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Casa de Cachorro, de Thiago
Villas Boas

Brasil, 2001
Casa
de Cachorro
é um típico filme de observação da cultura
popular marginalizada, objetivada na figura de pessoas que vivem em barracos
debaixo de viadutos. O filme aposta na peculiaridade irônica de
seus personagens centrais (uma família que vive de fazer casas
de madeira para cachorros) como chamariz supostamente suficiente.
É cansativo
ver o cinema de Eduardo Coutinho ser menosprezado nessas ralas imitações
do modelo "entrevista + cotidiano-popular + ineditismo de objeto"
como uma espécie de mérito per si. O filme de Villas Boas
não tem nada em sua estrutura que não tenha se repetido
de forma exaustiva nos últimos anos da produção universitária
documental e aparentemente não teria motivo de destaque.
Durante vinte longos
minutos, assistimos a uma seqüência de depoimentos em tom de
"denúncia leve" que mesclam o discurso da miséria
com o estereótipo da "criatividade popular brasileira".
Seguem-se inúmeros vícios de linguagem e uma boa parcela
da mesma pasmaceira estética que tomou de assalto grande parte
da produção documental brasileira após a canonização
banalizada de Coutinho.
Mas o que faria do
filme de Villas Boas algo além desses clichês de um "engajamento
social apático"?
Simples: o acaso.
É através
de uma eficiente absorção de eventos não pré-direcionados
pelo diretor, que o filme se descobre em suas imagens especiais. Escapa
do discurso estéril através de uma feliz absorção
da genialidade inexprimível da surpresa. Pois não há
nada que justifique o filme de Thiago até que vejamos as duas seguintes
cenas:
Na primeira delas,
apesar da entrevista encaminhada pelo diretor/entrevistador de forma diretiva,
um personagem secundário do filme toma-nos de assalto, interrompe
as perguntas de Thiago com a seguinte questão (essencial):
"Que porra que
tu é?!..." Silêncio...
Resposta com voz
trêmula: "Estudante".
O estranhamento do
personagem diante do antes imparcial personagem do diretor cria um momento
de tensão e diálogo ausente em todo o resto do filme. "Que
porra que tu é?" é sem dúvida a melhor pergunta
de todo o documentário e marca, aí sim, a coragem e o posicionamento
consciente do diretor ao incluí-la em sua edição.
O constrangimento, a falta de respostas satisfatórias para uma
pergunta tão direta e o abraço de consolo do personagem
no diretor-estudante-da-USP, faz dessa curta seqüência a mais
cativante do filme e ganha com certeza a simpatia do crítico.
Por fim, a seqüência
final (filmada algum tempo depois das primeiras) marca com surpresa um
cotidiano que parecia ser ciclicamente imutável: Registra com raro
detalhamento um processo de despejo de uma pequena comunidade de moradores
de rua ao acompanhar a ação da prefeitura paulistana na
pequena favela onde moravam os personagens do filme.
As imagens fortes
das casas de cachorro sendo destruídas e dos barracos sendo derrubados
acabam por justificar todo o acompanhamento maçante do cotidiano
daquelas famílias. É o choque entre aquela destruição
e a recente memória visual do espectador, que dá ao filme
uma dimensão fora de série. Fruto do método de observação
e da habilidade do diretor em sintonizar-se com o acaso, surge novamente
um efeito inestimável de imagens urgentes.
Ver os personagens,
antes simpáticos-exóticos, expulsos de suas casas, retirados
à força de seu espaço, dá ao filme um sentido,
ou muitos sentidos, antes ausentes. Diante da figura dos oficiais da prefeitura,
da câmera que persegue o secretário de Celso Pitta no celular,
nas vozes desesperadas dos personagens, ecoa uma pergunta que vale agora
para cada um daqueles policiais, para os oficiais, para a câmera,
para o público no cinema. Nada ali na imagem será suficiente,
nada que se veja poderá resumir ou explicar.
Afinal de contas:
Que porra que nós (cineastas e espectadores de documentários)
somos?
Felipe Bragança
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