador pela maior parte do filme.

Insônia é um filme de um cineasta já veterano que parece não ter mais preocupação alguma em provar nada a ninguém. Ë um filme anacrônico, um giallo da década de 70 feito em 2001, que parece não ter interesse algum nas tendências recentes dos filmes de serial killer. Não há nenhuma amargura nisto; Argento apenas manifesta o desejo de fazer seu filme, o mesmo O Gato de Nove Caudas feito por alguém que trinta anos depois não vê as coisas do mesmo jeito. Se há uma palavra que define Insônia é serenidade.

O filme abre com uma longa e típica seqüência do diretor, onde vemos uma prostituta sendo perseguida num trem. Passado este momento o filme acalma e entramos na trama sobre duas séries de crimes separadas por 17 anos, onde Max von Sydow decide que talvez tenha pegado o homem errado e resolve sair da aposentadoria. Sua única ajuda é do filho de uma das vítimas originais que presenciou o crime e lembra da silhueta diminuta do assassino. Será mesmo? Quem conhece bem a obra de Argento sabe que este tipo de material já foi usado por ele várias vezes, pouco importa quanto o cineasta ainda tiver o que dizer sobre o assunto. O jovem precisa se confrontar com a imagem da morte da mãe, o ex-policial com todas as lembranças da investigação original e encontrar onde cometeu seu erro e só assim poderá voltar a dormir. Insônia cumpre sua trajetória de forma tranqüila, sem grandes surpresas, mas com belos momentos (um longo plano envolvendo um tapete é especialmente memorável). É um filme tão bom ou melhor que O Gato de Nove Caudas, e ilustra muito bem a ânsia do diretor (tratada com verdadeira urgência nestes últimos trabalhos) de culminar com a restauração da ordem - o detetive von Sydow conseguindo seu sono após 17 anos, o filho que descobre o assassino de sua mãe - após um momento de desequilíbrio.

Filipe Furtado