O Último Dia de Lampião, de Maurice Capovilla

Brasil, 1972


As primeiras imagens são a de um riacho seco onde corpos se estendem e um repente lamentoso narra a história de Lampião. Ficamos alguns minutos sobrevoando aquelas pedras e os vestígios, e só então os créditos nos explicam o que se vê.

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Um dos episódios originais da série Globo Shell Especial, O último dia de Lampião não é exatamente um documentário. Nem mesmo um documentário de reconstituições...

Pois se há narração off (e na voz de Sérgio Chapellin), ela não funciona como um discurso meramente interpretativo. Como mais um elemento da dramaturgia, o off de Chapellin é usado por Capovilla como uma espécie de narrador onisciente que narra o filme no presente ocorrido, dando nomes e criando suspense nos momentos necessários. "Essa aí é Maria Bonita...ela vai morrer hoje."

Com atuações de atores e não-atores e o som direto das falas, O último dia é na verdade um filme de ficção histórica, narrada por um olhar de câmera que tudo vê e tudo descobre. Uma ficção costurada por pequenos depoimentos que quebram a diegése do filme, dando saltos no tempo, ou concluindo situações. O principal aspecto é o de que a voz de Chapellin em nenhum momento interpreta os acontecimentos, são as vozes dos sobreviventes do cerco que dão a cadência à narrativa.

E a participação ativa de várias figuras que estiveram no acontecimento original: como a cangaceira Cila (responsável pelo figurino dos cangaceiros originais e do filme), ou o primo do chefe de volante (que desempenha o seu papel...), torna O último dia uma obra seminal da experimentação no documentário brasileiro (com ecos em clássicos como Cabra Marcado para Morrer).

Fantasia e realidade se confundem, numa verdadeira revigoração do tempo, em que somos transportados para dentro do mito: a morte de Lampião projetada em nossos olhos.

Com todos os perigos de seu caráter falseado, o filme de Capovilla acerta ao fazer de tudo uma espécie de mito representado, num teatro de atores mambembes, como no repente que abre o filme contando a trama, lamentando a morte de lampião.

Experiência nova e frutífera, infelizmente silenciada pelos bons nomes da objetividade e dos bons modos na TV:

"Essa linguagem não foi mais admitida no formato da TV, diziam: 'Esses caras estão fazendo poesia na televisão'. Ficaram com medo de nós, porque entrávamos no horário nobre." (Maurice Capovilla)

Felipe Bragança