Ana Maria, a Fulaninha

Ana Maria, urna desenvolvida garota de 14 anos, mora com a mãe, uma viúva ainda bonita, num pequeno apartamento perto da Prado Júnior, rua de má reputação em Copacabana. Ela está na idade das indecisões, mas tem boa cabeça e procura superar seus problemas com paciência, cálculos marotos e malícia. Está apredendo depressa como é o mundo dos adultos e busca as melhores formas possíveis do se adaptar a ele. Ja teve, um tanto precocemente, algumas experiências básicas em matéria de amor, sexo e amizade, mas não se deixou arrebatar por nenhuma delas. Nunca foi a um motel.

Suas poucas experiências sexuais, com uns dois rapazes confiáveis, foram meio fortuitas e casuais, em lugares que pintaram no momento, como um vão de oscada, um recanto de praia distante, etc. Ela procura resguardar uma certa imagem de equilíbrio e moderação, embora por vezes pareça excessivamente sonsa. Na verdade, ainda não se decidiu se deve tornar-se urna mulher independente, emancipada, profissional, ou se opta por um casamento que conjugue um tanto de amor, um tanto de conveniência.

Atualmente, tem um álbum com recortes de fotografias de modelos, publicadas em revistas, e procura se preparar, física e mentalmente (embora sem convicção) para tentar uma experiência como modelo fotográfico. Mas não está certa de que seja esse o bom caminho e não está segura de que possui cara, corpo e personalidade para tal aventura. Diante do espelho, sozinha, faz avaliações de seus dotes físicos, imita as posições dos modelos e procura criar algumas diferentes. Nunca fica satisfeita com os resultados.

Tem mais. Anda de bicicleta e corre pela praia regularmente; procura alimentar-se de modo racional, comendo pão integral, cereais, legumes e coisas desse tipo (mas de vez em quando devora enormes pizzas acompanhadas de alguns chopes); ouve muita música popular; lê revista variadas, inclusive quadrinhos (livros mesmo só leu dois), e cuida com muita dedicação de um cachorrinho que estranhamente só come ração importada, o que lhe provoca inúmeras dores de cabeça, pois o dinheiro da mãe é pouco e não permite excessos. Quanto ao colégio, abandonou-o provisoriamente, por causa da "fase" (não sabe explicar que "fase" é essa), mas promete voltar no ano que vem.

Sagaz observadora da comédia humana, vai muito à rua e possui extraordinária facilidade de se comunicar com os outros, desde que lhe agradem. Não está ligada a nenhuma turminha em particular, mas tem bom trânsito em todas elas. O pessoal se divide muito a seu respeito. Os que se julgam mais ousados, acham que ela devia ser menos careta. Os caretas acham-na sonsa, com cara de quem está preparando alguma. De modo geral, todos gostam dela. E não podia ser de outra maneira: ela sabe conquistar as pessoas.

Ana Maria e o surfista
No momento, ela está de namoro incerto com um surfista muito boa praça, desenvolvendo uma relação do tipo faz-que-vai-mas-não-vai, como se quisesse experimentar bem o terreno antes de arriscar um passo. O rapaz, já meio saturado da oferta de garotas, está se acostumando aos poucos à sua presença. A cada dia, sente aumentar a necessidade de tê-la a seu lado. É que ela o está cercando por todos os lados, cuidadosa em seu jogo, sem se precipitar em apostar tudo de uma vez, num só lance. Ainda não deu para ele, que a princípio ficou meio ressentido. Mas depois até que gostou. Passou mesmo a valorizá-la mais e de um modo diferente. Aos poucos, ela vai levando o rapaz a se convencer de que ali está uma garota que poderá ser muito mais do que um simples caso para ele. Nos papos entre osdois, ela o estimula a falar e parece interessadíssima no que ele diz. Ele fala muito. Ela sabe ouvir como ninguém e só fala na hora certa.

O rapaz, por sua vez, não sabe se se dedica ao comércio de pranchas de surfe e coisas similares, que sabe constriru muito bem, ou se segue os conselhos do pai e se prepara para ingressar numa empresa estatal. Como o pai, militar reformado, possui algum prestígio, a segunda opção não é tão difícil. Enquanto não se resolve, e o tempo passa, o rapaz vai mesmo pegando de praia, sol, surfe e namoro.

Ana Maria e a mãe

A mãe de Ana, ainda em forma e bonita, nunca deixou de lamentar a morte do marido, um aviador que morreu num desastre de avião há muitos anos. [em caneta: aviador = flash-back desastre + avião] Para ela, nunca mais será possível encontrar um homem capaz de substituí-lo. Ainda tem vida sexual, meio oculta, insatisfatória e cheia de culpa. Apesar disso, embora raramente, é capaz de uma inesperada trepada dentro de um carro, por exemplo, o que acaba por resultar em pouca satisfação e às vezes numa enxaqueca. Ela não trabalha, vive de pensão deixada pelo marido e, de modo geral, fica muito em casa, ocupando-se com várias coisas.

De modo semelhante à filha, está numa idade difícil, de transição. Não sabe se ainda pode se considerar desejável ou se deve "assumir a velhice". Diante do espelho, nua, faz avaliações sobre seu corpo e oscila entre achar-se em forma e estar mais pra lá do que que pra cá. Quando se sente mais pra "senhora", coloca vestidos discretos, mete-se na cozinha para fazer um bolo, fica meio bestificada diante da televisão, assistindo qualquer bobagem. Quando tende a se achar no páreo, ainda, faz exercícios, recorre a cremes faciais, bota um vestido mais ousado, sai para bater pernas na rua, onde, de vez em quando, descola um homem. Sempre que dá com o nome ou cara do Dr. Pitanguy em alguma revista, quaixa-se dos altos preços da cirurgia plástica e pede à filha que dê opiniões sobre seu rosto: se tem bolsas sob os olhos, se está muito bochechuda, se aquilo ali no canto dos olhos são pés-de-galinha, coisas assim.

Um dia, ela trepa com um cara obsessivo, meio maluco, que começa a persegui-la. É a mulher que precisava, diz o homem. Ela, coitada, fica apavorada e tem a maior mão-de-obra para se livrar dele. A filha acaba se metendo na história e ajuda-a a se libertar "daquela peça".

Até esse episódio, as relações entre mãe e filha eram sinceras, mas os assuntos fundamentais não era abertamente falados, e sim comunicados através de frases oblíquas e olhares misteriosos. As conversas sobre sexo, por exemplo, eram cheias de eufemismos e reticências. A partir daí, todos os assuntos passam a ser abordados francamente e a relação entre as duas amadurece definitivamente. Tornam-se grandes amigas e confidentes.

Os observadores

O jeito entre inocente e malicioso de Ana desperta a atenção de um jornalista em férias, que mora na Prado Júnior, freqüenta os bares do lugar e gosta muito de curtir tipos extravagantes. Romântico mal-disfarçado, fica fascinado pela garota e, em companhia de dois [ou três] amigos, um arquiteto e um fotógrafo, distrai-se em imaginar como pode ser ela, o que faz, o que pensa e sente, o que é na realidade. O arquiteto tende a vê-la de um modo mais romântico. O fotógrafo, que se pretende implacável observador da realidade, tende a vê-la mais para o demoníaco. Seria uma sacana, meio putinha ou putinha mesmo. O jornalista, em aparente fase de indefinição, oscila entre hipóteses antagônicas, mas parece mais preocupado com as especulações em si mesmas do que com a realidade. Na verdade, é um cara que já está começando a achar que a realidade só existe para excitar a imaginação e a fantasia.

Todos eles bebem bem, falam muito, conhecem uma infginidade de pessoas da rua, transam com umas bailarinas alegres, recolhidas nos inferninhos locais, e apreciam pratos fortes e bem feitos (como rabada, cozido, mocotó, etc.). O jornalista e o arquiteto, mais calmos e sensíveis, são apaixonados por cinema. O jornalista, por sinal, possui um vídeo-cassete onde exibe velhos filmes de sua predileção. O fotógrafo, que também gosta do cinema, mas não de maneira apaixonada, gosta de caçoar um pouco dos filmes cultivados pelos outros dois. Uma vez ou outra, por farra, eles também passam uns filmeznhos de sacanagem.

O jornalista nunca viveu com mulher alguma. O arquiteto é separado e de vez em quando a ex-mulher vem aporrinhá-lo com pedidos do dinheiro. O fotógrafo julga-se mais safo: teve várias mulheres, continua tendo outras, "sabe como lidar com elas", nenhuma sacana leva seu dinheiro. Atualmente, está de caso com uma bailarina que trabalha num inferninho ali perto.

Eles e a garota

Tudo o que a garota faz, ou deixa de fazer, diante dos olhares dos três, serve de pretexto para a criação de hipóteses e fantasias variadas. Ela é um mistério para eles. Nem sequer seu nome eles sabem. Por isso a chamam de Fulaninha. [OFF + imagem] Se ela passa com uma roupa mais audaciosa, é porque vai para um programa de sacanagem. Se passa mais discreta, está querendo esconder o jogo. Quando entra na farmácia, pode ser que vá comprar uma aspirina, mas também está com cara de quem vai comprar antibiótico para curar uma gonorréia. As revistas que leva debaixo do braço talvez sejam de moda, mas, se bobear, é revista de putaria mesmo. Ao entrar na agência de automóveis, está tentando conquistar seu proprietário (certamente pelo dinheiro do homem), se é que já não é sua amante. Pior ainda é quando ela entra na agência por uma rua e sai lá do outro lado, em outra rua. É impossível duvidar: tem putaria nessas jogadas. Também pode ser quo ela tenha alguma relação meio obscura, mesmo perversa, com o gerente do cinema, com o dono daquele inferninho ou com o cara do restaurante especializado em carnes [ou açougue], de quem se diz que tem o pau grande e que come tudo quanto é garotinha que não se cuida. Ao passar de bicicleta, sua cara não engana: está usando o selim para umas esfregações gostosas.

Essas especulações em torno da garota às vezes aparecem concretizadas em imagens, quando o jornalista sonha com ela, dormindo ou acordado. Chega a vê-la umas duas vezes na tela de sua televisão, tarde da noite, bêbado e cansado, num daqueles estados em que o cara não sabe direito se está dormindo, acordado ou ficando meio maluco mesmo. Tem até uma noite em que ele perde a noção das coisas e se masturba suavemente, enquanto vê a garota passeando placidamente na tela da televisão. Depois, morre de vergonha e jura que vai diminuir a bebida e fazer um programa de saúde com muitos sucos coloridos.

Abordagem e visita

Um belo dia, depois de seguir a garota e informar-se sobre a vida dela e de sua familia, ele aborda-a para uma conversa, só para acabar com aquelas obsessões. Apresenta-se como tendo sido amigo do seu pai numa companhia de aviação. Com isso, acaba indo parar na casa dela, onde acontece algo de inesperado. A mãe da garota acha-o incrivelmente parecido com o marido e começa a sentir que, através dele, talvez possa ressuscitar um passado que já considerava morto e enterrado para sempre. O jornalista aproveita para tornar aquela fantasia mais perfeita: diz que também perdeu a mulher num desastre horríve, na estrada, quando um ônibus bateu num caminhão. De repente, sem que nenhum dos dois esperasse por isso, começa a esboçar-se um clima romântico tardio. Mas, o jornalista não quer saber daquilo e prepara-se para cair fora.

Rua e personagens

Em meio aos acontecimentos, passam pela história vários personagens curiosos, todos representativos da realidade e do folclore da Prado Júnior. Tem o veterano e querido homossexual. (Clóvis Bornay) que confecciona ricas fantasias de carnaval. Tem as bailarinas dos inferninhos e as meninas sem rumo que querem ingressar na profissão. Tem o comerciante do Beco da Fome que fornece "quentinhas" às dançarinas o putas que acordam tarde. Tem o mulato da farmácia, metido a grande maquilador, que faz a cara das mulheres da noite. Tem a dona do inferninho, mulher madura que se diz descobridora de talentos, mas vive mesmo de explorar garotas bonitas que não têm onde cair mortas. Tem também o homem sem os dois braços, que causa espanto porque ninguém da turma consegue saber como ele faz para trabalhar, comer, tomar banho e, sobretudo, limpar a bunda. Tem, ainda, o jornaleiro, o padeiro, o gerente do cinema, o policial, o travesti, os turistas e alguns outros, todos em aparições rápidas e muitas vezes misteriosas.

O final [?]

O romance entre a garota o o surfista, que não atava nem desatava, é resolvido num belo dia de sol, quando ela descarta suas dúvidas e literalmente arrasta o rapaz para a cama. Era a hora certa e tudo se passa maravilhosamente bem. Todos nós, espectadores, sentimos que os dois ficarão juntos para sempre. E, se não for para sempre, será por muito tempo. De qualquer maneira, parece que aquilo vai dar certo.

Quanto ao jornalista, sua última atitude é supreendente. Ele diz à mãe da garota que vai viajar e que gostaria de deixar com ela seu vídeo-cassete e seus filmes. Como seu sonho era ter um vídeo-cassete, ela exulta. Então, o jornalista parte. Os amigos especulam sobre seu destino. O arquiteto, que pensa saber das coisas, diz que ele jamais voltará. Na rua, a vida continua.

David Neves