O avacalhado Paulo Vilaça


Há algumas caras que encarnam o cinema marginal em sua totalidade; rostos que nos vêm à mente quando pensamos naqueles filmes, pois, ainda que a assinatura deles pertença a seus respectivos diretores, o que fica, para nós, ao fim da sessão, são os berros de Maria Gladys, os trejeitos maliciosos de Helena Ignez, o modo de falar de Pereio ou a malandragem de Paulo Vilaça. Seriam eles atores marginais? É possível. O seu modo de atuar, a sua utilização em filmes como Perdidos e malditos, Sem essa, aranha e Bang-Bang, delas se pode dizer que são a alma desse tipo de cinema, um cinema físico, da exterioridade, do de fora para dentro. Há aí, e nós citamos alguns, uma meia dúzia de atores que são dignos da denominação ator marginal. Poderíamos ainda falar de Hugo Carvana e até de Zé Bonitinho, o perigote das mulheres. Mas em vez de fazer isso, gostaria de me fixar em apenas um deles, que para mim é a mais completa tradução do termo marginal, além de ser o único dos já mencionados a ter morrido. Que seja uma homenagem, então.

É de Paulo Vilaça que falo, como qualquer um já deve ter percebido, e como denuncia o título do artigo. Tendo atuado em diversos filmes, tendo mesmo estreado na tela grande em um filme do cinema marginal, O bandido da luz vermelha, do também estreante Rogério Sganzerla, Vilaça parece possuir todos as qualidades que definem esse tipo mesmo de cinema. Escrachado, expressivo, espontâneo, ele criou uma espécie de persona e a utilizava em todos os seus papéis, ainda que entre elas houvesse nuanças. Sempre o mesmo malandro de fala mole, com o sotaque carregado e os palavrões a explodir de sua boca com uma sonoridade que, como dizia Nelson Rodrigues, só a língua portuguesa é capaz, uma sonoridade transcendente.

A sua biografia faz jus a seus personagens, e, quem sabe, sua vida daria um filme daquele estilo que lhe tornou célebre; formado em letras clássicas, depois de lecionar grego (!) por sete anos, se mandou para a Europa, onde estreou como ator, em teatro, na singela peça Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado. Voltou ao Brasil decidido: seria ator. Há ainda, sobre sua temporada européia, um outro dado incrível: Vilaça teria morado - maritalmente, dirá alguém; realmente não posso afirmar – com Mick Taylor, o baixista dos Rolling Stones.

Em vez de continuar a falar sobre Vilaça, é melhor deixar que ele mesmo faça isso. Segue um trecho de uma entrevista que o ator deu em 1972 para o Jornal do Brasil, à ocasião do lançamento de Revólveres não cospem flores, de Alberto Salvá; ela, melhor do que eu, pode dizer o que Vilaça pensava sobre atuar:

"Consegui agüentar durante dois anos fazendo só cinema. Depois de dois anos (e doze filmes) acabaram-se as economias e tive que voltar a fazer outras coisas que não cinema. A produção cinematográfica entrou também em recesso e meus amigos do cinema saíram todos do Brasil. Não tenho uma perspectiva idealista do trabalho. Não ignoro que a subsistência é um aspecto importante. No meu caso particular, sempre procurei criar condições de trabalho sem que dependesse de um patrão. Em teatro sempre batalhei pelas coisas. Quando saí da Escola de Arte Dramática era um nada, apenas mais um aluno que se formava. Sempre batalhava e consegui entrar numa peça. Vi, então, que as condições ideais de trabalho só podem acontecer se você se junta com pessoas que pensam como você. Em teatro isso sempre deu certo comigo. A gente tem, pois, que encarar as coisas muito objetivamente. Nosso trabalho deve ser enriquecimento pessoal e também sobrevivência. Na verdade, a nossa vida profissional é muito cheia de altos e baixos. A minha foi. A televisão não é uma solução definitiva. Porque embora você goze de uma certa segurança enquanto você está lá dentro, você está em função de a sua imagem ser ou não ser aceita pelo público. A partir do momento em que ela se desgasta ou o público não a sintoniza, você fica no ar. Você não se sente amparado por nenhuma lei, como existe fora do Brasil, de proteção ao ator. Quando você está desempregado, nos Estados Unidos, por exemplo, têm sindicatos que sustentam o indivíduo por algum tempo até descolar outro emprego. Essas coisas não existem no Brasil. Então o que acontece quando nada pinta é que você tem de partir para outras coisas. Dei aula durante sete anos. Eu sei fazer outras coisas. Fui jornalista e já trabalhei em publicidade. Então, meu campo é bem eclético. Se se fechassem todos os teatros e cinemas do Brasil, eu não ficaria sem nada fazer; mas não estaria fazendo as coisas de que gosto mais. O meu meio de expressão é o cinema e o teatro. A televisão, só em determinados momentos. Mas, também não me recuso a fazer. É só pintar. O problema é que a gente trabalha sem muita tranqüilidade e ela é muito importante em trabalho como o nosso. Você tem que ter tranqüilidade para produzir direito. O resto é muito romântico, é muito século passado."

Em verdade, Vilaça, ainda que encarnasse um tipo extremamente pop, o do malandro de que já se falou aqui, nunca foi realmente um ator popular. Os filmes de que participou, em sua maioria, não foram exibidos comercialmente - e é realmente difícil estabelecer uma filmografia sua, desde que participou de diversas produções independentes - e, para o grande público, o ator ficou mesmo conhecido – quando conhecido - como o Paulo O Bofe, ou ainda por uma ponta em Vale Tudo, última novela de que participou, em 1988. Um pouco mais tarde, apenas, em 1992, ele veio a falecer, com 46 anos, em conseqüência de AIDS; foi naquela época em que, se o sujeito emagrecia, logo se dizia que tinha a doença e Vilaça, infelizmente, a contraíra mesmo. Pior pra nós.

Juliana Fausto