Do sertão ao beco da
Lapa, de Maurice Capovilla

Brasil,
1972
Um
trio de ensaios poéticos realizados para o pioneiro programa Globo
Shell Especial, Do Sertão ao Beco da Lapa traça de forma
poetizada a trajetória da formação de três
escritores brasileiros. O universo mítico de Guimarães Rosa,
Manuel Bandeira e Oswald de Andrade é colhido sob a forma de imagens,
traduzido em forma de miragens: cidades, rostos e vozes...
No primeiro, e mais
marcante episódio, nos colocamos diante da vastidão. É
nela, nesse olhar sempre ao longe e na voz acanhada de seus personagens,
que Guimarães Rosa parece ter se esmiuçado: descobrindo
naquela exterioridade, as expressividades únicas de seu modo de
escrever, de dizer.
Capovilla conta que
a idéia do filme teria surgido de uma curiosa carta escrita por
Rosa para um amigo: de um lado a seguinte frase - "Aqui vai o mapa
de minhas origens" - do outro lado, um confuso grupo de rabiscos
e nomes de fazendas, de cidades que não poderiam estar dispostos
daquela forma na realidade...um mapa imaginário. "Isso dá
um filme!" - pensou o cineasta.
Em seus 20 minutos
de duração, nos colocamos diante de um painel lendário
e multidirecionado, de figuras míticas e eternas como o vaqueiro
Manelão: "Vou contar uma história para vocês..."
É na presentificação
desses mitos do imaginário literário de Rosa, que as imagens
de Capovilla encontram sua maior força expressiva e as palavras
da narração off (de Lima Duarte) ganham vida. Aos poucos
é Rosa quem vai se tornando mito diante dos causos de seus personagens
agora presentificados em realidade: "Ele perguntava tudo, queria
saber de tudo...sempre com um caderninho pendurado no pescoço,
queria saber a diferença e o nome de cada pássaro, de cada
planta..."
Obra-prima? Nem tanto.
Em certas passagens, o ranço reducionista torna-se inevitável.
Na narração e nas entrevistas, temos a recorrência
de um discurso descritivo simplificador que ameaça o encantamento
do filme:
O modo como a Voz
tenta traduzir aquelas imagens em reflexos de uma suposta "psicologia
do homem rural" coloca em risco todo o mérito mítico.
A fórmula de vícios cientificistas e socialmente interpretativos
da realidade, é talvez a única incoerência dessa experiência
televisiva pioneira.
Na tentativa de trazer
para a tela da TV um olhar positivamente criativo sobre as palavras de
Rosa, Capovilla derrapa mas não chega a capotar. Uma bela experiência
de imagens, frutífera em suas simplicidades e sutilezas; estéril
em suas tentativas de resumir o que se vê.
* *
*
Nos dois episódios que se seguem, as forças urbanas de Oswald
de Andrade e Manuel Bandeira são experimentalmente traduzidas em
forma de frenesi e flutuação. Um costurar de imagens interligadas
vai traçando as trajetórias de vida dos dois escritores
por seus diferentes cenários de inspiração: São
Paulo, Recife, Rio de Janeiro.
Repetindo por vezes
os cacoetes visuais do cinema-de-poesia, esses episódios não
alcançam o apuro visual do episódio roseano, mas, curiosamente,
trazem uma solução precisa para o problema recorrente do
off diretivo:
Os atores, Pereio
e Mario Lago, interpretam (não apenas lêem) a narração
de textos dos próprios escritores sobre aqueles espaços.
A poesia pessoal de Bandeira (e sua Rua da União) e o frenesi-metrópole
de Oswald criam, cada um diante de seu espaço físico, um
caráter de autoria que desmistifica o papel reducionista do off
jornalístico. Falam na primeira pessoa, construindo as personas
dos escritores e fazendo dos mesmos, os personagens de suas próprias
memórias.
Caem em certos exageros
declamativos? Certamente. Sofrem de alguns cacoetes do "cinema poético"?
Sem dúvida. Mas nada que comprometa o curioso pioneirismo desse
trio de raridades da TV aberta brasileira.
Felipe Bragança
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