INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1 Introdução ao Cinema Novo

CAPÍTULO 2 Da Chanchada ao Cinema Novo

CAPÍTULO 3 Um Obstáculo a Transpor: o Público

CAPÍTULO 4 Poética do Cinema Novo

CAPÍTULO 5 À Margem do Cinema Novo

CAPÍTULO 6 Quem Faz o Cinema Novo?

CAPÍTULO 7 Diálogo do Cinema Novo

APÊNDICE

De algum tempo para cá mudou muito o cinema brasileiro. Tanto a estrutura formal, como o conteúdo dos filmes mais recentes expressam transformações qualitativas que são, ao mesmo tempo, rompnnento com a antiga prática oportunista e improvisada das "chanchadas" e procura de novos métodos, tentativa de instauração de formas autênticas de arte cinematográfica. O mesmo movimento de renovação que começa a se introduzir em todos os planos de nossa vida cultural verifica-se também nas produções do cinema. Como na literatura, na poesia, no teatro ou na música, este estado de espírito se instaura em realidade, com traços ainda desordenados e difusos. Como naquelas formas dc expressão artística, o cinema novo é, sobretudo, um movimento de jovens.

Este livro, o primeiro de uma coleção dirigida especialmente à juventude, é uma expressão imensamente saudável da seriedade com que as novas gerações vivem o nosso tempo. Seu autor, David Eulálio Neves, tem sido um dos elementos mais dinâmicos do movimento renovador do cinema brasileiro. Iniciou-se no cinema em 1959 como responsável pela coluna de crítica do jornal estudantil "O Metropolitano", onde permaneceu até 1962. Participou da filmagem de "Couro de Gato" (assistente de fotografia), "Garrincha, alegria do povo" (câmera) e também do documentário "A nave de S. Bento", do qual foi o montador. Em 1964, fez crítica no "Diário Carioca" e foi encarregado do setor de filmes documentarios do Patrimônio Histórico Nacional. Nessa função, produziu os documentários "Integração Racial", no qual participou como fotógrafo, "O Circo" e "Memória do Cangaço". Como representante do Brasil, esteve presente às IV e V Resenhas do Cinema Latino-americano, realizadas pelo Columbianum, entidade cultural genovesa. Atualmente trabalhando no setor de Cinema da Divisão de Difusão Cultural do Itamarati. Membro da Comissão de auxílio à Indústria Cinematográfica, órgão oficial do Estado da Guanabara. David E. Neves nasceu no Rio de Janeiro, a 14 de maio de 1938.

O livro não pretende a interpretação ou a análise do fenômeno cinema novo. O autor não o quis assim, consciente dos riscos que se correm quando se tenta "fustigar a onça com vara curta". Com efeito, o cinema nôo é muito recente e não mostra ainda sinais que permitam mais ampla caracterização. É um movimento ainda em gestaçao e se nega ao enquadramento em quaisquer esquemas. Subtraindo-se ao dogmatismo, o cinema novo se coloca em xeque e estimula o debate, antes mesmo de definidos seus contornos. É exatamente isso o que este livro procura retratar. E aí está seu grande mérito.

a Humberto Mauro e Eduardo Escorel

O presente livreto foi compilado a partir de dados, artigos, informações e entrevistas colhidas pelo autor, desde 1961. A parte biográfica foi enriquecida de informacões encontradas no nº 35 da extinta Revista de Cultura Cinemnatográfica, de Belo Horizonte. O capítulo Poética do Cinema Novo constitui-se numa forma revisada do trabalho apresentado, em Gênova (janeiro de 1965), na V Resenha do Cinema Latino-americano. A parte dedicada às citações (Diálogo do Cinema Novo) não pretende representar estritamente o pensamento atual dos seus responsáveis, mas apresentará, no conjunto, o sentimento solidário que animava e ainda hoje anima o grupo.

I) INTRODUCÃO AO CINEMA NOVO

"Você ainda não pediu sua inscrição, jovem cineasta-amador? Filie-se urgente, as possibilidades são imensas, procure ali um dos batalhadores do Novo Cinema Nacional, franco, ousado, invencível, otimista, inteligente, novo, e você terá em pouco tempo seu filme, os letreiros de seu filme, as cenas de emoção do seu filme aplaudidos na noite de lançamento por um público sofisticado e burguês".
(Maurício Gomes Leite)

Segundo alguns o cinema novo não existe. Outros nao acreditam na sua existência mas, insistentemente o invocam quando se trata de fazer uma localização no tempo e no espaço, ou, um julgamento crítico. Há ainda os que crêem firmemente no cinema novo e fazem do slogan condição sine qua non da salvação do cinema brasileiro. Essas divergências, de início, parecem muito salutares porque, existindo ou não, desburocratizam o Cinema novo e o transformam em matéria de fôro íntimo, pois, antes de mais nada, ele é um estado de espírito, um estado revolucionário de espírito, relativamente às coisas de nossa cinematografia.

"Filma-se, e em se filmando dá". Esta frase tirada de uma carta de Glauber Rocha, traduz hoje o élan do cinema brasileiro, representando pelo que se convencionou chamar de cinema novo. A expressão é, sobretudo, um slogan promocional, porque na verdade não se pode definir esse estado de espírito que de repente se apossou de um grupo de pessoas (na sua maioria jovens) e que levou o cinema a ser urna instituição nova na cultura brasileira.

O cinema passou a ser coisa séria, importante. Coisa que, absolutamente, não era antes, no Brasil. Paradoxo dos paradoxos: o cinema, arte dispendiosa, tornara-se mais acessível do que qualquer outra arte. Ocupação de saltimbanco, à disposição, sobretudo, de quem, com boa conversa, levasse um capitalista a inverter dinheiro com fins quase exclusivamente lucrativos.

O cinema novo transformou esse estado de coisas. Tornou, de golpe, a rédea da atividades cinematograficas no Brasil (centralizadas no Rio, com focos em Salvador, João Pessoa e só agora, em S. Paulo).

Hoje em dia, na Europa por exemplo, o nome do cinema brasileiro é respeitado graças a essa ação conjunta, convergente, que só mesmo uma necessidade histórica pode explicar. A revista Cahiers du Cinéma1 já começa hoje a dedicar uma seção de correspondência especial sobre o cinema novo brasileiro.

Como nasceu esse movimento? De forma espontânea, natural e algo complexa. Pode-se dizer que seu núcleo central originou-se de um grupo de jovens idealistas que se reunia nas sessões semanais da Cinemateca do Museu de Arte Moderna. Êsses jovens, através de um sentimento misto de displicência e obstinação, resolveram trazer a chancela de arte para uma atividade artística que vinha sendo desviada de suas verdadeiras características. Dentre eles, podemos citar o jornalista Nelson Pereira dos Santos que fez Rio, Quarenta Graus e Rio, Zona Norte (em 1955 e 1957); Joaquim Pedro de Andrade, recém-formado na Faculdade de Física, fez O Mestre de Apipucos e O Poeta do Castelo (1959), documentários sobre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira;

Paulo Cezar Saraceni que, depois de uma experiência amadorística em 16mm, revelou-se também com o documentário Arraial do Cabo. Na Bahia, acompanhando o movimento carioca, Glauber Rocha, crítico ativíssimo, realizou um curta-metragem, O Pátio.

A amizade estreitou o ideal de cada um. Pouco a pouco, o espírito cultural – "a serio" – da literatura ia-se transformando em cinema2. Cinco Vezes Favela, filme coletivo, lançou o movimento ainda anônimo na praça. Feito à margem e quase em segredo, Os Cafajestes, de Ruy Guerra, trouxe a dose de escândalo que faltava, sacudindo a atenção do público alheio aos movimentos e às pretensões dos bastidores. O Pagador de Promessas, arrebatando a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962, contribuiu com o ânimo que faltava para corrigir as deficiências de um idealismo solitário. Anselmo Duarte, entretanto, não cumprindo à risca as solicitações que se desenhavam nas ambições e nas necessidades coletivas, foi posto à margem do movimento. Durante o desenrolar desses acontecimentos (ou, talvez, influenciado por eles), um outro grupo, atendendo ao chamado do crítico carioca Ely Azeredo, reunia-se para fundar urna publicação que receberia justamente o nome Cinema Novo. A publicação não chegou a sair e, conforme se diz, o crítico em questão renegou em seguida a sua idéia e o nome que, por ressonância, foi adotado como fórmula genérica.

O cinema novo progrediu de forma inorgânica e hoje (1966) começa a produzir maduros os frutos verdes de ontem3. Seus membros, sobretudo os daquelas sessoes semanais da Cinemateca, Continuam unidos e à frente do movimento, O cinema novo também é uma fraternidade.

NOTAS

1. Orgão mensal francês, mundialmente conhecido, sede de fundação da nouvelle vague, principal movimento de independância cinematográfica e de anticonformismo.

2. Joaquim Pedro de Andrade, por exemplo, de tradicional familia mineira, segue a linhagem cultural das obras de Carlos Drummond de Andrade. Paulo Cezar Saraceni filia-se ao grupo de Otávio de Faria e Lúcio Cardoso.

3) 1964 — os pontos altos do cinema novo inorgânico surgiram aqui: Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Olauber Rocha, e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos.

II) DA CHANCHADA AO CINEMA NOVO

"...apesar de se explicarem verbalmente em excesso, as personagens não conseguem transmitir ao espectador a plena convicção sem a qual torna-se inexistente a emoção dramática".
(P. E. Sales Gomes, a propósito de Ravina).

Os cineastas brasileiros são primitivos e prolixos porque, apenas descobrindo o cinema, o tomam em sua excessiva tagarelice. O sistema verbalista é um remanescente das correntes literárias anteriores ao modernismo e persiste no sangue de realizadores menos informados que se deixam levar pelo lado vulgar do Cinema; a essas influências literárias onde subsiste a ânsia da descrição objetiva se junta a gabolice do brasileiro típico (que não deixa de ser verdadeiro mesmo na mentira mais injustificável).

A chanchada, para apenas citar um exemplo, é especificamente falante e exagerada. Grita, não fala. Salta aos olhos. Aboliram-se na chanchada os conceitos de mise-en-scène e de linha narrativa contínua e pode-se notar com facilidade que o falar é independente do agir: os personagens posam para falar e estão sumamente preocupados com a clareza de suas palavras. Essa gentileza com o espectador, permanente, inacabável, criou um comodismo nas platéias menos favorecidas e o já falado "complexo de inferioridade cinematográfico" que Walter Hugo Khoury definiu num artigo importante. A chanchada com seus defeitos ficou sendo o bode expiatório dos que se dirigiam contra o cinema brasileiro, mas, o que se pode ver, em parte, foram esses mesmos vícios serem transportados para os novos ternas e gêneros em produção. A deficiência da chanchada tinha antecedentes nas pessoas de seus realizadores em particular e num espírito que animava todo setor artístico e cultural do cinema brasileiro. Por mais paradoxal que possa parecer é o cinema novo um exemplo típico de reação contra o medo e a covardia que se apresentava sob essa aparência de regressão. O provincianismo cultural criou nos realizadores nacionais o mito da perfeição, mas, da perfeição teórica (não havendo bons filmes nacionais não pode haver um perfeito aprendizado prático). É um exemplo interessante da dialética da comunicação e da apreensão cultural. Para se exprimirem dentro de uma linguagem clara e perfeita os cineastas brasileiros contavam apenas com urna formação "teorica", e, temendo cair nos vícios que as manifestações pessoais poderiam acarretar, apegaram-se de forma exagerada a essa bagagem. O resultado é o que se observa: a fraqueza dos temas, a rigidez e a impersonalidade das fitas, ou, em outras palavras, filmes medíocres que atingiam as raias do ridículo.

Pelo seu artificialismo imanente compreende-se a chanchada a priori, isto é, as próprias deficiências do veículo eram elementos risíveis e se ínseriam no contexto. É muito importante este fato, porque explica o despeito intrínseco do público pelas nossas coisas de cinema. Os defeitos se transferiram da chanchada para outros filmes ditos sérios e o reflexo condicionado permaneceu. A solução para as descontinuidades visuais do cinema brasileiro é fator premente na solução do problema de sua não aceitação pelo público. O vício se repete de filme para filme e o que cada vez mais é considerado essencial e aprovado pelos laboratórios baseados em dados industriais decadentes e pelos homens formados na escola "expressionista" da chanchada, como Toni Rabatoni, não passa, na realidade, da mais arcaica forma fotográfica de visualização.

A chanchada, bem ou mal, condicionou de modo profundo o cinema brasileiro e mesmo o cinema novo. De O Homem do Sputnik a Boca de Ouro, por exemplo, apesar de seus respectivos realizadores pertencerem a épocas e escolas desencontradas, sentem-se perfeitamente linhas de força da mesma espécie. No cinema novo, onde Boca de Ouro é um representante da velha classe, esses elementos diluíram-se e sedimentaram-se noutros centros de gravidade. O expressionismo fotógráfico se foi em troca de concepções mais acessíveis de iluminacão, mas, na verdade, o verbalismo perdura como certas manchas que custam a desaparecer. Certamente o Boca de Ouro é uma encruzilhada, um ponto de convergência onde se encontram e se transformam os remanescentes de tendências já mortas.

Eis os elementos do plano típico que caracterizava o cinema tradicional ou industrial: iluminação e enquadramento expressionistas. O enquadramento tende especialmente para a estratificação e a rigidez. O personagem está evidente e explicitamente à disposição do espectador e, como num palco, sua dicção tem o volume bastante acentuado. Da última fila do cinema o espectador sonolento verá e ouvirá com perfeição o que ele tem a fazer ou a falar.

Suas falhas de representacão e as de mise-en-scène (na maioria das vezes muitas) serão também necessariamente acentuadas. O décor, na intenção de retratar realisticamente a atmosfera, também peca pelo exagero que os princípios alinhados acima amplificam.

Porto das Caixas, de Paulo Cézar Saraceni, foi o primeiro longa-metragem a quebrar no cinema novo a falsa e precária técnica de "perfeição". O flou, o trompe l’œil, o sussurro são as saídas adotadas. Um filme verdadeiramente realista, sem exageros ou cacoetes. A sugestão da realidade é o elemento que conta.

III) UM OBSTÁCULO A TRANSPOR: O PÚBLICO

"Como vão aqueles filmes horríveis que você faz e que eu tive a sorte de não ver?"
(Citado por Walter Hugo Khouri)

"A agravar essa situação, temos, também aquilo que podemos chamar o Complexo de inferioridade cinernatográfica do brasileiro". (Walter Hugo Khouri).

O cinema brasileiro sempre lutou contra a dose de má vontade de um público mal informado e comodista que não enfrenta a fita a que assiste e se comporta de forma passiva, receptora.

A função de cineasta corresponde, na mesma ordem dos fenômenos, a uma brincadeira nunca levada a sério.

Os homens de cinema são sempre tidos como entes privilegiados e seu trabalho, um chômage lucrativo permanente. Talvez defeito da debilidade de nossa estrutura industrial, o cinema brasileiro não apresenta trabalhos mas chances aos que anunciam um bom gosto artístico mais acentuado.

Enquanto um cinema funciona sob essas considerações específicas, sobrenaturais e distantes da realidade, certas verdades nacionais, mostradas muitas vezes de forma crua e despojada, não poderão nunca ser totalmente assimiladas.

Essa constatação parte de um pressuposto, ou melhor, confirma um pressuposto: o público é o maior adversário que nossos novos realizadores têm que enfrentar. Não propriamente o público, mas uma consciência errada e anacrônica que ele traz consigo.

O desprezo pelas coisas do cinema está plantado bem fundo no espírito do brasileiro. Nele estão contidos elementos contraditórios, entre os quais um enorme coeficente de provincianismo que faz com que se aceite passivamente o produto estrangeiro em detrimento do nacional.

Acredito ser esse o fato mais dramático no sentido de que não prevê senão soluções demoradas, e, ainda assim, de sucesso duvidoso. O brasileiro que se retraiu em virtude da fraqueza de nossa cinematografia se recusa a reconhecê-la até um ponto determinado (prêmios internacionais à parte).

A realidade (e entre nós, a verossimilhança) é o ponto de referência crítica que ele emprega, para fundar suas opiniões concretas; por isso, de certa forma, êle precisa se achar nos filmes a que assiste. Antes, contra a chanchada, só se podiam opor (com certa vergonha específica) as produções estrangeiras.

O que mais espanta não é tanto o desinteresse pelas fitas, mas a agressividade e a repulsa a elas dirigidas sob a forma de desprezo. A qualidade artística seria um fator de fascínio, um chamariz e essa qualidade o público sozinho não pode descobri-la. Faz-se necessária a presença de um agente credenciado que aponte a qualidade ou a libertação almejada.

O fracasso comercial de Tocaia no Asfalto, filme baiano de Roberto Pires, lançado no Rio em novembro de 1962 com enormes perspectivas de êxito, gerou um clima de verdadeira calamidade pública. Depois do sucesso do Assalto ao Trem Pagador, esperava-se um novo sucesso de bilheteria. Acontece, entretanto, que Tocaia no Asfalto não retratava senão um fato remoto, distante do público carioca que não encontrou na fita nenhum estímulo imediato. Da observação pôde-se concluir que os filmes brasileiros que retratam ou reproduzem um acontecimento não muito remoto e de repercussao nacional têm invariavelmente sucesso de público, porque este fato funciona como ponto de referência concreto, imediato.

Essa conclusão baseada na fita de Roberto Farias, confirmou-se no sucesso de A Grande Feira, de Roberto Pires, em Salvador. O que quis dizer relaciona-se mais com a familiaridade que os eventos reproduzidos nas fitas possuem (e seu caráter especifico e atraente) do que com a aparência espetacular desses mesmos acontecimentos. A situação do cinema brasileiro, portanto, mutatis mutandis, era nessa época, semelhante à do cinema francês na sua fase Lumière, isto é, a fase do cinematografo, na qual se buscava com insistência a atmosfera de intimidade das reproduções do cotidiano. Isto, no que diz respeito às relações do cinema com o público, bem entendido.

IV) POÉTICA DO CINEMA NOVO

Não se pode negar que uma visão de conjunto de uma obra artística qualquer, mesmo a que não disponha de finalidades essenciais, faz sempre extravazar, bem ou mal, uma poética distinta. Assim, se fora do cinema novo tomamos a fase das chanchadas (ou das comédias musicais), elas, na sua grosseira insuficiência artística, nos apresentarão sempre um universo específico como pano de fundo, e diversas peculiaridades, todas dependentes de ou imanentes a esse mesmo universo.

Indago-me que critério usar para abranger, com clareza, e, com brevidade, o problema. Uma divisão prática seria interessante no sentido de "visualizar" em detalhe essa poética ou esse universo específico em seus diversos setores. Digamos, adotando o método indutivo que, no cinema novo, as correntes principais são:

a) a tradicional, que evoluiu do antigo cinema industrial;
b) a híbrida que mantém pontos de contato com a anterior e com,
c) a moderna, originada no espírito jovem de jovens apaixonados pelo cinema, teóricos, estudiosos, cine-clubistas e, finalmente, autores de filmes.

Essas três correntes ou saídas do atual cinema brasileiro são absolutamente autênticas e cada uma comporta de per si uma característica própria que no entanto se liga com intimidade à sua congênere do outro grupo. Se poética e universo são a mesma coisa, não significarão, também, em última instância, estilo?

E o cinema novo prima justamente por uma unidade dentro da diversificação estilística. As causas desse fenômeno residem de modo especial na formação independente de cada realizador e na emulação inconsciente que existe no meio.

Na primeira corrente, fundam-se os princípios dessa poética. São, por assim dizer, os alicerces do universo cinematográfico brasileiro, a origem dos vetores que orientarão um determinismo cultural.

Para começar, Rio, Quarenta Graus, de Nelson Pereira dos Santos. Como transformar em palavras sua concepção?

Filme fragmentado em episódios que se interdependem entre si e se completam. Cada uma, célula de poesia, ora realista, ora de referência cinematográfica. Sublinhe-se e atente-se, no filme, a nostalgia relativamente à chanchada que ele tanto como produção quanto como realização parece querer condenar (v. g. o episódio do deputado nordestino, ridículo, grosseiro, destoante, verbalista, como se queria na festa primitiva). Defeituoso, maladroit, eis a chave-mestra para se classificar formalmente o. seu mundo e o que lhe seguirá. Esperar a perfeição, os ornatos, o rigor num filme brasileiro somente se se tivesse uma visão brasileira desses elementos. O Brasil e seu cinema para os brasileiros. Num determinado momento, a ousadia máxima para um filme de produção pobre e de conceitos pobres a respeito da produção: a grua improvisada que termina por trucagem numa maquete da visão-tipo do Rio: o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara. Nelson Pereira dos Santos, usando recursos de todo um Cinema que lhe antecedeu, traça as bases de uma nova escola: a da autenticidade.

Rio, Zona Norte confirma com mais secura a tese da unidade e da personalidade ou autoria. O compositor Espírito da Luz Soares é a "voz do povo" e sua vida a nossa vida. Eis o samba-na-caixa-de-fósforos, o despojamento, quase o cinema-verdade em 1957. Eis a coragem, a necessidade de utilização da inteligência, do amor ao cinema. Que tipo de universo é esse? A poesia do real, da crueza, do drama, da pobreza, da infelicidade. A poética do cinema novo, queiram ou não, é essa aparência, às vezes titubeante, ou a ilusão dessa aparência. Titubeante, na verdade, tem sido o espectador brasileiro que não se entrega facilmente, que reage, que perde a seiva de um mundo novo, em busca de contatos, de relações, de ressonância com uma concepção provinciana e alienada que traz consigo.

Depois de Rio, Quarenta Graus, Rio, Zona Norte veio Mandacaru Vermelho e Nelson Pereira dos Santos já entrava pelas outras correntes, formando, pensando, ruminando Vidas Secas.

Em outros planos, outros realizadores seguiram-lhe os passos: Glauber Rocha, Roberto Pires, Roberto Farias. Sobretudo Glauber. Os demais, assistiam, apreendiam, debatiam. preparavam-se.

Cinema é antes prosa do que verso, mas que melhor poeta do que Guimarães Rosa? devia pensar Glauber Rocha, digerindo o roteiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Que afinidade sutil entre o jovem baiano e o grande escritor. "...ele será tanto mais original quanto mais fundo baixar na pesquisa, trazendo como resultado um mundo e um homem diferentes, compostos de elementos que deformou a partir dos modelos reais, consciente ou inconscienteinente propostos". Falando da técnica criadora de Guimarães Rosa, Antônio Cândido não se refere também e com certa intimidade à elaboração de Deus e o Diabo na Terra do Sol, ou, mais particularmente, à técnica de Glauber Rocha? Antônio das Mortes, esse personagem fabuloso não seria, por exemplo, esse "homem diferente composto da deformação dos modelos reais?"1

Dessa poesia viril, faceta de um mundo, região, como uma região geográfica de um Brasil imenso, se pode passar a outras aparências.

Cinema é crônica, pensaria Roberto Farias, seguindo a prosa narrativa de Nelson Pereira dos Santos quanto à despreocupação com o veículo e renovando o estilo em certos detalhes, fiel, porém, ao processo da découpage e dos vrais raccords.

Cinema é tudo, pensava ainda Nelson, que começa a ser menos cronista do que cantador; dolente, rústico, singelo, despojado como Graciliano Ramos se revela, ele próprio, em S. Bernardo: "extraio dos acontecimentos algumas parcelas: o resto é bagaço". Como escritor, Nelson passa a ser evasivo, seco e intransigente.

Cinema é paixão, choraria Paulo Cézar Saraceni.

Cinema é "música", dirá, mais tarde, Sérgio Ricardo, completando a tempo: música popular. É ritmo e raciocínio, responderia Joaquim Pedro de Andrade. Cinema é intimidade, replicaria Carlos Diegues. À polêmica que não chega a ser está aí: porém todos concordam na aparente discordância.

Todas essas manifestações que transtornam nosso espírito, no fundo, existem da forma a mais brasileira possível, isto é, displicente, balbuciante, tímida ainda. E não vão ser as tais correntes que para facilitar inventei, que as separarão em compartimentos estanques. Assim, Nelson Pereira dos Santos influencia Glauber Rocha que influencia Carlos Diegues que se exercita. O universo de Nelson, seus conceitos dramáticos agem sobre Joaquim Pedro que também se estimula com a retórica de Glauber. Paulo Cézar acha que quase tudo vem de Rossellini, mas, por exemplo, toma Viaggio in Italia como um meio e nunca corno um fim. Pelo realizador italiano, o mundo de Paulo Cézar encontra o de Glauber Rocha e ambos se entrechocam, numa dialética criadora.

Eis aí resumida a poética do cinema novo. Falta, também, mencionar que os problemas técnicos que assaltam quase sempre a realizacão de um filme, agem de maneira a influir sobre a formacão desses mesmos mundos. Aos poucos, porém, a consciência vem chegando e universo pessoal e condiçoes materiais atingem uma fase quase familiar de concordância: são os casos de Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e o exemplo paulista de Noite Vazia.

Ao final, entretanto, tudo é válido e conta como aquilo que Louis Marcorelles diz ser "a feitura concomitante da história de um povo e de um cinema". O amor ao cinema chega ao extremo de se realizarem filmes com o conhecimento prévio de sua quase impossibilidade de recuperacão financeira no mercado interno do Brasil e já hoje em dia o mercado externo é visto com certa desconfianca.

O tempo favoreceu a abolição do supérfluo. De Boca de Ouro a Vidas Secas, por exemplo, que incrível aumento de objetividade narrativa. Os estímulos se filtram, o cinema novo busca a universalidade através da análise, da consciência acerca de meios e fins, da autoria. Realiza-se, enfim, pelo amor ao homem brasileiro e pela concentração em objetos realmente autênticos.

Finalmente, se me perguntassem, à queima-roupa quais as raízes e origens mais profundas do cinema novo, ou melhor, de sua poética, eu respondvria de forma conclusiva: 1) a auto-suficiência do brasileiro, fator perigoso que às vezes, como no caso presente, age de maneira positiva; 2) como causa material a influência direta, de um lado, da chanchada, o cinema industrial carioca decorrente da novela radiofônica; de outro lado, uma forma de aculturação brasileira mais elevada (escritores) e os curta-metragens Caminhos, Cruz na Praça, Domingo, Arraial do Cabo, O Poeta do Castelo e Couro de Gato; 3) a coragem, o amor do cinema como forma de expressão e, em sentido não pejorativo, a lei do menor esforço.

NOTAS

1 Cândido, Antônio, "Tese e Antitese", Cia. Editora Nacional, 1964.

2 Ramos, Graciliano, "São Bernardo", Editora Martins, 1964.

V) À MARGEM D0 CINEMA NOVO

"Espíritos teimosos insistem em falar em erro, pois ainda não compreenderam que o único erro fatal é não existir".
(Paulo E. Sales Gomes, 1960)

Nas entrelinhas do CN nasceu e progrediu em João Pessoa um ciclo cinematografico fundado exclusivamente sobre o curta-metragem. Os nomes que o ciclo paraibano encerra não são poucos, e, não fôra o pouco cosmopolitismo de João Pessoa, aqueles jovens idealistas já estariam comprometidos na realização de filmes longos. Digo "pouco cosmopolitismo" nao porque queira menosprezar o sentimento de província que se acentua mais e mais fora do Rio de Janeiro e, de certa forma, de S. Paulo, porém, acredito que a qualidade de província tenha trazido àqueles cinéfilos um retraimento necessário e um desejo simpático de começar pelo aprendizado prático que é o grande mérito do curta-metragem. Tive e ainda tenho a preocupação básica de localizar a causa específica do nascimento desse surto cinematográfico em João Pessoa.

Em princípio, João Ramiro Mello, realizador e ex-critico de cinema de A Tribuna do Povo, jornal da capital paraibana, não traçou um retrospecto de modo a facilitar a tarefa. Segundo ele o movimento nasceu como reflexo da ida de Alberto Cavalcanti a Recife em 1953, onde e quando rodou O Canto do Mar. E continua, dizendo: ‘‘Não existe grupo, mas uma mentalidade que eclodiu definitivamente em 1953 com a fundação do cine-clube João Pessoa, pelo padre Antonio Fragoso (hoje bispo do Maranhão).

Segundo pude apurar, faziam parte do cine-clube nomes como os de José Rafael Menezes (autor de Caminhos do Cinema — Ed. Agir), Willis Leal (autor de Introdução à Problemática do Cinema, ao que parece ainda inédito), Geraldo Carvalho, Antônio Lins Rolim, Milton Veloso, Linduarte Noronha, Wladimir Carvalho e Jurandy Barroso, entre outros. Hiavia, inclusive, o típico clima conservador contra as modernidades que o cinema trazia e isso impediu o pleno florescimento de uma cultura cinematográfica. O próprio João Ramiro só pôde ir ao cinema pela primeira vez aos quinze anos em virtude da forte oposição paterna cujo lema ‘‘cinema é imoralidade" foi derrubado através de muita insistência. Nesta época, João Ramiro já lia, no Diário de Pernambuco, a coluna cinematográfica de José de Souza Alencar, crítico e ex-assistente de Cavalcanti em O Canto do Mar.

Em 1955 João Ramiro assumiu a direçao do cine-clube e resolveu dinamizá-lo criando um pequeno departamento de produção que promoveu a realização e a exibicão do documentário em 16 mm, Cabo Branco. Em 1956 o cine-clube fechou e o grupo se refugiou na critica. O sonho documentarista, porém, continuou Linduarte Noronha, Wladimir Carvalho, João Ramiro... Na Faculdade de Filosofia João Ramiro lia Anhembi, revista intelectual paulista, e soube através dela que o Banco do Estado de São Paulo financiava (Cr$300.000) a produção de documentários e chamou Linduarte e Wladimir.

O esquema de A ruanda nasceu, porém, sob outra estrutura. O INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo) cedeu-lhes uma câmera (Bell & Howell-Eyemo), tipo reportagem e os trabalhos de laboratório. O sociólogo Odilon Ribeiro Coutinho contribuiu com a película virgem e o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais do Recife lhes adiantou cem mil cruzeiros. O roteiro original de Linduarte Noronha chamava-se Talhado, a Cidadela do Barro e sofreu modificações. Linduarte Noronha teve Rucker Vieira como fotógrafo e João Ramiro como assistente. Trabalho eminentemente pessoal, Aruanda reflete o primitivismo dos meios e das concepções cinematográficas nascentes no ciclo paraibano. Meu primeiro contato com Linduarte Noronha se deu na 1ª Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica em S. Paulo, onde foi estreada nacionalmente sua fita. Foi um contato rápido e anônimo. Minhas preocupações, na época, tenderam para o trabalho exaustivo que deveria ter assolado a Linduarte naquela realização e sobretudo o acúmulo de suas funções, pois a própria narração da fita foi feita pelo realizador.

A equipe dividiu-se a partir de Aruanda. João Ramiro e Wladimir Carvalho escreveram Romeiros da Guia que contou com o auxilio integral do INCE. Isso se deu no começo de 1962. Por seu lado Linduarte Noronha realizava um média-metragem sohre O Cajueiro Nordestino.

Os filmes do ciclo paraibano foram exibidos para seu público com enorme sucesso em sessões especiais. Volta e meia, Aruanda é mostrado na Universidade e nas Escolas. É muito violento o impacto cultural que apresenta, refletindo o Brasil e certos compartimentos estanques que contém.

VI) QUEM FAZ CINEMA NOVO?

"...o Clube Cinema Novo que, de meses para cá, passou a existir no Rio de Janeiro..."
(Maurício Gomes Leite)

NELSON PEREIRA DOS SANTOS
Nascido em 22 de outubro de 1928 em S. Paulo. Atividades em S. Paulo e no Rio. Advogado. Assistente de direção (Rodolfo Nanni, Alex Viany, Paulo Wanderlei). Montador. Produtor (O Grande Momento)

Filmes:
1949 Juventude (documentário em 16mm)
1950 Documentário inédito sobre atividades políticas em S. Paulo.
1954/5 Rio, Quarenta Graus.
1957 Rio, Zona Norte.
1958/60 Documentários curtos para Jean Manzon e I. Rozemberg.
1960 O Boca de Ouro.
1961 Mandacaru Vermelho.
1963 Vidas Secas.
1964/5 Um Moço de 71 anos, Machado de Assis, Fala, Brasília (documentários).

Nelson: fundou o cinema novo. Sempre funcionou em perfeito sincronismo com a realidade cinematográfica brasileira inspirando-se não só em temas como num estilo cinematográfíco atualíssimo. Obra variada.

Rio, Quarenta Graus Estilo semi-neo-realista que peca por certa falta de unidade e excesso de ambição em abarcar de uma só vez a realidade do Rio de Janeiro. Estilo à parte, sente-se certa influência do próprio cinema brasileiro (da chanchada também conforme demonstra o tipo de "deputado" nordestino e a ação de que participa) e que lhe confere uma das chaves para desvendar um possível "estilo brasileiro", defeituoso às vezes, mas autêntico, autônomo e digno de pesquisa e desenvolvimento, coisa que o próprio Nelson tentou retomar em Boca de Ouro.

Rio, Zona Norte Neo-realismo. Zavatini e De Sica transpostos para o Brasil. Obra una e madura.

Mandacaru Vermelho Retorno às pesquisas de autenticidade. Rascunho de Vidas Secas.

Boca de Ouro Retorno ao Rio suburbano. Obra desprezada que contém chaves para a definição da escola cinematográfica brasileira.

Vidas Secas Clímax. Fim de uma fase de busca. Nelson Pereira dos Santos é pacato, silencioso, e sobretudo observador. Tem profundo senso de interpretação. Sua característica básica são as evasivas pelas quais se revela insuperável em discussões ou debates. Sente-se nele certa nostalgia pelo cinema velho brasileiro do qual e a ponte de ligação com o cinema novo. Sua formação cultural como sua obra parece ter, portanto, duas etapas.

GLAUBER ROCHA
Nascido a 14 de março de 1938 em Vitória da Conquista, Bahia. Educado em Salvador, Bahia. Atividades em Salvador e no Rio de Janeiro. Curso de Direito, interrompido. Jornalismo (crítica de cinema). Coordenador da produçao de A Grande Feira.

Filmes:
1958 Pátio (curta-metragem).
1959 Cruz na Praça (curta-metragem inacabado).
1961 Barravento (longa-metragem).
1963 Deus & o Diabo na Terra do Sol (longa-metragem).
1965 Terra em Transe (em preparo).

Glauber Rocha, Força da Natureza, é por certo, o inverso proporcional de Saraceni. Sua cultura vive impulsionada pela seiva de seu talento, e de sua força interior.

Profundamente chegado às coisas da cultura brasileira (literária) e um apaixonado de certo tipo de cinema estrangeiro. O cinema brasileiro não exerceu influência sobre ele. Reestrutura, portanto, de forma válida o arcabouço do estilo brasileiro de cinema, sem sequer meditar sobre ele. Sua personalidade sendo extremamente marcante, Glauber Rocha se deixa levar por ela. Extrovertido, exagera por vezes teses e opiniões.

A coerência de suas concepções se mede muito mais pelo todo do que pelos detalhes quase sempre obscurecidos pelo que se chama de "retórica baiana".

É o autor de Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme brasileiro e sem dúvida um marco na história do cinema moderno.

Sua única ligação prática com o cinema brasileiro é com Humberto Mauro, o velho mestre de cuja obra se pode sentir influências em Barravento.

JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE
Nascido a 25 de maio de 1932 no Rio de Janeiro.

Bacharelado em Física. Bolsa de estudos na Franca (IDHEC) (Cinémathèque Française), Inglaterra (Slade School of Art) e nos USA (curso com David e Albert Maysles). Assistente de direção dos irmãos Santos Pereira e de Gérson Tavares.

Filmes:
1959 O Poeta do Castelo (documentário).
1961 Couro de Gato (episódio de Cinco Vezes Favela).
1963 Garrincha Alegria do Povo (documentário de longa-metragem).
1965 O Padre e a Moca (longa-metragem)

Outra espécie biotipológica e cultural. Frio, formado em física pela Faculdade Nacional de Filosofia, abandonou o magistério e a pesquisa pelo cinema. De uma introspecção enorme, fala pouco e baixo; formacão cultural também diversa com marcante influência da cultura mineira, cujo universo de ficção ou de realidade lhe despertou sobremodo o interesse. Afilhado de Manuel Bandeira iniciou-se fazendo um documentário para o Instituto do Livro sobre o seu padrinho e sobre Gilberto Freyre (O Mestre de Apicucos e o Poeta do Castelo),
onde o episódio do poeta suplanta o do sociólogo e onde se pode sentir a fria elaboração do découpage que dá aos elementos apresentados uma dimensão nova. Crê no cinema como espetáculo. De todos os elementos do cinema novo é o único que realmente pensa permanentemente em termos de Cinema. Sua preocupação é o cinema e a ele condiciona, na racionalidade que dê ao conteúdo seu verdadeiro valor, as teses e os temas mais abstratos. Entre forma e fundo, portanto, prefere a forma, mas a forma útil.

Além do documentário citado fez Couro de Gato, curta-metragem de ficção premiado em Oberhausen, na Alemanha e em Sestri Levante, Itália. Ültimamente realizou Garrincha Alegria do Povo, documentário de longa-metragem que é sem dúvida uma das obras mais importantes do cinema novo.

PAULO CEZAR SARACENI
Nascido a 5 de novembro de 1933 no Rio de Janeiro. Curso de Direito incompleto. Jornalismo (crítica de cinema). Bolsa de estudos em Roma (Centro Sperimentale di Cinematografia).

Filmes:
1959 Caminhos (16 mm, inacabado).
1960 Arraial do Cabo (documentário).
1961 Porto das Caixas (longa-metragem).
1964 Integração Racial (documentário).
1965 O Desafio (longa-metragem).

Fez três filmes. Caminhos (em 16 mm e silencioso), Arraial do Cabo (documentário em parceria com o fotógrafo Mário Carneiro), este, premiado várias vezes em festivais europeus e praticamente desconhecido do público brasileiro, tendo sido vaiado numa tentativa de exibição no cinema Alvorada, no Rio. Fêz, finalmente, o longa-metragem Porto das Caixas.

Espírito e formação novos no cinema novo.

Formação cultural na linha do grupo de Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Marcos Konder Reis.

Temperamento inquieto, quase angustiado, sem grandes manifestacões exteriores. Seu talento vive impulsionado pela seiva de sua cultura; observador, despreza a objetividade em função das adequações de seu passionalismo à realidade objetiva.

Porto das Caixas, "filme de câmera" (no mesmo sentido de "música de câmera"), conforme denunciou Almeida Sales, é um transbordar de subjetivismo, uma meditação mórbida sobre um ato passional, seus antecedentes e suas conseqüências.

ROBERTO FARIAS
Nascido em 27 de março de 1932, em Nova Friburgo, Estado do Rio. A partir de 1950, no Rio de Janeiro e em S. Paulo. Assistente de direção (J.C. Burle, Watson Macedo, C.H. Christensen, J.B. Tanko). Roteirista dos próprios filmes. Produtor.

Filmes:
1957 Rico Ri A-loa.
1958 No Mundo da Lua.
1959/60 Cidade Ameaçada.
1960/61 Um Candango na Belacap.
1962 O Assalto ao Trem Pagador.
1963 Selva Trágica.
1965 João Juca Jr., Deteiive Carioca (em preparo).

Roberto Farias: Liga-se mais a Nelson Pereira dos Santos de que aos outros. Sua grande característica é o artesanato do qual fez alarde em Cidade Ameaçada. Para confirmar sua formação "nacionalista" realizou algumas chanchadas entre as quais Um Candango na Belacap. Em Assalto ao Trem Pagador foi um pouco além do simples artesanato criando na mecânica fluente de seu filme certo clima de transcendência marcado sobretudo pela boa direção de atores.

Seu último filme, Selva Trágica, convidado ao Festival de Veneza, não logrou muito sucesso.

É talvez o melhor profissional dentro do clima não industrial do cinema nôvo.

MÁRIO CARNEIRO
Nascido a 26 de julho de 1931 em Paris. Estudou Gravura, desenho e Arquitetura. Revelou-se um excelente artista plástico. Com uma câmera 16 mm, realizou por conta própria, alguns filmes curtos que lhe grangearam certa fama nos meios que freqüentava, sobretudo junto a Paulo Cézar Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade. É o fotógrafo por excelência do cinema novo. Realizador.

Filmes:
1960 Arraial do Cabo (co-direção e fotografia).
1961 Couro de Gato (fotografia).
1961 Porto das Caixas (fotografia).
1961 Gimba (co-roteirização e fotografia).
1962 Garrincha, Alegria do Povo (co-roteirização e fotografia).
1962 A Nave de S. Bento (realização e fotografia) (colorido).
1962/63 A Morte em Três Tempos (fotografia).
1963 O Crime do Sacopã (fotografia).
1964 O Padre e a Moça (fotografia).

Com Arraial do Cabo praticamente traçaram-se as linhas do novo estilo fotográfico (vide parte dedicada às chanchadas). Porto das Caixas confirma e amplia, no campo do longa-metragem, essas mesmas linhas. Mário Carneiro, além dêsse passo decisivo, contribuiu com a formação prática de uma verdadeira escola. De seus ex-assistentes, Fernando Duarte (Ganga Zumba) é o fotógrafo cinernanovista de maior evidência.

LUIZ CARLOS BARRETO
Nascido a 20 de maio de 1929 em Sobral, (Ceará). No Rio como jornalista a partir de 1947. Fotógrafo e repórter de fama internacional. Através de Roberto Farias e Glauber Rocha entra no cinema. Co-roteirista de O Assalto ao Trem Pagador.

Filmes:
1962 O Assalto ao Trem Pagador (co-roteirista).
1962 Garrincha, Alegria do Povo (produtor e câmera).
1963 Vidas Secas (produtor e diretor de fotografia).
1964 A Hora e Vez de Augusto Matraga (produtor).
1964 O Padre e a Moça (co-produtor).

Por esse breve panorama pode-se sentir a real influência de Luiz Carlos Barreto no ambiente do cinema novo. Homem essencialmente dinâmico, sua atividade tem-se distribuído através de diversos setores da criação cinematográfica e foi materialmente coroada pela mestria fotográfica de Vidas Secas. Por outro lado, suas atividades como produtor obtiveram relativo sucesso sobretudo na tentativa de infiltrar o cinema brasileiro no exterior.

LEON HIRSZMAN
Nascido a 22 de novembro de 1938, no Rio. Estudos no Rio de Janeiro. Escola de Engenharia. Primeiros contatos com o cinema, no cine-clube da Escola. Encontros pessoais nas sessões da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Acompanha a feitura de O Maquinista (16 mm), de Marcos Farias.

Filmes:
1961 Pedreira de 5. Diogo (curta-metragem) (de Cinco Vezes Favela).
1963/4 Maioria Absoluta (documentário).
1965 A Falecida

Com A Falecida, Leon Hirszman confirma sua importância no panorama do cinema novo, ela que se vinha desenhando sensivelmente desde Pedreira de S. Diogo, que foi a melhor surpresa de Cinco Vezes Favela. É um espírito de extrema racionalidade, frio, metódico, de muito pouca semelhança com o resto da troupe cinemanovista. Em Maioria Absoluta envereda pelo cinema-direto, gênero avesso ao cartesianismo e o domestica a ponto de estupefar os próprios franceses, grandes teóricos do gênero. A Falecida é uma síntese perfeita de confissão e de autodomínio.

CARLOS DIEGUES
Nasceu em Vitória, no Espírito Santo, a 19 de maio de 1940. Estudos no Rio. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da PUC. Diretor do jornal O Metropolitano, da União Metropolitana dos Estudantes, um dos focos do cinema novo. Alguns artigos sobre cinema, calcados sobretudo nos problemas do cinema brasileiro. Algumas experiências em cinema amador (Fuga, Domingo).

Filmes
1962 Escola de Samba Alegria de Viver (episódio de Cinco Vezes Favela).
1963/4 Ganga Zumba.
1965 A Grande Cidade (em preparo).

A influência teórica de Carlos Diegues foi muito marcante na nova geração cinemanovista. Em qualquer manifestação pública suas explanações sóbrias são sempre ouvidas com atenção, pela clareza e objetividade com que são feitas. O cineasta Carlos Diegues representa perfeitamente a política autoral do seu grupo, embora ainda esteja à procura de um estilo que em Ganga Zumba começou a se esboçar e que certamente será descoberto em A Grande Cidade.

ROBERTO SANTOS
Roberto Santos nasceu em S. Paulo, em 1928. Cursou as Faculdades de Filosofia e de Arquitetura, abandonando-as pelo cinema, em 1954. Moço e modesto, inteligente e definido ideologicamente, seu primeiro filme foi uma estréia importante e promissora: O Grande Momento. Agora, em 1965, depois de um longo período dedicado à realização de documentários, Roberto Santos prepara o seu Hora e Vez de Augusto Matraga, baseado no conto de Guimarães Rosa.

TRIGUEIRINHO NETO
Edificou na Europa sua cultura cinematográfica: Fortaleceu-se em contatos com Alberto Cavalcanti, sentiu o impacto da teoria e das peças de Bertolt Brecht e do cinema indiano, principalmente a trilogia de Satyajit Ray (Pater Panchali, Aparajito e O Mundo de Apu). Voltou ao Brasil e dirigiu dois filmes: Bahia de Todos os Santos e Apelo (documentário). Na Itália fez Um Mercado Nasce (documentário premiado).

RUY GUERRA
Nascido a 22 de agosto de 1931 em Lourenço Marques (Moçambique). Estudos em Portugal e na França. IDHEC. Assistente de iluminação fotográfica e câmera em documentários. Figurante e ator. Assistente de direção (Georges Rouquier, Jean Dellanoy, Patrice Dally). Argumentista. No Brasil desde 1958.

Filmes:
1960 Orós (documentário inacabado).
1961 O Cavalo de Oxumaré (documentário inacabado).
1962 Os Cafajestes.
1962 (como ator) Os Mendigos.
1963 Os Fuzis.

A presença de Ruy Guerra, no Brasil, foi catalizadora relativamente a uma repercussão popular do cinema novo. O caso nascido entre Os Cafajestes e a censura carioca agiu como um veículo promocional dos mais expressivos. Como renovação do cinema tradicional de roteirização, de produção e mesmo de mise-en-scène, que chegou a uma ousadia desconhecida em nosso panorama cinematográfico, o papel de Ruy Guerra e de Os Cafajestes foi marcante. Os Fuzis, feito sob outra tônica, não deixou de se caracterizar também como filme polêmico.

FERNANDO CAMPOS
Nascido na Bahia a 15 de abril de 1933. Em 1953 estuda gravura e desenho no Museu de Arte Moderna de S. Paulo. Em 1955 vem para o Rio. Trabalha em problemas de comunicação visual com Rubem Martins e posteriormente com o grupo de Aloysio Magalhães. Faz o curso com Tomaz Maldonado e Otl Eicher e um ano depois com Max Bense.

Filmes:
1962/3 A Morte em Três Tempos.
1964 Brasília, Planejamento Urbano.
1965 A Viagem (em preparo).
Projeto imediato: Matéria de Memória, baseado no romance de Carlos Heitor Cony.

ALEX VIANY
Nascido a 4 de novembro de 1918 no Rio de Janeiro. Jornalismo desde 1934. Crítico de cinema. Cursos de direção e roteiro nos USA (People’s Educational Center). Assistente de direção de Rui Santos (Aglaia). Diretor de produção, argumentista e roteirista. Co-fundador da revista Filme. Autor de Introdução ao Cinema Brasileiro (Instituto Nacional do Livro). Diretor.

Filmes:
1952/3 Agulha no Palheiro.
1953/4 Rua sem Sol.
1955 Die Windrose (episódio brasileiro).
1962/3 Sol Sobre a Lama.

Alex Viany, depois de sua contribuição prática (sobretudo Agulha no Palheiro) constituiu-se no porta-voz oficial do movimento, no Brasil e através de suas influências junto a publicações estrangeiras. Sol Sobre a Lama, com o problema nascido com os produtores, não chegou a revelar uma informação cultural válida.

SÉRGIO RICARDO
Nascido em Manha, SP. a 18 de junho de 1932 onde ficou até 1949, transferindo-se, então, para a Capital. Vocação original para a música. No Rio revelou-se como um dos fundadores da Bossa Nova. Atraido subitamente pelo cinema fez, por conta própria, um primeiro curta-metragem baseado em melodias previamente compostas. Irmão do fotógrafo Dib Lutfi, seu colaborador nos dois primeiros filmes.

Filmes:
1962 O Menino de Calças Brancas (curta-metragem).
1963/4 Esse Mundo é Meu.
1964/5 O Pássaro da Aldeia.1

WALTER LIMA JR.
Nascido a 26 de novembro de 1938 em Niterói, Estado do Rio de Janeiro. Primeiros estudos em Niterói. Bacharel em Direito pela FDUERJ. Atraido ainda jovam pelo cinema, frequentou cine-clubes desde os 14 anos. Crítico de cinema, de 1957 a 1959, no Diário do Povo, de Niterói. Em 1960 ingressou nos quadros da Cinemateca do MAM. Prosseguiu sua carreira jornalística no Correio da Manhã e na Tribuna da Imprensa. Em 1962 foi assistente de Adolfo Celi em Marafa, filme inacabado. Em 1963, assistente de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Filmes:
1965 Menino de Engenho.

EDUARDO COUTINHO
Nasceu em S. Paulo a 11 de maio de 1933. Em 1954 faz um curso de cinema no Museu de Arte de S. Paulo. Em 1956/7, crítico de cinema da revista Visão. Diplomado no IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques) em 1960 (Paris). No teatro, em 1960, dirige Pluft, o Fantasminha.

Filmes:
1960 2 Documentários. (IDHEC) (em 16 mm).
1962 Gerente de produção de Cinco Vezes Favela.
1964 Cabra Marcado para Morrer (inacabado).
1965 Adaptador e co-roteirista de A Falecida.
1965 Lo qracadinha, Depois dos 30 (em preparo).

LUIZ SÉRGIO PERSON
Nascido em S. Paulo. Estudos e primeiras incursões artísticas também na capital. Teatro e cinema. Roteiros, argumentos, estágios Curso no Centro Sperinientale di Cinematografia de Roma.

Filmes:
1962 Al Ladro (Roma) (curta-metragem)
1964/5 S. Paulo S/A. (longa-metragem)

PAULO GIL SOARES
Nascido na Bahia a 6 de agosto de 1935. Em 1954 funda, com alguns amigos (Glauber Rocha, Calazans Neto e Fernando Peres), a revista Mapa, e teatraliza poemas brasileiros nas Jogralescas. É em 1956, 57, 58, 59 a época que se dedica à poesia e publica Velas e Glaubelena. Viagem à Europa e teatro.

Em 1961 começa em cinema participando de um curtametragem inacabado com Glauber Rocha. Participa de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Filmes:
1961 Assistente de Direção: Cruz na Praça.
1963 Assistente de Direção: Deus e o Diabo na Terra do Sol.
1963 Terra Triste (inacabado)
1965 Memória do Cangaço.

ARNALDO JABOR
Nascido no Rio de Janeiro, a 12 de dezembro de 1940. Estudos com padres jesuítas. Vocação artística inquieta, deteve-se por algum tempo entre a poesia e o teatro. Levado ao cinema pela efervescência do movimento cinemanovista e sobretudo pelas suas relações com Carlos Diegues. Autor de alguns roteiros de filmes para televisão.

Filmes
1963/4 Maioria Absoluta (técnico de som).
1964 Integração Racial (técnico de som).
1964/5 O Circo.
1965 A Opinião Pública (em preparo).

MAURICE CAPOVILLA
Nascido em 16 de janeiro de 1936 em Valinhos, SP. Primeiros estudos em Campinas. Através da Cinemateca Brasileira, tem sua atenção voltada para o cinema.

Filmes:
1962 Meninos do Tietê (documentário).
1964/5 Subterrâneos do Futebol (documentário).
1965 Esportes no Brasil (documentário).

MIGUEL BORGES
Nascido a 21 de fevereiro de 1937 em Picos, Piaui. Educado em S. Luís, Maranhão e no Rio de Janeiro. Administração pública e jornalismo. Critica e Cursos de Cinema. Roteirista e argumentista dos próprios filmes.

Filmes:
1962 Zé da Cachorra (episódio de Cinco Vêzes Favela).
1963 Canalha em Crise.2

WALTER HUGO KHOURI
Nasceu em S. Paulo, em outubro de 1919. Estudou Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências, Letras e Artes da Universidade de S. Paulo, especializando-se em cinema, recebendo grande influência da escola sueca moderna.

Filmes:
1952 O Gigante de Pedra.
1958 Estranho Encontro.
1959 Fronteiras do Inferno.
1960 Na Garganta do Diabo.
1962 A Ilha.
1964 Noite Vazia.
1965 Corpo Ardente.

A ação de Walter Hugo Khouri no meio cinematográfico brasileiro foi essencialmente importante. O aparecimento de Estranho Encontro em 1958, repercutiu intensamente sobretudo no seio da crítica do Rio e de S. Paulo. O filme veio trazer novas perspectivas aos que tinham perdido as esperanças relativamente à reimplantação do cinema como veículo de expressão artística. A posição cultural de Khouri, entretanto, não deixou de levantar duscussoes, algumas delas bastante profícuas.

ROBERTO PIRES
Nasceu a 29 de setembro de 1934 em Salvador. Sua carreira cinematográfica começou pelo seu interesse por assuntos de ótica. Roberto Pires desenvolveu sozinho um processo ótico chamado Igluscope (Iglu era o nome da firma produtora de seu primeiro filme), com o qual fez Redenção.

Filmes:
1954/56 Redenção.
1960 A Grande Feira.
1962 Tocaia no Asfalto.
1963 Crime no Sacopã.

NOTAS

1. Rodado na Síria, a convite do governo local.

2. Depois de vários problemas coro a censura que chegou, inclusive a interditá-lo, o filme foi liberado e lançado no Rio.

VII) DIÁLOGO DO CINEMA NOVO

Em 1962 o grupo principal do cinema novo reuniu-se na casa de Luiz Fernando Goulart a fim de, numa espécie de exame de consciência, fazer um levantamento de seus problemas e de suas perspectivas. Luiz Fernando Goulart era um jovem e entusiasta acompanhante do movimento e revelou-se posteriormente um ativíssimo assistente que hoje aspira à realização.

Foi uma reunião histórica que ficou perpetuada pela gravação dos depoimentos e pelas fotografias de Luiz Carlos Barreto.

Fizemos desse levantamento, uma selecão cuidadosa que, conforme frisamos no início deste volume, não pretende apresentar hoje os pontos de vista dos membros do cinema novo, apesar de retratar fielmente o grau e a intensidade dos seus problemas, das suas alegrias e frustrações. As questões objetivas apresentadas aqui já se transformaram, mas a fraterna atmosfera do cinema novo permanece.

JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE

"Fiz um filme, Couro de Gato, que tinha uma intenção poética da qual me orgulho e gostaria de praticar. Mas eu pretendia naquele filme um sistema de super posições de modo a atingir todos os níveis, todo o mundo. Eu me convenci de que isto reduz a validade artística e cultural do que se faz. Se você não se submeter a dogmas básicos que são sempre generalizações e, fundamentalmente, são contrários a tudo que é validade artística, qualquer obediência à idéia geral serve a uma obra. A meu ver o mais efetivo é ter liberdade total em relação a isto (...)".

"Há uma grande revolução geral que engloba tudo e há outras, em planos diferentes. Por exemplo, se o artista faz uma obra importante no tempo dele, original e única, ele opera uma revolução. (...)"

"À gente está fazendo um cinema revolucionário mas está fazendo num nível onde ele pode ser realmente útil e contribuir com alguma coisa. Porque há um nível de estratificação cultural, a gente tem de reconhecer".

GLAUBER ROCHA

"Quando eu falo contra a esquematização é contra a simplificação. O grande perigo do cinema novo com o cinema político é a simplificação que pode levar a um fantástico primarismo de todo o cinema. Pois então nós vamos redundar num cinema de atração sem conseqüência".

"Eu acho isso, defendo isso e vou fazer filme sempre com isso, com a cabeça e com o coração, doa a quem doer’’.

LUIZ CARLOS BARRETO

"No Brasil o cinema nem sequer se industrializou e o cinema novo teve apenas o aspecto de romper com a chanchada e nunca com a indústria. Teorizar agora o

Cinema novo e negar a experiência que se deve fazer porque pela primeira vez no Brasil se coloca, no campo do cinema, em pé de igualdade com todo o movimento mundial (...)"

"Será na medida em que suas teses se identifiquem com as do povo que ele atingirá mais ou menos este povo. O problema de se querer colocar o cinema novo a serviço de questões ideológicas, de esquerda ou de direita, será limitar e, ao mesmo tempo, exilar uma boa soma de sujeitos que possam realizar um cinema até reacionário, mas, que do ponto de vista da estética, tragam grandes contribuições. E é perfeitamente válida e valiosa experiência estética dentro do cinema novo (...)".

"Essa experiência (cinema novo) ainda é indigente, pois as realizações não atingiram ainda um mínimo sequer de qualidade. Ela tem de ser ainda aprofundada, porque senão será efêmera, de diletantes que chegaram às conclusões mais limitadas e se contentam com elas. Ela pode mudar de nome, pode chamar-se Amarela, Vermelha mas tem que se aprofundar, tem que tomar direções em todos os sentidos".

LEON HIRSZMAN

"O problema que eu tenho como realizador, como ser vivente de mais de 60 anos que eu talvez ainda tenha pela frente, é dar na medida do meu possível, alguma coisa para mudar essa situação que encontrei quando nasci. Não há nada além disso. Nada e Nada (...). Este problema pode não se situar no plano da consciência, mas eu espero que se situe no plano do sentimento...".

"É este o lado da nossa comunhão. Tem uma humanidade lá fora (...)".

‘‘Na medida em que alguém parta do cinema reacionário e este sirva a nós, ele deve ser utilizado. Na história da arte esse negócio sempre aconteceu, independente de qualquer vontade ou colocação consciente".

"O problema que nós ternos pela frente, acredito, é a consciência e a conseqüência (nessa teoria e prática) frente à criação de uma arte de caráter revolucionário, inconformista, transformando a sociedade brasileira em termos brasileiros e, fundamentalmente, em terras brasileiras. (...)."

"O que nós temos de exigir de cada um de nós é a consciência e a conseqüência dos seus atos neste mundo, é fundamentalmente ter a consciência de que o homem fez a história e a história fez o homem".

MÁRIO CARNEIRO

"Cinema novo para mim é mais um agrupamento de amigos. Muitos deles faziam outras coisas e muito poucos punham o cinema em seus cálculos. Num dado momento houve urna precipitação de talentos para fazer uma coisa que estava no momento exato de ser feita. Essa coisa era o cinema. Isso precisa ser acima de tudo considerado como a soma de esforços vindos das artes literárias ou das artes plásticas. Desse esfôrço é possível que resulte alguma coisa, já que ainda é cedo (...)"

"Isso tudo será sempre o primeiro passo de uma arte conjunta que vai atingir um novo plano, um plano a que os arquitetos medievais chegaram quando construíram, em conjunto, as grandes catedrais (...)"

"Eu quero dar meu ponto de vista em torno de um problema que vocês abordaram sempre de uma maneira diferente da que eu vou abordar. Vocês falam muito de uma obra de arte com um sentido, digamos assim, social, uma linha politica determinada, etc. Eu levantei pela primeira vez o sentido verdadeiro da obra de arte social, que vem a ser uma obra conjunta que existiu nos grandes momentos da Humanidade, em que ela estava toda de acordo. Um arquiteto geral orquestrava a obra dos grandes artistas... Por exemplo, Notre-Dame, que atingiu o limite do dizer em seu tempo. O que eu espero do cinema novo é que ele tenha a ambição de fazer uma obra para uma porção de gente, sem que caia nesta coisinha de que o grande cineasta fosse um homem só, mas um grupo de homens que achassem a mesma coisa e que cada um desse o máximo de si para a idéia."

"Cinena novo é antes de tudo um fenômeno de amizade."

"O cinenia novo morreu; agora começa o que eu chamei de Segunda Safra do cinema novo e que provavelmente começará com Porto das Caixas. E é interessante que isto aconteça, porque foi o documentário de Paulo Cézar (Arraial do Cabo) que talvez tenha começado tudo".

RUY GUERRA

‘‘Dois fatos básicos: cinema novo é um fenômeno não tanto de realização, mas de público. O cinema novo só passará a existir na medida em que exista um publico para seus filmes (...). A função do cineasta novo é a de, através de seus filmes, dar ao público a oportunidade de crítica de seus problemas fundamentais. Eu não considero que o filme deva ser espetacular, se espetacular significa simplesmente empatizar o público, emocioná-lo, sem dar-lhe possibilidade de crítica. O público deve ser atraído por um filme através do tema que expõe. A partir daí, penso que a liberdade de expressão do cineasta deve ser possibilitada por uma produção independente, se independente significa dar a possibilidade de o cineasta dizer o que quer, da maneira que quiser.

A linha ideológica ou estética do cinema novo aparecerá posteriormente e será passível de análise. A priori, acho que não cabe nenhum dirigismo. (...)

Um filme que aborde problemas pequenos, mesmo que seja esteticamente válido, agora ou no futuro, torna difícil estabelecer se é ou não o cinema novo, através de uma posição estética, exclusivamente. Cinema novo vai ser definido através de dua posição ideológica, porque a função do cineasta vai ser definida pela verdade que pretenda transmitir"

FERNANDO CAMPOS

"O que eu tenho atualmente é a pretensão de falar a milhares de pessoas".

APÊNDICE

1. CUSTO INDUSTRIAL DO FILME

O quadro comparativo dos orçamentos cinematográficos no Brasil é mais ou menos o seguinte: Um filme que em 1959/1960 era tido como de orçamento médio, acessível aos produtores interessados pelo surto do cinema novo, custava por volta de seis milhões de cruzeiros (Barravento, Cafajestes, Porto das Caixas). Hoje, filmes desse padrão orçamentário, técnico e artístico, não custam menos de trinta milhões.

Os filmes caros daquela mesma época giravam em torno dos quinze a vinte milhões (Pagador de Promessas); hoje, com a busca incessante de aperfeiçoamento de toda a espécie (parece ter cessado o pitoresco conformismo para com as deficiências formais de certos filmes) o preço mínimo de um filme oscila entre os setenta e oitenta milhões.

2. UM CURSO QUE MARCOU ÉPOCA

Em fins de 1962 o Itamarati, através de seu Departamento Cultural e de Informações (Divisão de Difusão Cultural) promoveu em boa hora um Seminário de Cinema que foi ministrado pelo cineasta sueco Arne Sucksdorff. O patrocínio de tal medida foi da Unesco que selecionou, na Europa, o cineasta Sucksdorff e lhe facilitou os meios da viagem. O Seminário durou aproximadamente seis meses e produziu, no cinema novo, alguns resultados práticos, especialmente no que respeita à formacão de pessoal técnico.

Sendo mais acentuada a tendência à fotografia do que propriarnente à realização, da parte do autor de A Grande Aventura, foi essencialmente de fotógrafos a safra útil do Seminário. Entre eles Dib Lutfi e Luiz Carlos Saldanha. E mais ainda: Eduardo Escorel, Arnaldo Jabor, Flávio Migliaccio, Nelson Xavier, Roberto Bakker.

Os alunos tiveram finalmente a oportunidade de praticar no filme Fábula que, fora do Seminário, Sucksdorf realizou durante quase dois anos no Rio de Janeiro.