Muito Prazer, de David Neves

Muito Prazer talvez seja a quintessência da obra de David Neves. Mesmo para quem conhece a singularidade narrativa do diretor, o choque é inevitável. Desde os primeiros planos, já se percebe : trata-se do cinema no seu estado mais bruto, o minimalismo levado ao paroxismo. Planos seqüências enormes que parecem vídeos caseiros, zooms bagaceiríssimos, elipses na apresentação dos personagens... Enfim, as cenas se sucedem, a pretensa invisibilidade da mise-en-scène continua e você se pergunta como um diretor consegue tirar tanto de tão pouco? De onde saí toda essa força, essa consistência? É que o cinema de David tem um "jeito". Nada de frescuras, o negócio é ir direto na ferida. De certa forma, Muito Prazer lembra aqueles filmes do Truffaut da década de 70, como Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal ) ou Na Época da Inocência (L`Argent de Poche), não só na naturalidade dos atores, nessa maneira de captar o olhar, de buscar num turbilhão de sentimentos a expressão chave, mas principalmente no ritmo. Esses filmes parecem um pouco como um rascunho, uma superposição de histórias engraçadas, de "casos do dia-a-dia". David, como o Truffaut da década de 70, é um cineasta do quotidiano. E, como Truffaut, seu cinema surge naturalmente, isto é, com doçura. As vezes há uma explosão de lirismo, mas a impressão que se tem é de uma suavidade narrativa. É como se o diretor fosse selecionando o que um filme tem de essencial, levando seu espectador, sem que este tenha consciência, para a direção mais natural possível, isto é, a do documentário puro (grande lição de Jacques Becker). São filmes sem uma história e onde a falta de história não se sente.

Finalmente, dá para dizer que quem vê Muito Prazer dificilmente se esquece, porque percebe que ele é o cinema do Possível. Ele aproxima o cinema das pessoas, tira do que essa arte tem de mais superficial. Sim, é possível fazer cinema, não tem nada de difícil. O importante é ter algo a dizer. E é, como na cena final, poética e interativa, em que os personagens se apresentam ao espectador, fossemos apresentados("prazer") ao universo de um autor na sua forma mais bruta. Resumindo: Muito Prazer é a liberdade artística no que ela tem de mais feroz e expressiva.

Bolívar Torres

1. Exemplos de lirismo em Truffaut: a cena em que o "detetive" Doinel persegue uma mulher nas ruas de Paris em Beijos Proibidos; Claude Jade explicando para o filho os rituais que o pai faz antes de ir ao banheiro(e a troca de olhares num "slow motion da alma")em Domicile Conjugal Exemplos em Muito Prazer: a longa e repetitiva cena dos moleques discutindo com a polícia no calçadão; as cenas de sexo, que parecem coreografias(NINGUÉM FILMOU TÃO BEM DOIS CORPOS NUMA CAMA COMO DAVID NEVES)