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2) Da chanchada ao Cinema Novo

"...apesar
de se explicarem verbalmente em excesso, as personagens não conseguem
transmitir ao espectador a plena convicção sem a qual torna-se
inexistente a emoção dramática".
(P. E. Sales Gomes, a propósito de Ravina).
Os cineastas brasileiros
são primitivos e prolixos porque, apenas descobrindo o cinema,
o tomam em sua excessiva tagarelice. O sistema verbalista é um
remanescente das correntes literárias anteriores ao modernismo
e persiste no sangue de realizadores menos informados que se deixam levar
pelo lado vulgar do Cinema; a essas influências literárias
onde subsiste a ânsia da descrição objetiva se junta
a gabolice do brasileiro típico (que não deixa de ser verdadeiro
mesmo na mentira mais injustificável).
A chanchada, para
apenas citar um exemplo, é especificamente falante e exagerada.
Grita, não fala. Salta aos olhos. Aboliram-se na chanchada os conceitos
de mise-en-scène e de linha narrativa contínua e
pode-se notar com facilidade que o falar é independente do agir:
os personagens posam para falar e estão sumamente preocupados com
a clareza de suas palavras. Essa gentileza com o espectador, permanente,
inacabável, criou um comodismo nas platéias menos favorecidas
e o já falado "complexo de inferioridade cinematográfico"
que Walter Hugo Khoury definiu num artigo importante. A chanchada com
seus defeitos ficou sendo o bode expiatório dos que se dirigiam
contra o cinema brasileiro, mas, o que se pode ver, em parte, foram esses
mesmos vícios serem transportados para os novos ternas e gêneros
em produção. A deficiência da chanchada tinha antecedentes
nas pessoas de seus realizadores em particular e num espírito que
animava todo setor artístico e cultural do cinema brasileiro. Por
mais paradoxal que possa parecer é o cinema novo um exemplo típico
de reação contra o medo e a covardia que se apresentava
sob essa aparência de regressão. O provincianismo cultural
criou nos realizadores nacionais o mito da perfeição, mas,
da perfeição teórica (não havendo bons filmes
nacionais não pode haver um perfeito aprendizado prático).
É um exemplo interessante da dialética da comunicação
e da apreensão cultural. Para se exprimirem dentro de uma linguagem
clara e perfeita os cineastas brasileiros contavam apenas com urna formação
"teorica", e, temendo cair nos vícios que as manifestações
pessoais poderiam acarretar, apegaram-se de forma exagerada a essa bagagem.
O resultado é o que se observa: a fraqueza dos temas, a rigidez
e a impersonalidade das fitas, ou, em outras palavras, filmes medíocres
que atingiam as raias do ridículo.
Pelo seu artificialismo
imanente compreende-se a chanchada a priori, isto é, as
próprias deficiências do veículo eram elementos risíveis
e se ínseriam no contexto. É muito importante este fato,
porque explica o despeito intrínseco do público pelas nossas
coisas de cinema. Os defeitos se transferiram da chanchada para outros
filmes ditos sérios e o reflexo condicionado permaneceu. A solução
para as descontinuidades visuais do cinema brasileiro é fator premente
na solução do problema de sua não aceitação
pelo público. O vício se repete de filme para filme e o
que cada vez mais é considerado essencial e aprovado pelos laboratórios
baseados em dados industriais decadentes e pelos homens formados na escola
"expressionista" da chanchada, como Toni Rabatoni, não
passa, na realidade, da mais arcaica forma fotográfica de visualização.
A chanchada, bem ou
mal, condicionou de modo profundo o cinema brasileiro e mesmo o cinema
novo. De O Homem do Sputnik a Boca de Ouro, por exemplo,
apesar de seus respectivos realizadores pertencerem a épocas e
escolas desencontradas, sentem-se perfeitamente linhas de força
da mesma espécie. No cinema novo, onde Boca de Ouro é um
representante da velha classe, esses elementos diluíram-se e sedimentaram-se
noutros centros de gravidade. O expressionismo fotógráfico
se foi em troca de concepções mais acessíveis de
iluminacão, mas, na verdade, o verbalismo perdura como certas manchas
que custam a desaparecer. Certamente o Boca de Ouro é uma
encruzilhada, um ponto de convergência onde se encontram e se transformam
os remanescentes de tendências já mortas.
Eis os elementos do
plano típico que caracterizava o cinema tradicional ou industrial:
iluminação e enquadramento expressionistas. O enquadramento
tende especialmente para a estratificação e a rigidez. O
personagem está evidente e explicitamente à disposição
do espectador e, como num palco, sua dicção tem o volume
bastante acentuado. Da última fila do cinema o espectador sonolento
verá e ouvirá com perfeição o que ele tem
a fazer ou a falar.
Suas falhas de representacão
e as de mise-en-scène (na maioria das vezes muitas) serão
também necessariamente acentuadas. O décor, na intenção
de retratar realisticamente a atmosfera, também peca pelo exagero
que os princípios alinhados acima amplificam.
Porto das Caixas,
de Paulo Cézar Saraceni, foi o primeiro longa-metragem a quebrar
no cinema novo a falsa e precária técnica de "perfeição".
O flou, o trompe l’œil, o sussurro são as saídas
adotadas. Um filme verdadeiramente realista, sem exageros ou cacoetes.
A sugestão da realidade é o elemento que conta.
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