4) Poética do cinema novo

Não se pode negar que uma visão de conjunto de uma obra artística qualquer, mesmo a que não disponha de finalidades essenciais, faz sempre extravazar, bem ou mal, uma poética distinta. Assim, se fora do cinema novo tomamos a fase das chanchadas (ou das comédias musicais), elas, na sua grosseira insuficiência artística, nos apresentarão sempre um universo específico como pano de fundo, e diversas peculiaridades, todas dependentes de ou imanentes a esse mesmo universo.

Indago-me que critério usar para abranger, com clareza, e, com brevidade, o problema. Uma divisão prática seria interessante no sentido de "visualizar" em detalhe essa poética ou esse universo específico em seus diversos setores. Digamos, adotando o método indutivo que, no cinema novo, as correntes principais são:

a) a tradicional, que evoluiu do antigo cinema industrial;
b) a híbrida que mantém pontos de contato com a anterior e com,
c) a moderna, originada no espírito jovem de jovens apaixonados pelo cinema, teóricos, estudiosos, cine-clubistas e, finalmente, autores de filmes.

Essas três correntes ou saídas do atual cinema brasileiro são absolutamente autênticas e cada uma comporta de per si uma característica própria que no entanto se liga com intimidade à sua congênere do outro grupo. Se poética e universo são a mesma coisa, não significarão, também, em última instância, estilo?

E o cinema novo prima justamente por uma unidade dentro da diversificação estilística. As causas desse fenômeno residem de modo especial na formação independente de cada realizador e na emulação inconsciente que existe no meio.

Na primeira corrente, fundam-se os princípios dessa poética. São, por assim dizer, os alicerces do universo cinematográfico brasileiro, a origem dos vetores que orientarão um determinismo cultural.

Para começar, Rio, Quarenta Graus, de Nelson Pereira dos Santos. Como transformar em palavras sua concepção?

Filme fragmentado em episódios que se interdependem entre si e se completam. Cada uma, célula de poesia, ora realista, ora de referência cinematográfica. Sublinhe-se e atente-se, no filme, a nostalgia relativamente à chanchada que ele tanto como produção quanto como realização parece querer condenar (v. g. o episódio do deputado nordestino, ridículo, grosseiro, destoante, verbalista, como se queria na festa primitiva). Defeituoso, maladroit, eis a chave-mestra para se classificar formalmente o. seu mundo e o que lhe seguirá. Esperar a perfeição, os ornatos, o rigor num filme brasileiro somente se se tivesse uma visão brasileira desses elementos. O Brasil e seu cinema para os brasileiros. Num determinado momento, a ousadia máxima para um filme de produção pobre e de conceitos pobres a respeito da produção: a grua improvisada que termina por trucagem numa maquete da visão-tipo do Rio: o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara. Nelson Pereira dos Santos, usando recursos de todo um Cinema que lhe antecedeu, traça as bases de uma nova escola: a da autenticidade.

Rio, Zona Norte confirma com mais secura a tese da unidade e da personalidade ou autoria. O compositor Espírito da Luz Soares é a "voz do povo" e sua vida a nossa vida. Eis o samba-na-caixa-de-fósforos, o despojamento, quase o cinema-verdade em 1957. Eis a coragem, a necessidade de utilização da inteligência, do amor ao cinema. Que tipo de universo é esse? A poesia do real, da crueza, do drama, da pobreza, da infelicidade. A poética do cinema novo, queiram ou não, é essa aparência, às vezes titubeante, ou a ilusão dessa aparência. Titubeante, na verdade, tem sido o espectador brasileiro que não se entrega facilmente, que reage, que perde a seiva de um mundo novo, em busca de contatos, de relações, de ressonância com uma concepção provinciana e alienada que traz consigo.

Depois de Rio, Quarenta Graus, Rio, Zona Norte veio Mandacaru Vermelho e Nelson Pereira dos Santos já entrava pelas outras correntes, formando, pensando, ruminando Vidas Secas.

Em outros planos, outros realizadores seguiram-lhe os passos: Glauber Rocha, Roberto Pires, Roberto Farias. Sobretudo Glauber. Os demais, assistiam, apreendiam, debatiam. preparavam-se.

Cinema é antes prosa do que verso, mas que melhor poeta do que Guimarães Rosa? devia pensar Glauber Rocha, digerindo o roteiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Que afinidade sutil entre o jovem baiano e o grande escritor. "...ele será tanto mais original quanto mais fundo baixar na pesquisa, trazendo como resultado um mundo e um homem diferentes, compostos de elementos que deformou a partir dos modelos reais, consciente ou inconscienteinente propostos". Falando da técnica criadora de Guimarães Rosa, Antônio Cândido não se refere também e com certa intimidade à elaboração de Deus e o Diabo na Terra do Sol, ou, mais particularmente, à técnica de Glauber Rocha? Antônio das Mortes, esse personagem fabuloso não seria, por exemplo, esse "homem diferente composto da deformação dos modelos reais?"1

Dessa poesia viril, faceta de um mundo, região, como uma região geográfica de um Brasil imenso, se pode passar a outras aparências.

Cinema é crônica, pensaria Roberto Farias, seguindo a prosa narrativa de Nelson Pereira dos Santos quanto à despreocupação com o veículo e renovando o estilo em certos detalhes, fiel, porém, ao processo da découpage e dos vrais raccords.

Cinema é tudo, pensava ainda Nelson, que começa a ser menos cronista do que cantador; dolente, rústico, singelo, despojado como Graciliano Ramos se revela, ele próprio, em S. Bernardo: "extraio dos acontecimentos algumas parcelas: o resto é bagaço". Como escritor, Nelson passa a ser evasivo, seco e intransigente.

Cinema é paixão, choraria Paulo Cézar Saraceni.

Cinema é "música", dirá, mais tarde, Sérgio Ricardo, completando a tempo: música popular. É ritmo e raciocínio, responderia Joaquim Pedro de Andrade. Cinema é intimidade, replicaria Carlos Diegues. À polêmica que não chega a ser está aí: porém todos concordam na aparente discordância.

Todas essas manifestações que transtornam nosso espírito, no fundo, existem da forma a mais brasileira possível, isto é, displicente, balbuciante, tímida ainda. E não vão ser as tais correntes que para facilitar inventei, que as separarão em compartimentos estanques. Assim, Nelson Pereira dos Santos influencia Glauber Rocha que influencia Carlos Diegues que se exercita. O universo de Nelson, seus conceitos dramáticos agem sobre Joaquim Pedro que também se estimula com a retórica de Glauber. Paulo Cézar acha que quase tudo vem de Rossellini, mas, por exemplo, toma Viaggio in Italia como um meio e nunca corno um fim. Pelo realizador italiano, o mundo de Paulo Cézar encontra o de Glauber Rocha e ambos se entrechocam, numa dialética criadora.

Eis aí resumida a poética do cinema novo. Falta, também, mencionar que os problemas técnicos que assaltam quase sempre a realizacão de um filme, agem de maneira a influir sobre a formacão desses mesmos mundos. Aos poucos, porém, a consciência vem chegando e universo pessoal e condiçoes materiais atingem uma fase quase familiar de concordância: são os casos de Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e o exemplo paulista de Noite Vazia.

Ao final, entretanto, tudo é válido e conta como aquilo que Louis Marcorelles diz ser "a feitura concomitante da história de um povo e de um cinema". O amor ao cinema chega ao extremo de se realizarem filmes com o conhecimento prévio de sua quase impossibilidade de recuperacão financeira no mercado interno do Brasil e já hoje em dia o mercado externo é visto com certa desconfianca.

O tempo favoreceu a abolição do supérfluo. De Boca de Ouro a Vidas Secas, por exemplo, que incrível aumento de objetividade narrativa. Os estímulos se filtram, o cinema novo busca a universalidade através da análise, da consciência acerca de meios e fins, da autoria. Realiza-se, enfim, pelo amor ao homem brasileiro e pela concentração em objetos realmente autênticos.

Finalmente, se me perguntassem, à queima-roupa quais as raízes e origens mais profundas do cinema novo, ou melhor, de sua poética, eu respondvria de forma conclusiva: 1) a auto-suficiência do brasileiro, fator perigoso que às vezes, como no caso presente, age de maneira positiva; 2) como causa material a influência direta, de um lado, da chanchada, o cinema industrial carioca decorrente da novela radiofônica; de outro lado, uma forma de aculturação brasileira mais elevada (escritores) e os curta-metragens Caminhos, Cruz na Praça, Domingo, Arraial do Cabo, O Poeta do Castelo e Couro de Gato; 3) a coragem, o amor do cinema como forma de expressão e, em sentido não pejorativo, a lei do menor esforço.

NOTAS

1 Cândido, Antônio, "Tese e Antitese", Cia. Editora Nacional, 1964.

2 Ramos, Graciliano, "São Bernardo", Editora Martins, 1964.