O Poder do Machado de Xangô,
de Paulo Gil Soares

Brasil, 1976
Co-produção
com um canal de televisão Francês, com a orientação
do antropólogo Pierre Verger, O Poder do Machado de Xangô
é a prova viva de que uma reportagem-documentário de TV
pode sim seguir os moldes clássicos do documentário sem
cair no desencantamento de seus objetos.
* *
*
Sérgio Chapellin
abre o programa com um discurso curioso para os moldes atuais do telejornalismo
Global: condenam a ignorância das origens sociais, as pretensões
reducionistas e afirma a importância da resistência cultural
negra no país - em tom quase emotivo, o âncora abre espaço
para um dos melhores documentários televisivos já realizados
sobre a temática negra no Brasil:
Com uma trilha sonora
expressiva, o filme é todo permeado pela voz do narrador mas, surpreendentemente,
não se entrega às tentações reducionistas:
conta a história da viagem de um homem brasileiro, Balbino, à
África de seus antepassados e tenta mostrar mais do que revelar.
O filme esboça
os sinais da cultura negra em Salvador, faz um resumo das principais tradições
e, num pequeno histórico, chega à expressão máxima
dessa resistência cultural: a religião.
São poucos
os depoimentos antes que o filme se aproxime de vez de seu personagem
principal e sua viagem. Apesar de mediadas pela voz de Chapellin, as imagens
começam então a tomar o controle do filme:
São elas, que
nos trazem a força dos rituais e os sons das vozes, que nos colocam
num espaço de encantamento raro na TV dos dias de hoje. Aos poucos,
a voz off também vai se entregando ao espaço imaginário
do filme e a descrição dos fatos objetivos dá lugar
a frases como: "E então, a mulher entra em transe, possuída
por Oxalá..."
Essa afirmação
taxativa em torno do que poderia ter sido descrito como crença,
ou traduzido para explicações científicas, é
uma verdadeira raridade da televisão brasileira. As imagens do
culto não recebem qualquer explicação além
da nomeação dos orixás presentes e uma certa orientação
para os olhares menos acostumados: "Esse que vemos agora é
um Egum, Babáologojó". Essas descrições
não se tornam monótonas pois são filtradas pela presença
significativa de Balbino, o jovem brasileiro que vai à África
em busca de um templo de Xangô.
Na cena mais bonita
do filme, Balbino, com dificuldades de comunicação com seus
antepassados do Benin, começa a cantar um hino de candomblé:
Aos poucos, e isso
a câmera observa silenciosamente, os africanos começam a
balançar as cabeças, movem seus corpos, dão uma espécie
de sorriso e começam a cantar juntos a mesma música de Balbino.
Essa imagem por si só, resumiria toda a energia de identidade cultural
que o filme carrega.
A partir daí,
Balbino começa a descobrir nas ruas os vestígios de suas
origens culturais.
Descobre finalmente
um templo de Xangô: Lá, a câmera nos mostra com cuidado
e paciência os rituais de surgimento de Xangô (aparecido no
meio da multidão na imagem de um homem). Xangô (e o documentário
o trata assim) caminha no meio da multidão, olha para a câmera...Grita!
Não há
Chapellin que resista a essas imagens: "Foi então que Balbino
entendeu...Finalmente ele sabia: Balbino era Xangô!...". Essa
frase anuncia o último bloco do programa, quando Balbino chega
de volta a casa e mostra os presentes trazidos para a família.Caminha
por uma Salvador de trios elétricos e vai "descobrindo os
nomes de orixás em cada esquina, nomes de lojas, hotéis,
restaurantes..."
É então
que Balbino se traveste de orixá pela primeira vez e começa
a dançar. Sem que nenhum comentário seja feito, o homem
Balbino se retorce diante da câmera e recebe Xangô. Não
há off que se agüente em sua frieza: "A poderosa herança
de Balbino surge diante de nós".
* * *
Chapellin termina o programa com um discurso de defesa não só
da diversidade cultural dos povos como com uma espécie de mea culpa
Global, baseado num atrapalhado cientificismo: "A própria
ciência moderna tem considerado possível a existência
de realidades paralelas...".
Impagável justificativa.
Traço de um
telejornalismo mais rico e menos reducionista, que não se atém
às friezas da mera informação narrada e dá
espaço à expressividade insubstituível das imagens
e de seus personagens. Um Globo Repórter que embarca em
seu tema, e que se deixa levar (quase por inteiro) pela energia própria
daquilo sobre o que fala.
Muito diferente do
caráter de turistas distanciados, de cientistas imparciais, comum
aos atuais programas da emissora. A personagem encantada de Balbino susbstitui
a figura do repórter-herói, deixa de lado o expedicionário
Global bem comportado.
Bons tempos...
Felipe Bragança
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