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Flamengo Paixão, de David
Neves

Herói: o gol decisivo
de Nunes sobre o Atlético
A trilha
sonora mais indicada para a leitura deste artigo é a gravação
do Hino do Flamengo, de Lamartine Babo, feita por Jorge Ben na década
de setenta. Infelizmente ainda não relançada oficialmente
em CD, pode ser encontrada apenas no velho disco em que foi lançada
- ou então em versões piratas em CD ou na internet. É
uma gravação muito bonita, antológica, feita por
Ben na sua melhor fase, com aquele violão numa levada que é
suíngue puro.
***
David Neves era vascaíno.
Flamengo Paixão foi um projeto pensado e produzido por Joaquim
Vaz de Carvalho e Carlos Moletta, para ser feito com rapidez antes da
produção de Luz del Fuego.
Documentários com futebol, mal ou bem, têm um razoável
público em potencial, ainda mais que o Flamengo estava prestes
a ser, talvez, tri-campeão carioca, pela terceira vez em sua história
- e, além disso, tematizar o clube mais popular do país
é, mais do que óbvio, vital. Eles são Flamengo, oras!
E como não ser?
Aí aconteceu o seguinte: quando o filme estava sendo feito, o time
começou a emplacar na Taça de Ouro - era como se chamava
o campeonato brasileiro na época. O filme estava sendo feito com
produção independente, pouco dinheiro, mas os produtores
resolveram arriscar - foram à Embrafilme e ganharam uma promessa
de verba que lhes garantiria continuar as filmagens (promessa que acabou
não sendo cumprida), tomaram empréstimos, conseguiram apoios
e foram filmando. Torcendo para sair logo uma grana para desafogar o pescoço
e torcendo sobretudo para o time ser campeão - isso seria a melhor
garantia de uma boa bilheteria. E, de quebra, eles seriam campeões.
***
O título parece
ter se originado na mais simples sessão de pingue-pongue. Aquela
situação em que um analista ou entrevistador cita palavras
para que o entrevistado associe a outros conceitos.
Flamengo? Paixão.
De novo: Paixão? Flamengo.
Flamengo Paixão. Paixão. O que é o Flamengo? Paixão.
Exemplifique Paixão: Flamengo. Conceitos gêmeos.
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Documentários tratando de assuntos de futebol, que existem no cinema
brasileiro desde os cinejornais que registravam partidas diversas, se
tornaram algo comum e natural na época pós-cinema novo,
desde que Joaquim Pedro fizera Garrincha, Alegria do Povo (onde, como
se disse, não era Garrincha que trazia alegria ao povo, era na
verdade a alegria trazida pelo povo que lhe permitia jogar como jogava).
Nada mais natural então que David Neves fizesse um filme que ligasse
observações do cotidiano dos torcedores com mostras do fascínio
que provocava aquela paixão imensa, incompreensível.
O filme não se furta, portanto, a mostrar desde cenas pitorescas
como jovens torcedores vestindo a camisa do time, outros entrando no Maracanã,
alguns declamando amor eterno (como faz Jards Macalé antes dos
letreiros), ou mesmo um casal que sai de baixo do bandeirão que
os escondia, no gramado de um parque - nem se nega a mostrar cenas e mais
cenas de jogos e gols, às vezes em registros inéditos, às
vezes em imagens cedidas por canais de televisão. O filme faz questão
de homenagear os grandes ídolos do passado, já esquecidos
por novas gerações, mas não se nega a mostrar até
com certo suspense as imagens do jogo decisivo. Ao final, todas essas
idéias e estes sentimentos parecem se juntar nas imagens finais
de torcedores que pagam promessas se arrastando em torno do gramado do
Maracanã. Pagando promessas por ter visto o time ser campeão
brasileiro.
O dinheiro da Embrafilme não saiu, mas mesmo assim foi possível
filmar tudo que tinha que filmar. E o Mengo foi campeão.
E o filme termina por documentar uma geração que acabaria
sendo tri-campeã brasileira e campeã mundial, em Tóquio.
***
O filme é como
o time da época: joga por música. Tem Pixinguinha tocando
o "Urubu Malandro", tem Wilson Simonal (numa época em
que isso não era considerado fashion), tem um belo tema original
do produtor Moletta, tem Moreira da Silva, tem João Nogueira, tem
Jacob tocando o choro "Flamengo", tem, é claro, o Hino
do Flamengo, de Lamartine Babo. Não é a gravação
de Jorge Ben, é pena. É a gravação oficial,
clássica, cantada por coro.
Confesso que tenho problemas com o Hino do Flamengo. Não gosto
da letra, não gosto nem um pouco. Que história é
essa de citar adversário no hino ("Nos Fla-Flus é um
ai, Jesus...") ? O Flamengo é grande o bastante para não
se preocupar com adversários em seu hino. Mais que isso, como se
pode querer imaginar o peso do Flamengo ("Ele é fibra, muita
libra/ Já pesou?") ? Que mente delirante pode criar tal letra?
E como assim "Eu teria um desgosto profundo/ Se faltasse o Flamengo
no mundo" ? Será que o sujeito que escreveu esse hino realmente
podia conceber o mundo sem o Flamengo? Eu não consigo, nem creio
que alguém que o cante consiga. "Flamengo até morrer"?
Como assim, meu amigo, que delírio é esse? A morte não
livra ninguém de seus deveres clubísticos! Não fosse
assim, por que colocar a bandeira do clube em cima dos caixões,
em funerais? Ora, meu chapa, o sujeito morre e continua Flamengo...
Enfim, não quero sair insultando a memória de Lamartine.
No estádio, no meio de todos, acho mais do que certo que se cante
o hino a plenos pulmões. Mas não vou esconder os fatos -
Lamartine, que não gostava de futebol e, na dúvida, torcia
para o América (alguém precisa de prova maior de que ele
realmente não gostava de futebol?), fez hinos musicalmente fantásticos
- embora às vezes adequados para canções de exaltação,
como no caso do hino intimista do Fluminense, às vezes tão
aparentados com as marchinhas de carnaval que, em caso de serem cantados
em momentos em que o time precisa de apoio (como quando precisa reagir
depois de levar um gol), criarão uma situação de
ridículo incomum - como é o caso do Hino do América,
com seus lá-laiá-lá-laiá.
Musicalmente, o Hino do Flamengo é fabuloso, talvez seja o melhor
que eu conheça, com aquela introdução magnífica,
com aquele tema absolutamente vibrante, vitorioso. Mas a letra é
de um sujeito acuado por torcedores (esse tipo de coisa acontece), não
a de um apaixonado pelo time.
Mas a gravação do Jorge supera tudo. Pelo suíngue,
pela emoção. Pela sinceridade presente quando o cantor diz
"Sempre Flamengo eu hei de ser/ Pois é o meu maior prazer
/ Vê-lo brilhar / Seja na terra / Seja no mar...", esticando
e suingando em cada vogal pronunciada.
***
Rever o filme para
escrever sobre ele é um perigo! Porque, enquanto eu penso num assunto
a se comentar, como aconteceu com a letra do Hino, de repente o filme,
ao fazer o panorama de todos os grandes jogadores que vestiram o manto
sagrado, começa a mostrar os (poucos) grandes craques que nunca
o fizeram. Aparece então o depoimento de Nílton Santos,
que conta do amistoso que fez jogando com a Camisa, e em seguida vemos
fotos de Pelé o fazendo, na ocasião famosa. Mas - aí
sim nossa atenção não tem como não se prender
- logo o filme trata de relembrar os grandes nomes da história
do time. Desde Moderato, passando pelo mitológico Friedenreich,
que jogou por um breve período no clube, pelo maior zagueiro da
história do país, Domingos da Guia, por gente como Pirilo,
Perácio, Dida, Vevé, pelo herói do primeiro tri Valido
(cuja história é das mais incríveis) e pelos dois
maiores jogadores do Brasil até a era Pelé, Leônidas
da Silva (até hoje o brasileiro que fez mais gols em uma só
Copa do Mundo) e Zizinho. Quem viu Leônidas ou Zizinho jogarem sempre
afirmou que não ficariam em nada a dever ao Rei - pode ser, a memória
do futebol vive de mitos, e o próprio Pelé sempre afirmou
que o melhor jogador que já viu foi Zizinho, já em fim de
carreira no São Paulo.
É então que o filme, enumerando os heróis do clube,
chega ao ponto em que pretendia chegar : ao Rei Rubro-Negro, que, naquela
época, estava ainda se firmando nacionalmente. Ao apresentar seu
personagem, o filme não escapa da observação sociológica
simplista. Nas palavras do narrador: "E amanhã, como uma deusa
mitológica, esta ilusão se renova em outros nomes, para
satisfazer a fantasia dos seus súditos". Vemos então
as imagens do Galinho de Quintino, e logo depois alguns dos seus muitos
gols. Como não parar para ver e rever?
***
Feito por apaixonados
pela história do Flamengo, o filme faz questão ainda de
lembrar dos ídolos que morreram ainda jovens, como o zagueiro Reyes,
como o presidente Gilberto Cardoso, como o polêmico Almir Pernambuquinho.
Vemos fotos do célebre gol de Almir na final da Taça Guanabara
de 1966, em que, num dia chuvoso, num ataque do Flamengo, o goleiro deixou
passar uma bola cruzada e Almir, que tinha mergulhado para cabecear, viu
ela ir parando vagarosamente na lama. Não teve dúvidas e
foi se arrastando, com a cara na lama, até empurrar a pelota para
dentro das redes.
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Depois de mostrar
as imagens dos jogos do tri-campeonato (o terceiro) e a festa se espalhando
pela cidade, o filme não esconde, ao contrário, exibe ao
espectador uma cartela para explicar que naquele ponto acabaria o filme,
mas aí entrou a realidade no jogo e "veio a Taça de
Ouro"...
Aí, imagens de televisão de gols e mais gols antológicos.
Dribles geniais de Júnior e Adílio, lançamentos incríveis
de Carpeggiani, chutes certeiros de Nunes. E Zico, fazendo tudo isso e
muito mais.
E alguns gols e jogadas incríveis de jogadores que caíram
no esquecimento. O gol mais bonito do filme é de Anselmo, o mesmo
que, meses mais tarde, entraria quase no fim do jogo decisivo da Libertadores
para dar uma cacetada em Mario Soto, jogador do Cobreloa, para descontar
as pancadas de três jogos seguidos. O gol do Anselmo é depois
de um lançamento que ele recebe na corrida. No que recebe, já
dá um drible da vaca no goleiro. Depois, chuta milionésimos
antes da chegada do zagueiro, para encobrir o outro que chegava correndo
ao gol. Bonito mesmo.
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Na final, o filme
já não tinha dinheiro nenhum, só dívidas.
Vice-campeão não vai ao cinema rever o time: era tudo ou
nada. No primeiro tempo, Nunes, "o tanque da Gávea",
mandou um petardo que o hoje deputado João Leite nem teria como
segurar: Mengo um a zero. Logo depois, o empate - o Atlético Mineiro
seria campeão se arrancasse o empate no Maracanã. No final
do primeiro tempo, depois de alguma confusão na entrada da área,
Zico teve que se atirar na grama para dar força ao chute na bola
que, no repique, estava em péssima posição para o
arremate - acertou no ângulo! Com dois a um, o campeonato seria
do Mengo. Mas aí, no início do segundo tempo, Reinaldo,
que estava contundido e jogou mancando, fez o segundo do Atlético.
Para deixar de ser besta, foi expulso do jogo - saiu fazendo o cumprimento
dos Panteras Negras, com o punho para o alto. (não foi o primeiro
a fazer um gol mancando no Maracanã - Dida já fizera um,
décadas antes). De todo jeito, dois a dois era do Atlético.
E assim se passou o segundo tempo, debaixo de muita pressão do
Mengo e de muita angústia para a torcida. Se todos os rubro-negros
estavam aflitos, se até David Neves, que era vascaíno, torcia
por um gol rubro-negro, imagine-se como não estavam Joaquim Vaz
e Carlos Moletta...
Aos trinta e oito, trinta e nove do segundo tempo, Nunes recebeu uma bola
na esquerda da área e partiu, marcado pelo zagueiro. Parou, encarou
o marcador, fez que ia partir para a ponta, que não ia partir para
a ponta, partiu. O zagueiro ficou. Meio sem ângulo, o jogador que
seria conhecido como o artilheiro das decisões mandou o pontapé.
Pobre João Leite. Cinco minutos depois, "fim de papo",
como diz o letreiro do Maraca, Mengo campeão brasileiro de 1980.
Alegria imensurável de muitos. De quantas pessoas o Flamengo não
influencia decisivamente, todos os dias, para o bem e para o mal, o humor,
a vida? Nação, força da natureza, seja o que for,
merece respeito. É grande.
***
Na comemoração,
João Nogueira canta "Flamengo joga amanhã/ eu vou para
lá / Vai haver mais um baile / No Maracanã // O mais querido
/ tem Zico, Adílio e Adão/ Eu já rezei pra São
Jorge/ Pro Mengo ser campeão...". A canção é
de Wilson Batista, se chama Samba Rubro-Negro, e originalmente citava
os jogadores Rubens, Dequinha e Pavão.
***
Certo, a situação
atual. Parece piada de meus editores vascaínos (como David Neves)
propor esta pauta agora, quando falar do time significa ter que falar
do momento degradante em que anos de administrações incompetentes
e mal-intencionadas parecem levar o clube para o abismo.
Sim, a pequenez de certos personagens, em tudo contrastante com a história
rubro-negra, parece esconder, estragar, apagar, denegrir tudo que o clube
representa. Mas a vida é rio que corre, e neste fluxo tudo pode
mudar. O Mengo já teve um presidente mau-caráter que vendeu
Zizinho em troca de favores no credenciamento de pontos de venda da loteria
federal, assim como todos os clubes brasileiros ainda estão recheados
de picaretas e safados, que convivem com uns poucos idealistas e apaixonados
- acontecendo mesmo o triste caso de idealistas que acabam se transformando
em picaretas e arrivistas.
Mas há algo maior, e nós sabemos disso. Nós somos
isso. É a torcida que faz o Flamengo grande, como se pôde
ver num dos cada vez mais raros momentos de glória recentes, o
do quarto tri-campeonato estadual, vencido com um gol de falta antológico
de Petkovic que coroou uma vitória magnífica de três
a um sobre o rival Vasco. Neste dia, como nos anos anteriores, percebeu-se
que, mesmo por causa de um campeonato desprestigiado como o Carioca, o
Rio se torna mais alegre quando veste rubro-negro. Isto não tardará
a acontecer novamente. O Flamengo pode parecer estar sendo apequenado
- mas, não se enganem, ele é eterno.
***
Para escrever este
texto, foi fundamental não apenas a revisão do documentário
como também a releitura de um livro-irmão. Se chama Flamengo,
Uma Emoção Inesquecível e foi editado pela Relume-Dumará
em 1995, com criação e organização de Joaquim
Vaz de Carvalho. Ter o mesmo nome que produziu o filme, com o mesmo propósito
de documentar - através de depoimentos de torcedores, de 'sofredores'
(os torcedores de outros times) e de heróis (os jogadores) - as
emoções que traz o Flamengo, já seria motivo para
perceber a proximidade dos dois projetos. Mas é no depoimento escrito
pelo outro produtor, Carlos Moletta, que a ligação se torna
fundamental, pois seu texto, também intitulado Flamengo Paixão,
relata justamente a história da complicada feitura do filme.
***
Vale lembrar a beleza
do último plano do filme, em que o câmera do filme invade
o campo para filmar a comemoração de Nunes e dos demais
jogadores depois do gol decisivo.
***
É preciso dedicar
este texto e os leitores sabem a quem. O filme é dedicado a todos
que aparecem na tela, principalmente O Torcedor. Entretanto, este texto
foi escrito por um sujeito que sempre foi torcedor - e a repetição
do gesto, então, seria imprópria. Mas estas mal-traçadas
devem ser dedicadas aos heróis do garoto que viu o auge dessa geração
documentada no filme. Foi tradição familiar, mas também
foram eles que fizeram do menino Flamengo. Então, mesmo que nenhuma
palavra dê conta de tal gratidão, é preciso lembrar
de nomes como os de Leandro, Raul, Júnior, Cláudio Adão,
Adílio, Nunes, Mozer, Tita, Andrade, Júlio César.
E o Zico.
São heróis. Abençoados sejam.
Daniel Caetano
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