Crônica da amável Recife (e um pouquinho de Curitiba)

Recife é uma cidade-mágica, e pelo segundo ano Contracampo se desloca no final de abril, mesmo com fundos próprios, para cobrir a vida cultural da cidade, especificamente o Festival de Cinema de Recife, maior evento do gênero do país em termos de público e terceiro em importância na economia interna do cinema brasileiro (só perde para os tradicionais gigantes Brasília e Gramado). Esse ano, com uma diferença: sou o único a propriamente cobrir o Festival. Eduardo Valente, segundo comparsa na empreitada, viaja para defender seu filme Um Sol Alaranjado, cabendo exclusivamente a mim a tarefa de relatar a experiência. Assim, o presente texto não poderia deixar de ser um relato em primeira pessoa (pois a cidade, passional, assim o pede) e parcial (como estar em tantos lugares ao mesmo tempo?) dos acontecimentos que envolveram essa edição do Festival.

Impressões, pois.
Pela segunda vez, ao menos no que pudemos presenciar, as seleções vinham duvidosas. Se no anterior havia denúncias de que a organização havia mexido nos resultados da comissão julgadora, dessa vez era um critério um pouco esdrúxulo, o da "regionalidade", que parecia dominar a seleção dos filmes. Muito bom para os turistas do eixo Rio-São Paulo, que poderão assistir à produção quase completa do nordeste do país, mas péssimo para os locais que, sob argumento da expressão de traços típicos das culturas locais, são desprovidos de alguns dos melhores filmes da recente safra por crivo temático, e não pelo qualitativo que, mesmo sendo um critério sempre questionável, é sempre necessário quando se trata de uma cidade que está à margem dos circuitos obrigatórios de circulação de filmes (ainda mais se tratando de curtas). Dentre os filmes que ficaram de fora, um causa espanto: Françoise de Rafael Conde. Além da impressionante experiência que é o filme, Françoise ainda conta com a excelente performance de Débora Falabella, tornada nacionalmente famosa interpretando uma menina drogada na novela O Clone. E quem conhece o festival sabe de sua inclinação para pagear estrelas globais, como Ana Paula Arósio no ano passado, vinda para defender o indefensável (para dizer o mínimo) Os Cristais Debaixo do Trono, de Del Rangel. Ainda a se notar a picuinha para com os amáveis e talentosos baderneiros do grupo Telephone Colorido, que ano passado não tiveram exibido seu Resgate Cultural (sob desculpa de que o filme não estaria pronto) e esse ano mais uma vez não se fizeram presentes com o filme, sabe-se lá por quê. As novidades do grupo, no entanto, são boas: além de estarem finalizando mais um curta, Mongos em Ipanema, eles gravaram uma ligação telefônica com Bertini, produtor do Festival, para futuro uso num filme. Espera-se ansiosamente.

A sala, o público, o evento.
Entrar no Teatro Guararapes é coisa sempre a se notar. Uma sala para 2500 pessoas, em esquema estádio, uma tela enorme, e o público que sempre entope (quando não superlota) o recinto evocam um sentimento de monumentalidade que o cinema aos poucos vai perdendo, e isso só torna a sensação mais rara. Do ponto de vista da organização e da afluência da população pernambucana, o Festival de Recife é um sucesso completo. Caído do céu no Teatro, um espectador estrangeiro perguntaria por que, afinal, reclama-se tanto que o brasileiro não vai prestigiar filmes nacionais. De fato, se levarmos em consideração os números de um filme razoavelmente bem sucedido como O Invasor (deve bater em 70.000 pessoas), uma única sessão lotada no festival já representa pouco mais de 3,5% do público total do filme. Um número assombroso. Respeitador, bem fácil de ser agradado (às vezes até demais), o público do festival aplaude, ri e prestigia. Uma exceção notável: quando uma equivocada apresentadora faz um comentário falando sobre baderna a propósito da entrada do mítico personagem local Mongos no momento da apresentação da equipe do filme O Invasor, uma vaia de sala lotada brinda o mau humor da moça. No mais, a platéia reagiu entre as palmas discretas e a ovação efusiva (ovação, aliás, é vocabulário corrente em Recife), mormente quando se tratava de filmes do estado e da região, como os fracos Tejucupapo e Metamorfose.

E os filmes, como vão?
Antes de tudo, faz-se obrigatório dizer o que não foi visto: Vontade, Dois Filmes numa Noite, Artesãos da Morte, Ismael e Adalgisa e João Cantador. Dentre os vistos, poucas novidades nos curtas. Ilha, filme de orçamento abastado para a média da produção, espanta pelo amadorismo com que tudo é feito. É um caso raro onde nada funciona, desde Leona Cavalli até a situação dramática (uma filha encontra o pai moribundo que não revia em anos), nada ganha peso. Os filmes de ficção circulam pela burocracia e pela correção (Homem Voa?, Polaco da Nhanha), pelo lirismo acadêmico bem-intencionado mas nada além de mediano (Retrato Pintado), mas também funcionam no registro da ousadia temática (Lugar Comum) ou estilística (O Prisioneiro). Mas entre a ousadia e o resultado dessa ousadia há uma lacuna difícil de ultrapassar. Lugar Comum tenta brincar com um autor que perde o controle de seus personagens até que passa a ser dominado por eles; Infelizmente, todo esse cinema referencial e auto-consciente, metalingüístico se esgota cada vez mais ano a ano, e o filme não acrescenta qualquer elemento de novidade. Já O Prisioneiro, com o excelente Claudio Jaborandy (merecido prêmio por atuação), alonga-se demais naquilo que é um argumento excelente: tudo aquilo que passa na cabeça de um ex-presidiário quando atravessa o corredor que o leva da cela de volta à rua. O diretor confiou nos efeitos sonoros ríspidos e em rápidos flashbacks, transformando o filme mais num portfólio de efeitos do que propriamente num retrato. Passemos rapidamente pelo table-tópico Todos os Dias São Iguais, pelo abjeto Do Amor e pela referencialidade óbvia de Cine Paixão.

Um grande filme: No Passo da Véia.
A Canga, de Marcos Villar, nos faz cada vez mais duvidar: por que Walter Carvalho fotografa os curtas do nordeste com amor e sem seus cada vez maiores sotaques de auteur? Em todo caso, o filme de Marcos Villar é uma bela metáfora da obediência que, mesmo tomando o formato perigoso e desgastado da alegoria dentro do curta-metragem, consegue realizar a contento todas as propostas do filme. Mas revelação mesmo é No Passo da Véia, de Jane Malaquias. Poucos filmes não se entregam nos primeiros minutos. Raríssimos curtas resistem à previsibilidade. Em No Passo da Véia, contudo, nada é definido, tudo é misterioso até o fim. Tomando um argumento ridículo de tão simples (uma senhora vende uma galinha para poder comprar um desodorante para dar de presente a seu neto jangadeiro), o filme trabalha o não-realismo dos atores de forma assustadoramente lírica, com imagens de uma beleza rara e difícil (Jane Malaquias, embora diretora de fotografia, não faz unicamente um filme de fotógrafa). Lidando com atores amadores, a diretora faz um filme mezzo-declamado (um senhor narra um poema embaixo de uma árvore, uma senhora chama uma pessoa para dentro da casa), mezzo-atuado (a véia do título negociando o preço de sua galinha ou comprando o desodorante mais barato), mas acima de tudo onde o estatuto de ficção do filme está sempre muito frágil, sendo discutido o tempo inteiro com o espectador. Afinal, o que importa em arte? Uma imitação perfeita ou a criação de um mundo? Se o leitor tende para a segunda, não se deixará de maravilhar como No Passo da Véia consegue misturar dois mundos – o da aldeia dos pescadores com o industrial da loja onde se vende desodorantes – sem evocar o mínimo paternalismo ou entrar na velha ladainha da exploração, etc. No Passo da Véia está à altura de sua protagonista: é forte, doce e carismático.

Documentários, animação...
Se não há nada da monta de No Passo da Véia nas categorias de animação ou documentário, dois filmes no entanto hão de ser defendidos com muita força: Glauces, de Joel Pizzini, e Patativa, de Ítalo Maia. Glauces – Estudo de um Rosto continua a saga de Pizzini em trabalhar a partir de materiais artísticos, seja uma tela de De Chirico ou a obra do poeta Manoel de Barros. Aqui, trata-se de observar Glauce Rocha e de lá extrair algo como um enigma: por que aquele rosto inevitavelmente denso e triste nos prende tanto a atenção? O filme trata-se de uma notável evolução na obra do cineasta: ao invés de procurar o "por trás" da experiência artística (a longa "viagem" do vigia Leonardo Villar em Enigma de um Dia), é do próprio seio da superfície do rosto de Glauce que o filme tenta criar uma emoção. Hermético? Nada disso. O público recifense soube reconhecer o projeto e ovacionou o filme. Já Patativa é um discreto retrato do poeta popular Patativa do Assaré, feito numa animação naïf o suficiente para combinar com a simplicidade poética do poeta retratado. Entre as outras animações, O Poeta e Roda de Samba são dois portfólios de animação, o último consistindo num filme-piada em 3D que se sustenta (?) numa implausível semelhança entre Nélson Cavaquinho e o Mestre Yoda da série Guerra nas Estrelas. Entre os documentários em curta-metragem, algum destaque para o singelo Como se Morre no Cinema, de Luelane Correia (sobre o futuro fictício do papagaio que se viu eclipsado pela cachorra na filmagem de Vidas Secas), e Zagati, de Nereu Cerdeira e Edu Felistoque, retrato interessante mas irregular da mítica figura paulistana do catador de lixo que faz sessões num cineminha improvisado.

Longas documentários.
Timor Lorosae leva o singelo subtítulo O Massacre Que o Mundo Não Viu. Quem sai do filme continua sem ver. O filme de Lucélia Santos trata de um tema nobre, importante e dá mais visibilidade à questão do Timor Leste, mas não consegue fazer nada além de um Globo Repórter muito do fraquinho. As únicas imagens com alguma dramaticidade são as de uma mãe pranteadora que conseguiu atrás de si um séquito de outras mães que perderam seus filhos na Guerra contra o opressor. Juazeiro – A Nova Jerusalém, de Rosemberg Cariry, recria a história do Padre Cícero a partir de toda (farta) iconografia disponível na região. Didático e monótono, o filme joga fora diversas sacadas interessantes em 100 minutos que se arrastam em offs explicativos de uma história que, aliás, já é contada em Milagre em Juazeiro. Onde a Terra Acaba, de Sérgio Machado, serve apenas como uma introdução à obra de Mário Peixoto, e nada além disso. Querendo transformar seu objeto em herói, o filme deixa de levantar a questão crucial: não teria o autor de Limite intencionalmente querido transformar-se mais em mito do que em cineasta? O Fim do Sem Fim, de Lucas Bambozzi, parte de um princípio muito interessante: filmar as profissões tornadas anacrônicas ou em extinção: engraxates, lanterninhas de cinema, amoladores, tocadores de sino de igreja, etc. O ponto de partida é excelente, os personagens idem, mas ao longo do filme vai surgindo a pergunta: que dramaticidade no fundo une todos esses personagens a ponto de fazer um filme em documentário enumerando-os? Melhor seria se os autores desmembrassem a película e fizessem uma série de episódios de cinco minutos para canais a cabo como Multishow ou GNT. Eu seria o primeiro a assistir.

Viva São João? Viva!!
Não tendo visto A Cobra Fumou, espécie de continuação do mal-falado Senta a Pua!, foi realmente com Viva São João de Andrucha Waddington que apareceu a única grande surpresa do festival em termos de longa-metragem. O filme é uma visita guiada em que Gilberto Gil introduz o espectador a todos os elementos característicos da cultura de São João: o baião, a força de Luiz Gonzaga na sedimentação da tradição, as danças, as comidas, os lugares, o rico cerimonial que vai até o café da manhã, as geografias... O retrato mescla a terceira pessoa (a câmera de Andrucha) com o relato confessional que diz eu de Gil, dando ao filme uma estranha dissonância que se faz presente numa magnífica seqüência do final, em que um GIlberto Gil inimaginavelmente incorpora um espírito e, chorando, começa a falar com sotaque carregado de sertanejo. Não é atuação, não é testemunho pessoal (embora ainda assim seja emocional e emocionado). O que é? Um mistério. Há ainda duas seqüências que confirmam Andrucha Waddington como verdadeiro talento: a luta dos fuguetes numa noite escura e uma infinita panorâmica (a câmera gira umas duas vezes) que filma unicamente a vegetação semi-árida e o solo desértico. Mais detalhes futuramente, quando do lançamento do filme.

Da dificuldade de ficcionar.
Cinco filmes inéditos, cinco possibilidades de reafirmar o laço com a produção nacional de longas de ficção, cinco esperanças de bons filmes, de filmes a defender, de filmes que possam fazer evoluir a relação do próprio público brasileiro com seu cinema. Infelizmente, nenhuma dessas esperanças é preenchida. Comecemos com Histórias do Olhar, de Isa Albuquerque: por trás da pretensão do título, não existe olhar nenhum senão o de perplexidade diante de coisa tão primária quanto essas histórias banais, mal interpretadas, dirigidas e concebidas com a sensibilidade de um mastodonte. Três Histórias da Bahia vai no mesmo caminho: filme em episódios, dessa vez dirigidos por diferentes diretores (Edyala Iglesias, José Araripe Jr., Sérgio Machado), tendo como tema muito de fundo o carnaval baiano. Se em termos de cinema o filme não é muito melhor do que Histórias do Olhar, ao menos resta nele a visível vontade de filmar a cidade depois de mais de vinte anos sem um longa filmado na terra que deu Glauber Rocha. Nas tomadas da cidade percebe-se o frescor que o filme poderia ter, mas tudo isso fica estacionado a partir do momento que se decidem contar histórias tão primárias como o drama de um tradicional Rei Momo que fica de fora do Bloco por culpa da modernização e do mercantilismo do carnaval. Sim, haveria até um substrato interessante, mas nada disso aparece na tela. E As Três Marias, de Aluizio Abranches? O diretor já havia enganado bem com Um Copo de Cólera, onde uma enorme primeira seqüência transmitia agilidade, desprendimento e despudor até então ausentes no cinema brasileiro da época. Mas As Três Marias é de uma incompetência exponencial. Uma definição que daria conta do filme: tudo que Lavoura Arcaica tem de ruim e nada do que tem de bom. Planos de esteta que não sabe o que fazer com a câmera, pretensão de artista que quer fazer o difícil sem saber fazer o fácil, mas acima de tudo desnecessidade profunda em contar tudo que se vê diante da tela. Não fossem a beleza de Maria Luiza Mendonça e Luiza Mariani, seria insuportável assistir a essa história (?) de três filhas que, em virtude do acaso, acabam tendo que fazer justiça com as próprias mãos.

Da dificuldade de se filmar a História.
Se comparados ao resto dos filmes exibidos, Sonhos Tropicais e Netto Perde Sua Alma podem exibir um alto atestado de qualidade. Mas nenhum dos dois se sustenta artisticamente. Primeiro filme do distribuidor e produtor André Sturm, Sonhos Tropicais narra em paralelo a história pessoal de Esther, uma polaca que, sem o saber, é enviada ao Brasil para ser prostituta, e a história oficial de Oswaldo Cruz, um obstinado cientista que quer erradicar as doenças ligadas à falta de higiene na cidade. A história faz emergir o caldo cultural da época, mas não consegue fugir do simples anedótico, caricaturando seus personagens e mostrando uma incrível indisposição com o timing, assim como filmando coisas que dependeriam ao menos de mais 300% de esforço de produção (uma cena de batalha de populares contra o exército é particularmente ridícula). Netto Perde Sua Alma tem mais sorte, mas igualmente é incapaz de restituir uma época de forma convincente. Restam os dramas pessoais, que é onde o filme realmente ganha peso, no drama do protagonista, bem interpretado por Werner Schunemann, ferido num hospital para onde vão os soldados feridos em guerra. No mais, o filme não tem força de imagens, supondo que Tabajara Ruas deveria ter ficado na concepção do projeto, entregando a direção nas mãos de alguém que saiba contar uma história com imagens. Tem quem saiba. Na falta de real competidor, O Invasor de Beto Brant levou todos os prêmios que merecia.

Uma passada por Curitiba.
Semanas depois, um deslocamento para baixo, para o Sul. Viajo para representar a Contracampo no Encontro da Crítica Cinematográfica que acontece dentro do Festival de Curitiba. Oportunidade de conhecer mais um festival, com uma cara definida, evidentemente menor do que Recife (não há competição de longas) mas com um charme minoritário: premia curtas em película, em vídeo e em Dcine, denominação para filmes feitos em vídeo digital que não foram levados até a película. Como atração suplementar, a sessão "Filmes que a gente não vê, mas deveria", que se dedica a exibir filmes importantes da história do cinema brasileiro. Importante numa cidade onde é sempre difícil ver filmes desse tipo, esse ano foram exibidos Memórias do Cárcere, Vidas Secas, Os Cafajestes, Os Fuzis e Deus e o Diabo na Terra do Sol. Apesar da desorganização constante – filas desnecessárias, acesso às salas com filmes passando, atrasos constantes, catálogo apenas no último dia –, o público curitibano esteve presente em bom número, mesmo que fosse unicamente para prestigiar o longa que fechava a noite. Para variar, o filme que tomou todas as atenções e mereceu uma segunda sessão – única forma de não contrariar a multidão que esperava fora da sala – foi O Invasor, de Beto Brant.

Digressão sobre O Invasor, que se faz necessária.
Tanto em Curitiba como no Recife, o filme de Beto Brant atraiu todas as atenções, como não se via há muito tempo. O hype é justificado: como nenhum outro filme dos últimos anos, O Invasor junta um tema premente na sociedade brasileira, um apelo pop inegável, realização eficiente (quando não genial) e acima de tudo muita, mas muita força. Essa força provém, em grande parte, da estrutura narrativa do filme, que se utiliza de uma figura que é tanto social quanto romanesca: a disseminação. Anísio (interpretado de forma melhor impossível por Paulo Miklos) é um subalterno, uma presença indesejada num ambiente social tão sujo quanto o seu, onde a única diferença é a preservação da imagem. A história de O Invasor é a progressiva disseminação indesejada de Anísio dentro da construtora, dentro da economia sentimental dos amigos e sócios interpretados por Alexandre Borges e Marco Ricca, e depois como namorado de Mariana Ximenes, a filha do homem que matara dias antes. Se o filme bate tão forte, me parece ser porque ele consegue solucionar do ponto de vista da narrativa um problema que é social e político, o famoso "encontro dos contrários" cada vez mais comum no cinema brasileiro. O encontro do "andar de cima" com o "andar de baixo", para usar as expressões de Elio Gaspari, se dá dessa vez não pela destruição de um dos dois (Como Nascem os Anjos, O Primeiro Dia), mas pelo convívio obrigatório dado que os laços que os unem são muito maiores do que as diferenças que os separam. Essa dissonância, realçada à maravilha por gritos de um rock pesado que diz "A bomba vai explodir/ninguém vai te acudir", acontece nas entrelinhas, sem que se saia do filme achando-o explicitamente político ou militante. Sem dúvida que o filme é, um e outro, mas todo seu posicionamento vive dentro da dinâmica criada por Marçal Aquino no roteiro. Como em todo excelente filme, é através dos instrumentos mais imperceptíveis que os recados são mandados. Com O Invasor, Beto Brant sai do rol dos realizadores talentosos para o pequena e cobiçada lista dos cineastas, dos homens que pensam e vivem cinema.

E como vai a crítica?
A se julgar por tudo o que foi falado no encontro, ela vai mal. A se julgar pelos críticos que falaram, ela vai muito bem. Pois todo mundo reclamou da crítica, mas ninguém soube em algum momento confrontar posições, avivar polêmicas ou debater procedimentos. Com tantas concepções diferentes de como ser profissional de crítica cinematográfica – participaram do encontro desde Calso Sabadin até Ismail Xavier –, ficou a impressão ou que a classe é por demais corporativa (o que é todavia falso) ou que, pela raridade do evento, a cortesia contou mais do que o debate acirrado de idéias. Ao fim, parecia que a clássica frase debochando do cinema novo, "O filme é uma merda mas o diretor é genial", valia para o estado da rítica cinematográfica hoje: "As críticas são uma merda, mas os críticos são geniais". Em todo caso, só o trabalho e o esforço de juntar num encontro Jean-Claude Bernardet, Décio Pignatari, Inácio Araújo, Cléber Eduardo e Luiz Zanin Oricchio, entre muitos outros, já é digno de nota e de aplausos para a organizadora Maria do Rosário Caetano. E já que muita polêmica não houve – e nas mesas havia dissensões suficientes para que houvesse –, esperemos a edição de 2003 para que, sedimentado o terreno que reúne críticos e pesquisadores, as diversas visões do que seja a crítica de cinema possam ser pesadas e debatidas.

E os filmes em Curitiba?
Poucas chances de descoberta. A sessão de inéditos da cidade foi no primeiro dia de Festival, quando a maior parte dos convidados não havia ainda chegado. Entre os filmes selecionados, muitos filmes já vistos. Entre os ainda inéditos (ou simplesmente perdidos nas sessões anteriores de festivais), a se notar dois filmes interessantes: Des Fantastik Sucric, uma improvável animação que paga tributo à toda história do desenho animado, um filme quase naïf que destoa quase que completamente da produção atual, ou eminentemente humorística (Allan Sieber) ou simples amostra de técnica (Roda de Samba, também presente em Curitiba); e Chama Verequete, documentário um tanto quanto convencional, mas em todo caso apaixonado e importante por mostrar a obra de Verequete, mestre do carimbó, gênero musical típico do Pará. Além desses dois filmes, uma descoberta improvável num lugar improvável: às quatro da manhã, num vídeo projetado numa boate, passa o curta O Encontro, de Marcos Jorge, que ganharia os principais prêmios de Curitiba. Apesar do nível etílico já elevado e das condições de projeção (som abafado pela música ambiente, projeção em vídeo, dispersão habitual de uma casa noturna), um certo tom de surrealismo e um raro senso de timing ganharam os presentes (além de mim, dois dos agitadores da cooperativa Telephone Colorido, em Curitiba para defender Resgate Cultural – O FIlme, e responsáveis pelos mais animados debates de cinema brasileiro do festival, que tomavam todas as madrugadas do Tourist Hotel) e ultrapassaram de longe alguns dos possíveis ranços de filme de cinéfilo, o cacoete de os personagens só falarem em um idioma composto unicamente de nomes de cineastas (deu para ouvir "kiarostami" e "almodovar"). Esperamos, contudo, a chance de ver o filme em melhores condições. No fim, de volta a Recife: a festa de encerramento de Curitiba foi ao som do Mundo Livre S/A, que fez uma bela apresentação e, já que a festa era do cinema, tocou pela primeira vez em muito tempo "Compromisso de Morte", da trilha de Baile Perfumado. Todos os caminhos levam a Pernambuco?

Ruy Gardnier