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Fulaninha, de David Neves

Brasil, 1985

Mariana de Moraes em Fulaninha de David Neves
Qualquer
um que ande por Copacabana, especificamente pelos recantos da Prado Júnior,
dificilmente deixará de sentir por um filme como Fulaninha
uma imensa simpatia. Este sexto longa-metragem de David Neves, rodado
em 1984, e que faz parte da trilogia sobre a zona sul carioca (os outros
dois são Muito Prazer e Jardim de Alah), é um desses casos raros nos quais a experiência íntima
do cinema se funde à da própria realidade exterior. Andar pela Prado Júnior
é como estar diante de um plano de Fulaninha,
e vice-versa.
A David Neves não faltava conhecimento
de causa: morador da Viveiros de Castro, rua que cruza a Prado Júnior,
David mantinha com este pedaço de Copa estreitíssima ligação. Os botecos,
as bancas de jornais das esquinas, os orelhões, os prédios, as árvores,
as boates, o jóquei eletrônico, toda a fauna (diurna e noturna) típica
do Posto 1 surgem em Fulaninha como personagens. E realmente
são. Assim como o próprio David era um personagem conhecidíssimo pelos
que viviam pelas ruas, nos pés-sujos como o Santo Expedito, que fica espremido
ali ao lado do (hoje fechado) Cinema 1. David mantinha com a mitologia copacabanense íntimo diálogo afetivo - no que era correspondido.
Assim como a geografia de Fulaninha vai da praia à Prado Júnior,
isto é, limita-se a uns dois ou três quarteirões, também o filme não almeja
grandes vôos. Ele parece querer falar disso mesmo, desses quarteirões,
desses botecos de esquina, dos inferninhos, desse vai e vem de pessoas
que se conhecem sem nunca terem trocado um cumprimento. Por isso, tão
(ou mais) importantes do que o próprio enredo, com seu começo-meio-e-fim
descaradamente novelesco, são os balcões envidraçados dos botequins onde
as cenas são filmadas; é o uniforme azul dos porteiros e dos garçons;
são os ônibus que passam pela rua; são os corredores beges internos dos
prédios; são as janelas que dão para a rua; são os letreiros dos bares
freqüentados pelo grupo de amigos de Bruno (Cláudio Marzo), o cineasta
que quer finalizar o seu roteiro e segue apaixonadamente pelas ruas, com
sua câmera de vídeo, a ninfeta e musa inspiradora Fulana de Tal (Mariana
de Moraes).
Mas Bruno e a Fulaninha não são os únicos
personagens interessantes: é principalmente através da curriola que cerca
o cineasta que o bairro de Copacabana surge em seu espírito total. Canela (Roberto Bonfim) é um produtor picareta de
vídeos pornôs, e mantém um estudiozinho num dos prédios da Prado Júnior,
no que é ajudado por Sulamita (Zaira Zambelli). Jardel (José de Abreu)
é um gigolô atormentado pelos problemas sexuais de sua mulher endinheirada,
e intermedia um contato com um possível financiador paulista para o filme
de Bruno. Hermínio (Flávio São Thiago), um advogado que vive constantemente
bêbado, espera angustiado o resultado da sentença judicial que poderá
fazê-lo perder sua herança para um primo. O que tortura Hermínio é que
isso o obrigará a voltar a trabalhar.
Esses quatro amigos juntam-se sempre no
bar do Camarão, e, nesses encontros casuais, entre um compromisso e outro,
entre o primeiro turno de birita e o segundo, as conversas são postas
em dia, as mentiras são contadas, as desculpas pelas brigas e bebedeiras
são aceitas ou não e as cobranças pessoais são feitas em meio a doses
duplas de uísque e chopinhos com bolinho de bacalhau (é bom que se diga
que, juntamente com Aventuras Amorosas de Um Padeiro, de Waldir
Onofre, Fulaninha é um dos filmes
que mais souberam retratar os botecos cariocas). Como nem é preciso dizer,
o assunto principal é a tal Fulaninha, que a princípio aparece apenas
para Bruno.
Fulaninha é filme a que
se assiste com prazer sempre redobrado, não só por este caráter coloquial
- que imprime o tom dos (ótimos) diálogos e das imagens -, mas também
por oferecer ao espectador uma crônica bem-humorada em tudo diversa das
que hoje o cinema brasileiro tem feito. De fato, Fulaninha
parece lembrar - com uma comédia leve! - que a realidade da zona sul carioca
não é feita apenas de cartões-postais, de personagens limpinhos que não
falam palavrão, de garotões e garotinhas assépticos, de ruas sem lixo,
sem engarrafamento, sem fumaça e sem botecos. Fulaninha
não tem vergonha de filmar, com olhar generoso e afetivo, nossa cotidiana
escrotidão. E, auto-reflexivo, não livra nem o próprio cinema: Bruno é
quase um desocupado, não tem qualquer aura de moderno e, perguntado por
Rose (Kátia D’Angelo) se esse negócio de fazer filmes dá pé no Brasil,
responde: “É, eu sou Bruno... mas não sou Barreto. A gente vai levando”.
Essa falta de cerimônia faz com que seja
um deleite para os olhos e os ouvidos acompanhar o dia-a-dia deste grupo
de copacabanenses típicos que, mesmo às voltas com a trama policial paralela
(que envolve a morte de um morador do prédio em que Canela trabalha e
a prisão de um moambeiro e traficante), não consegue se dissociar de seus
problemas pessoais, como sempre elevados ao grau máximo de importância.
A seqüência em que Canela, enciumado com
Sulamita, a agride e explode com seus amigos, é certamente o ponto culminante
desta dramaturgia coloquial. Os atores, afinadíssimos, sustentam a atuação
genial de Roberto Bonfim, que xinga um por um, atingindo-os nos pontos
fracos. Neste trecho o filme ganha definitivamente o espectador: impossível
não se identificar com cada um dos personagens e principalmente com Canela.
Esta cena - e o day after ressaqueado
no bar do Camarão, em que Canela se desculpa pelo escândalo - são momentos
luminosos de um cinema que não se envergonha em andar de chinelo.
Um filme como Fulaninha, que em sua época já estava em extinção, hoje é quase um
artigo inexistente. Salvo em curtas-metragens, é cada vez mais difícil
sentir nos filmes atuais o contato com as ruas. Pudera: o cinema brasileiro
não consegue sair de sua redoma de ar-condicionado e vidro fumê. Fulaninha, ao contrário, é um filme espontâneo
e essa espontaneidade é sua maior riqueza. Assisti-lo será sempre um convite
a um passeio pelas ruas. Como não louvá-lo por essas qualidades?
Luís
Alberto Rocha Melo
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