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Pai contra filho (e vice-versa)

Em mais de um dos
seus artigos, Glauber Rocha referiu-se ao Cinema Marginal como "bastardo"
ou "aborto" do Cinema Novo. Tanto um, quanto o outro, são
indubitavelmente filhos do pai, quer este os reconheça ou não.
E com direito a teste de DNA, herança, e tudo mais.
Mas, ao contrário
de um número crescente de críticos e pesquisadores, muitos
deles ilustríssimos, que realçam a identidade entre os dois
movimentos, vou preferir frisar os traços de divergência
entre o cinema do pai e do filho. Acredito assim estar melhor contribuindo
para o debate, com idéias mais próximas da radicalidade
compulsória da época em que esses filmes foram feitos. Tendo
vivido o final da minha adolescência exatamente na virada dos anos
60 para 70, estarei assim também sendo mais fiel a mim mesmo.
Uma das coisas que
primeiro me vem à cabeça a esse respeito são as influências
(cinematográficas, literárias, musicais, teatrais e mesmo
políticas) que originaram o movimento do Cinema Novo e sua dissidência
Marginal.
A linguagem cinemanovista
buscava construir um mundo novo, através da política, vindo
a reboque (mas não totalmente) a questão estética.
Foi portanto encontrar suas fontes principalmente em cineastas engajados
como Luchino Visconti, Luiz Buñuel e Akira Kurosawa – mestres incontestáveis
de uma escrita clara e direta que beira o classicismo. Outros diretores
foram importantes como inspiração de cineastas específicos
e semi-marginais ao movimento: Roberto Rosselini e seu humanismo católico
em Paulo César Saraceni; o cotidiano nonchalant de Truffaut
em David Neves. No que compete à literatura, música e artes
plásticas, a maioria estava bem próxima de Jorge Amado,
Graciliano Ramos, Villa-Lobos, Portinari, – da arte brasileira nacionalista
e regional que vicejou nos anos 40 e 50, destruindo toda a tradição
urbana e cosmopolita do Rio de Janeiro da República Velha: o intimismo
de Machado de Assis, o bovarismo de Lima Barreto, a ironia de João
do Rio, a sofisticação de Pixinguinha , etc e tal.
Seu projeto político
julgava-se marxista de esquerda. Digo julgava-se por ser também
nacionalista, portanto paradoxal, já que a esquerda autêntica
não pode nem deve ser nacionalista, mas internacionalista (aliás
seu hino era a Internacional, que se propunha a substituir todos os hinos
nacionais, fossem eles quais fossem). É portanto sintomática
a contradição existente nos seus cineastas mais claramente
politizados. Querendo sinceramente a democracia, foram procurá-la
em fontes anti-democráticas como o getulismo, o prestismo, o castrismo
e até mesmo o dirigismo stalinista. Como sabemos, por vezes os
extremos se tocam. Será por mero acaso que o filme mais importante
do movimento (Deus e o diabo na terra do sol ) deva seu nome ao
livro de um sociólogo da extrema direita nacionalista: Brasil,
terra do sol de Gustavo Barroso? Ou que o CN tenha se infiltrado
no final dos anos 70 no aparelho estatal da ditadura militar durante o
governo Geisel – o único dos nossos generais presidentes que tinha
um projeto coerente de administração nacional-popular (o
tal socialismo de direita)?
As origens dos diretores
do Ciclo Marginal são bem diferentes. Embora todos políticamente
progressistas, suas preocupações principais sempre foram
a subversão da linguagem cinematográfica, e um amor pelo
cinema que ultrapassou o ativismo político direto. Afinal surgiram
já durante os governos militares, ao contrário dos cinemanovistas,
formados no período democrático de Juscelino. Suas influências
mais óbvias me parecem ser o Jean-Luc Godard de Pierrot le fou,
A chinesa e Week-end; os neo-expressionistas americanos
do cinema B; e o deboche das chanchadas (daí o humor, ausente por
completo nos filmes do Cinema Novo anteriores a Macunaíma).
E a literatura de Oswald de Andrade, Jorge Mautner, José Agripino;
a arte conceitual de Hélio Oiticica; a música popular de
Mário Reis à Tropicália, passando por Jimi Hendrix;
o teatro de Zé Celso Martinez Correia (em alguns cineastas influência
ainda mais forte do que o próprio Glauber). Tinham também
entre si diferenças estéticas, fáceis de confirmar
se compararmos o cinema agitado e tonitroante de Sganzerla e Trevisan,
com os constantes silêncios da obra de Bressane e Candeias. Um dos
mistérios deste movimento é ter insistido no formato tradicional
(90 minutos), sem ousar (como seus primos de Nova York) filmes extra-longos
ou extra-curtos.
Se o Cinema Novo utilizou
a técnica da infiltração (almejando fundar uma indústria
e conseguindo criar uma distribuidora estatal), os Marginais partiram
para o confronto (fazendo filmes que ignoraram a censura e o mercado).
Se o primeiro vinculava-se ao movimento internacional do cinema de autor,
com sua poderosa caixa de som internacional (principalmente na imprensa
francesa e italiana), o segundo antecipou cronologicamente muitas das
"invenções" dos independentes americanos, mas
amargou uma terrível solidão e um isolacionismo que lhe
foi fatal.
Outra diferença
fundamental me parece ser o enfoque dado aos personagens. Se no Cinema
Novo eles tendem ao arquetipal, cada um representando a classe social
à qual pertence, os Marginais me parecem um pouco mais individualizados.
Se o Manuel de Deus e o diabo e o Fabiano de Vidas sêcas
"representam" o camponês nordestino, os assassinos de
O anjo nasceu ou os vagabundos de À margem são
apenas eles mesmos. Esta diferença me parece mais pertinente do
que as possíveis semelhanças técnicas entre esses
filmes (plano-sequência, câmera na mão, etc).
Isso se acentua nos
personagens femininos. Danuza Leão em Terra em transe, Isabella
em O desafio, Maria Lúcia Dahl em O bravo guerreiro
surgem como encarnações da burguesia decadente, tentando
(no sentido diabólico do têrmo) desviar o personagem masculino
da sua trilha idealista de "salvar a pátria". A Rosa
de Deus e o diabo, na cena final, cai no chão e não
chega à redenção do sertão virando mar, mas
seu marido Manuel sim. Que diferença para a Angela Carne e Osso
da Helena Ignez em A mulher de todos, ou a Wilza Carla em Os
monstros de Babaloo: tão dominadoras, tão antropofágicas
e tão perigosas! Ou mesmo para a emancipada e cosmopolita Odete
Lara de Câncer, única experiência marginal do
mais importante diretor cinemanovista! Vale a pena assinalar que não
houve mulheres cineastas em nenhum dos dois movimentos.
Nem tudo é
perfeito. Pelo ponto de vista de hoje, 2002, ambos deixam muito a desejar
no tratamento da minoria homossexual. Se no Cinema Novo esses personagens
inexistem, alguns filmes marginais pecam por apresentá-los de modo
caricatural e quase homofóbico.
Igualmente do ponto
de vista geográfico (ou se preferirem, geopolítico) encontramos
na origem dos diretores mais divergências do que semelhanças.
O Cinema Novo foi um fenômeno basicamente do Rio de Janeiro – além
dos cariocas da gema, incorporou nordestinos e mineiros emigrados. Um
dos seus pontos fracos foi exatamente não ter conseguido um ponto
de apoio sólido em São Paulo. O Cinema Marginal, por outro
lado, começou na Boca paulista e teve ramificações
descentralizadas no Rio, na Bahia e Minas Gerais.
Hoje, quando ambos
se dissolveram pela ação do tempo, quase todas essas dessemelhanças
que apontei acima, embora verdadeiríssimas, não tem muito
mais razão de ser enquanto ideologia. Pertencem, diluídas
e misturadas, à História do Cinema Brasileiro. Restaram
os filmes. E as influências, não mais as que receberam, mas
as que exerceram nos cineastas que vieram depois.
Mas mesmo aqui, os
resultados são intrigantes. A obsessão dos ex-cinemanovistas
em implantar uma indústria nacional os aproxima (quem diria!) da
Vera Cruz e da Atlântida – que tanto combateram 40 anos atrás.
Seus filhotes fazem o cinema de papai-mamãe, a conspiração
dos mauricinhos, o predomínio do bem-acabado sobre o conteúdo
contundente. Por outro lado, os ex-marginais (ainda e sempre marginalizados)
e seus poucos descendentes continuam fazendo (quando podem) um cinema
artesanal de invenção radical. Como o velho Cinema Novo,
ao qual desafiaram há quase meio século.
Nestas pinimbas de
pai contra filho (e vice-versa), é compreensível que estudiosos
e mesmo alguns cineastas do segundo movimento, com a perspectiva histórica
facilitada pelo tempo, assinalem possíveis semelhanças.
Agora, me parece unilateral que o filho (marginal) volte a aceitar o pai
(ex-novo), sem que a recíproca seja equivalente. E essa injustiça,
enquanto não for corrigida, só fortalecerá a desunião,
jamais a convergência.
João Carlos
Rodrigues
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