O mais precioso dos Wiseman: sobre Violência Doméstica

Wiseman, seu cinema e seu discurso: contradições e descobertas de um documentarista.

1-INTRODUÇÃO: Wiseman no Brasil (2001-2002):

Homenageado da edição 2001 do É Tudo Verdade, Frederick Wiseman atiçou polêmicas ao trazer para os olhos do público brasileiro seu cinema impessoal, frio, baseado na observação onipresente e pouco participativa da câmera.

Escolada na explosão Coutiniana dos documentários brasileiros, grande parte do público do CCBB, formado principalmente por estudantes e documentaristas bissextos, parecia perplexo diante da radical invisibilidade do olhar mecânico que Wiseman trazia à tela.

Não se tratava, de fato, de nada do quê as "boas cabeças" de nosso cinema documental (cito de João Moreira Salles à acadêmica Consuelo Lins) costumam realizar, ou defender. Aparentemente contrária à proposta de Coutinho (originária de uma linhagem de pensamento marxista revisada por releituras contemporâneas de Nietzche), o cinema de Wiseman tentava apostar na pragmática e na multiplicidade de interpretações do público (mas não por parte dos personagens).

Ao contrário de um cinema documental proposto com mensagens claras (a tradição cinemanovista), ou onde o documentarista interagia de forma criativa com seus personagens. Wiseman pouco parecia se importar com as questões Éticas que ditam, de forma mais ou menos flexível, o cinema de entrevistas reinaugurado pela onda Coutinho no cinema brasileiro.

Projetos díspares? Incongruentes? Observação afobada.

Para uma pergunta do público presente no debate de 2001 sobre sua relação com os personagens do filme ("Você volta lá para ver como as pessoas ficaram?..."), Wiseman respondeu: "Não faço cinema para fazer amigos."

Dita assim, essa resposta poderia sair da boca de Eduardo Coutinho – (como já vi, num curso ministrado pelo próprio na Fundição Progresso em 1999). Essa resposta, curiosamente comum, traz à tona a grande diferença de postura entre os cinemas de Eduardo Coutinho e Frederick Wiseman, em relação à grande maioria do cinema documental (assistencialista) ainda presente no Brasil.

Numa figura como João Moreira Salles, a ética do processo fílmico parece se misturar a um moralismo protecionista e talvez por isso, Salles reúna em uma só imagem a força de um renomado documentarista e a fragilidade confusa de seu grande Dilema: como colocar seu olhar no filme sem que seu olhar manipule o olhar do outro?

Ao contrário da força de Coutinho e Wiseman, Salles representa (iconograficamente) toda uma parcela da nova geração de documentaristas brasileiros incapaz de transgredir o papel de bem-feitoria cinematográfica, da superioridade do sentimento de piedade diante das personagens típicas de um país socialmente esquizofrênico como o Brasil.

Além da bondade e da maldade, Wiseman e Coutinho, se não moram juntos no olhar do espectador de documentários, deveriam, ao menos, ser vizinhos de frente...

 

* * *

 

Dessa forma, qualquer questionamento em torno do cinema de Wiseman deve ultrapassar a problematização em-si de suas propostas – tais como as coloca o diretor. Trazer o problema da "ética" em relação ao "uso" dos personagens em seus filmes é não saber enxergar seu cinema com as lentes devidas.

Pois o cinema de Wiseman não trata de personagens, ou de imaginários entrecruzados como o de Coutinho. Wiseman fala de espaços públicos, de normas, do desafio e da fragilidade do Estado diante da diversidade da vida humana. Não são indivíduos subjetivados, os objetos de seu olhar, mas as relações contraditórias entre os mesmos. Sem o romantismo de um Salles ou a visão alegórica de Coutinho, Wiseman é antes de tudo um des-humanista. Em seus filmes, o ser humano não é tratado como uma figura isolada para a qual o diretor deva uma condescendência em especial. Como um re-humanista das imagens, Wiseman vai além de qualquer personagem dividual – é das relações de força que ele trata.

Um cinema imbatível, intangível diante de quaisquer críticas? Nunca. O problema é saber descobrir quais são as perguntas cabíveis:

Deixando de lado os julgamentos morais, desistindo de apontar o lado "mal" de sua proposta, podemos observar, de forma direta, as fragilidades efetivas de seu cinema. Em que momento ele é ineficaz, em que momento se torna inexpressivo e incoerente diante da retórica inabalável de Wiseman.

Porque tais momentos existem... e não são poucos.

Pois se há uma fragilidade em Wiseman (e em Coutinho?...) é justamente a distância que muitas vezes seu discurso coerente guarda de seus produtos finais. Esperto, raposa velha, Wiseman deu um nó no público carioca no debate após a exibição de Titicut Follies, e fez do debate e do filme aquilo que bem queria (ou pretendia...).

 

- Mas, claro, tudo se resumia de fato a uma última pergunta: "Porque, afinal, filmas, mr. Wiseman?" Na resposta, o horror! "For fun". "Por diversão. É melhor do que ser advogado." Não, não pode, mr. Wiseman. Você não quer salvar o mundo, melhorar o planeta, quiçá salvar as baleias pelo menos??? Mr. Wiseman, não acredita que filmes possam mudar o mundo?? "Filmes podem mudar um espectador de cada vez, e mesmo assim não sozinhos." Ou seja, um filme pode ter no máximo o efeito de mais uma informação em meio ao manancial delas que forma cada cabeça de espectador que o assista. (Eduardo Valente in Contracampo 28)

 

- A pergunta é clara: por que você faz cinema? "For fun." É a resposta dada durante o debate com Wiseman e João Moreira Salles, logo após a sessão de Titicut Follies . A decepcionante resposta de Wiseman é um sintoma de toda a contradição que existe entre sua filosofia de realização e seu produto final. Uma resposta que parece reduzir radicalmente toda a dimensão política da sua obra, trazendo à tona um discurso dissonante a Titicut Follies. Um discurso que defende uma subjetividade do espectador enquanto produtor de um sentido para seu filme; cada um deles tiraria uma conclusão sobre o tema, porém o próprio filme é extremamente limitado na gama de conclusões que pode oferecer. Wiseman não quer ser objetivo, porém, seu filme reflete uma postura distanciada e totalizante sobre uma instituição. (Marina Meliande in Contracampo 28)

Está no nó entre essas duas observações extremamente pertinentes a possibilidade de um real questionamento do cinema de Wiseman:

Até que ponto o filme projetado condiz com a belíssima retórica do diretor? Será que a autoconsciência das limitações cinematográficas, que Wiseman carrega com firmeza (Valente), consegue alcançar o público e fazer parte da significação do filme (Meliande)? A resposta parece ser negativa, ao menos na maioria dos casos. É preciso saber separar o discurso de um diretor da verdade exposta em seus filmes.

Titucut Follies sobreviveria (com a mesma força) sem a muleta eloqüente de seu diretor?

Vejamos:

 

2- TRÊS PERGUNTAS PARA FREDERICK WISEMAN:

 

  • Wiseman diz (em diversas entrevistas) considerar o filme documental como o resultado de um trabalho subjetivo de montagem, isso é, um trabalho não objetivo e/ou imparcial em absoluto. Desse modo, teria Wiseman procurado que tal "postura criativa" estivesse explicitada no corpo dos filmes? Seus filmes procuram auto-refletir essas idéias de não-objetividade e torná-las alcançáveis ao público? Onde, em sua obra, Wiseman estaria tentando fazer com que o público (sem ter tido contato direto com sua pessoa, seja numa palestra ,seja numa entrevista) encontrasse as pistas de que seus filmes são trabalhos subjetivos e parciais, e não uma tentativa de catalogação objetiva das realidades tratadas?

  • Em um depoimento no programa de Tv "Roda Viva" (TVE –2001), Wiseman expôs a particularidade de seu método de realização como, por vezes, um limitador temático – isso é, nem todos os temas poderiam ser tratados por tal método. Dessa forma: Wiseman já teria se visto, em algum momento, interessado por uma temática da qual quisesse tratar mas sobre a qual tenha se sentido impotente diante de tal objeto? Num caso como esse, mesmo que hipotético, Wiseman consideraria seu método uma fórmula intocável ou poderia haver concessões formais em função da temática?

  • A montagem dos filmes de Wiseman procura ser um processo conscientemente subjetivo na busca de uma certa imparcialidade final que permita ao público "chegar às suas próprias conclusões". Dessa forma, como se daria (na sala de montagem) sua relação com essa tênue margem entre a subjetividade e a imparcialidade almejada: como chegar à liberdade do espectador se pautando em uma subjetividade restrita?

Em suma, a grande questão é: os filmes de Wiseman conseguem fazer com que o espectador participe do mesmo jogo que o diretor? O espectador entra em contato com essa criação subjetivada de uma instituição, sempre maior do que qualquer observador?

Quando Wiseman se cala diante de seus personagens, cria um tal status de observador não-interativo que torna quase invisível o trabalho criativo da montagem. Daí, talvez, as perguntas do público querendo saber sobre "ética"... Porque são poucas as pistas no filme que indicam seu suposto desejo de não-objetividade, de não-denúncia. O efeito no espectador é um, o discurso do diretor é outro – os defensores de Wiseman compram o segundo, os detratores observam o primeiro.

Em exemplos claros como High School ou Titicut Follies, fica evidente a mensagem final negativa em relação aos espaços tratados e é difícil não considerar sua montagem uma repetição da tradição invisível-indutiva. Não se trata de questionar a mensagem do filme, mas a forma como Wiseman recorta seu objeto. Wiseman manipula o olhar do público maquiando-se numa curiosa "imparcialidade subjetiva". O problema em Wiseman não é o sonho (que o diretor não carrega) de alcançar uma objetividade final, mas a maneira como essa aceitação das limitações de seu olhar não chega ao entendimento sensível do espectador.

A falta de discurso off, ou da presença do diretor na imagem, ficam escondidas no corpo fílmico e dependem assim de uma pré-consideração por parte do público. Não há pistas suficientes nos filmes de Wiseman que nos deixem em aberto o jogo de criação do filme. A própria informação da quantidade de negativo filmado e do tempo decorrido naqueles espaços é omitida no filme, criando a ilusão de uma simultaneidade que traz sentidos novos ao filme sem se assumir como uma proposta de síntese.

Marina Meliande declarou o método de Wiseman como sua maior qualidade e sua maior fraqueza – filmar sem pesquisa prévia na proporção de 30 para 1 (isso é, utiliza 1 de cada 30 horas filmadas!) e depois selecionar os "melhores momentos", daria ao diretor uma liberdade tão grande de criação que desestabilizaria a limitação saudável, comum aos realizadores de filmes documentais.

Num filme como Hospital toda a cadência das imagens e o encaminhamento de ações é criada pelo olhar de Wiseman sobre suas dezenas de horas filmadas. A marca maior dessa liberdade frágil do diretor, é seu sintomático esquecimento dos momentos de tempos mortos das instituições retratadas. A tensão cinematográfica de Wiseman, tende sempre, naturalmente, a um recorte intenso do espaço. Wiseman ignora os silêncios e os momentos de não-eventos.

O recorte de Wiseman sobre as instituições passa a ser cada vez mais subjetivo e unívoco, quanto mais o diretor se dá alternativas de imagens. Fica fácil demais contar aquilo que lhe parece mais interessante, chocante, significativo. Ignorar o que não presta.

Pois qual o recorte de um Titiuct Follies (1o filme –1967) senão um apinhado de imagens chocantes que tendem a condenar o espaço manicomial com a morte crua de um de seus personagens? Mostrar internos num hospital psiquiátrico numa projeção de 2 horas e nunca se aproximar de nenhum deles (como se aproximou de seus outros personagens) faz de Titicut um curioso, porém equivocado, exercício de denúncia e um pensamento sobre a instituição ainda incapaz de perceber seus meandros. A narrativa de Titicut é construída sobre as imagens de um manicômio? Sim. Mas não há NADA em sua estrutura que diga respeito ao dia-a-dia daquele espaço. O que há de institucional no encaminhamento narrativo de Titicut Follies? Os elementos podem ser, sim, captados ali, mas e sua estrutura, sua forma, seu ritmo?

Essa carência de um objeto mais ativo (como as entrevistas do método Coutinho) – que induza uma forma ao filme e force o diretor a confrontar diretamente o discurso institucional com suas observações críticas – são as marcas que mais fragilizam a coerência de usa obra. Filiando-a, em seus primeiros trabalhos, à tradição do ilusionismo racional-reducionista (condenada pelo próprio diretor):

High School (2o filme – 1968): a falta de estrutura narrativa no cotidiano da escola faz do filme um painel sem rumo e aparentemente incômodo diante de sues personagens. No fim, numa cena crítica e explícita Wiseman mostra uma carta de um jovem combatente do Vietnam, agradecendo a tudo que aprendeu ali, na escola. Essa súbita postura crítica por parte do diretor surge de forma incoerente com as observações distanciadas que marcam todo o filme. Talvez, por se tratar do filme mais curto de Wiseman (73 min.), High School tenha sido incapaz de tentar esboçar um encaminhamento do percurso de um aluno dentro da escola – o salto do cotidiano escolar para a leitura chocante dessa carta é tratada de forma cínica por um filme que se mostrou desde o início como um painel imparcial sobre o dia-a-dia da escola. Wiseman é inexpressivo ao tentar desenhar os processos de formação da juventude norte-americana dos anos 60 e tenta ser genial por uma só cena.

Law and Order (3o filme - 1969): nesse caso, repete-se a falta de uma narrativa que de fato se estruture no dia-a-dia de um policial – ou de uma delegacia – o filme se limita a um apanhado de momentos de ação policial em que, apesar de tentar pinçar algumas cenas de impotência policial (como a última e melhor das cenas), acaba sendo um painel de boas ações policiais, com os oficiais lidando de forma sempre "justa" diante da câmera. Apesar de não cair no reducionismo de Titicut e High School, Law and Order sofre com uma observação pouco expressiva, sutil demais de seu objeto. Não há discurso claro por parte dos policias para que Wiseman pudesse exercitar seu olhar crítico de forma mais convincente – o filme se transmuta em mero retrato e cai na perigosa máscara da imparcialidade. Talvez escaldado pelas experiências anteriores, Wiseman tenha dado esse passinho atrás em sua ironia induzida, mas acaba não indo muito longe.

Hospital (4o filme- 1969): fazendo par com a postura painel-descritiva de Law and Order, Hospital repete a falta de rumo diante da instituição e acaba sendo um retrato por demais protecionista do dia-a-dia de um hospital norte-americano. Pensando apenas em estruturar-se sobre a diversidade de eventos do hospital, o filme não vai muito longe, transforma o espaço dos ambulatórios num frenesi de eventos (com ecos num E.R., do Warner Channel) que se conclui como um elogio falsamente imparcial diante de seu objeto. Wiseman não acompanha todos os ciclos de um hospital, mas apenas aqueles que são atrativos ao olhar do espectador – internações, por exemplo, distantes da agitação cinematográfica, são ignoradas pelo diretor...Cheio de lacunas e reducionista, Hospital mostra um Wiseman no ápice da crise pós-autocrítica de seus primeiros filmes.

 

* * *

 

Num sentido geral, essas 4 primeiras obras do final da década de 60, trazem as marcas de uma encruzilhada:

De que forma pode-se dialogar criticamente com o que se está filmando, sem ditar uma verdade unívoca sobre os eventos - como se deixar envolver com o que se filma sem cair no didatismo panfletário ou, por outro lado, na timidez descritiva ?

Como encontrar as brechas da realidade onde ela se deixe mostrar em suas contradições e dilemas? Impossível?

Na década seguinte, Wiseman tentaria uma resposta:

 

3- TRANSIÇÃO:

Dois filmes da década de 70 representam na obra de Wiseman o que observo como um apuro do diretor na escolha de seus objetos e no modo de se colocar a dispor da realidade. Se antes Wiseman era quem ditava solitário o painel-rítmico de seus filmes, em Welfare e Juvenile Court isso muda. O diretor descobre, no espaço estatal das cortes juvenis e da previdência social, o papel narrativo-rítmico das instituições. Passa, então, a não apenas observar seus eventos de forma panorâmica, mas introduzindo-os nas articulações diversas de seus funcionamentos. Sobre a inflexibilidade dessas normas e suas impotências, é que Wiseman encontrará as brechas.

Deixando-se levar criticamente pelo ritmo e pelos movimentos estruturais daqueles espaços, Wiseman passa a descobrir suas críticas não num choque induzido (como em Titicut), mas na própria observação irônica do formalismo ditado por aqueles espaços. É na superexploração de suas formas que esses espaços começam a deixar escapar, nas entrelinhas, suas fragilidades. Wiseman desiste do painel mosaical, e investe na observação meticulosa não dos eventos isolados, mas das engrenagens da vida social. Como as coisas funcionam (e falham...) passa a ser mais importante do que a descrição reducionista dos próprios eventos.

Essa virada de mesa de Wiseman, introduz pela primeira vez a grande capacidade do diretor de abster-se do julgamento moral direto, e partir para uma observação crítica (não negativista) das realidades filmadas. Wiseman deixa de ter que induzir a realidade ao erro...e passa a descobrir nos processos sócias suas próprias manchas.

Algumas falhas talvez ainda persistam:

O discurso das personagens parece estar cerceado demais pela câmera e seus atos controlados reduzem as possibilidades do filme de encontrar suas brechas. Apesar das coerentes palavras do diretor sobre a não-influência da câmera no personagem social de seus objetos, novamente seu cinema se enfraquece por não saber dividir com o público essa consciência irônica sobre o teatro social armado para a câmera.

Dos dois filmes, Welfare é, certamente, mais bem resolvido nesse quesito, conseguindo em algumas cenas expressar o melhor do olhar crítico do diretor – mesmo assim, esse processo é por demais sutil e se deixa mostrar apenas em pequenas cenas (geniais...).

Seria o público capaz de embarcar no mesmo jogo de sutilezas cinematográficas carregadas pelo diretor ? A dúvida persistia.

Foi com Violência Doméstica que a cartada final foi dada.

 

4 – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (Domestic Violence, EUA, 2001) – uma crítica.

Violência Doméstica é um filme de Frederick Wiseman. Um documentário pragmático e observador, crítico e irônico, como algumas das cenas mais geniais de suas obras anteriormente exibidas no Brasil. Mas, se nas obras anteriores persistiam as incoerências filme x discurso e a dificuldade de compartilhar com o público do tom exato de seu olhar, em Violência Doméstica, Wiseman alcança o máximo de sua expressão cinematográfica e apara as arestas de seu trabalho com uma assustadora perfeição.

Mas o que haveria de novo no filme para fazê-lo uma obra especial em relação aos outros filmes do diretor? O que faria desse filme um passo ainda mais firme do olhar certeiro de Wiseman sobre o Estado americano? A sábia escolha de seu objeto:

"Violência Doméstica". Colocadas assim, essas duas palavras carregam diversos significados e talvez várias interpretações. De quê violência doméstica Wiseman estaria tratando?

A grande sacada do filme de Wiseman é descobrir nesse termo jurídico e todo o aparato estatal em torno de seu combate, a alegoria perfeita para a síntese de todo o seu trabalho. Porque em nenhum filme anterior, Wiseman alcançara metáfora tão exata para seu olhar diante das instituições sociais de poder e controle.

Partindo da disputa íntima (doméstica) de lares da periferia de Miami, Wiseman traça um caminho preciso entre os efeitos mais diretos da violência e dos instrumentos estatais na tentativa de dar ordem àqueles pequenos exemplos de caos.

Soma-se a narrativa individualizada das personagens que buscam ajuda num albergue para mulheres violentadas (The Spring) e os meandros institucionais no combate a esse problema (que afetaria 50% da população norte-americana). Dessa forma, Wiseman consegue o ápice daquilo já havia sido ensaiado em Welfare e Juvenile Court: deixar-se levar pela narrativa inerente ao olhar institucional dos eventos. É no modo como o Estado tenta dar ordem ao caos que Wiseman se projeta.

A cada cena, o que vemos não é um Wiseman caminhando de forma arbitrária (como em Titicut Follies); em Violência Doméstica, o diretor se deixa levar pelo ritmo inerente aquele espaço e trabalha seus comentários de imagens justamente na montagem irônica daqueles eventos. O modo como associa o discurso unilateral das atendentes do albergue a as diferentes dificuldades em dar efetividade à ordem, é o segredo da contundência do filme.

Mais rico do que as experiências anteriores de Wiseman, Violência descobriu naquele espaço um dos únicos lugares em que as não-entrevistas se tornam imunes ao enfraquecimento dos discursos diante da câmera. Como se trata justamente do "lugar social" do discurso e da denúncia, as personagens estão sempre mais à vontade diante do filme e tomam para si a postura de narradores. Com essa participação consciente das personagens na narração do filme, ficam ainda mais fortes todas as interferências do diretor. Wiseman inventa o equilíbrio perfeito entre autoria indutiva e liberdade de interpretação.

Pois se Wiseman mantém as sutilezas desenvolvidas em Welfare e Juvenile (respostas ao panfletarismo óbvio de Titucut...), aqui, essa característica expressiva da instituição, faz das interferências do diretor o mais alto grau da montagem de comentários.

A cena das atendentes nos telefonemas do albergue, dando as primeiras orientações às mulheres vítimas, é o comentário ideal sobre a distância entre a vida doméstica e a ordem estatal.

Nos depoimentos espontâneos das mulheres (pois se trata da primeira vez que cada uma delas está abrindo suas histórias) são encontradas pérolas sobre o modo de vida norte-americano, seus desejos, suas dificuldades. Observar aquelas mulheres descobrindo em seus parceiros e amantes, verdadeiros inimigos dentro de casa é um processo doloroso e que é retratado por Wiseman com a elegância crua que nenhum diretor poderia repetir..

As imagens de violência mais diretas, como a da mulher com a boca cortada, não são objeto de sensacionalismo...mais de um olhar curioso e carinhoso (não piedoso) sobre aquelas personagens. Wiseman, especialista maior em documentar as instituições americanas, faz de Violência Doméstica um olhar crítico e delicado sobre a destruição das mais básicas das instituições americanas: o casamento e a família mononuclear.

Ao descobrir no albergue The Spring a expressão maior dessa tentativa de ordenação estatal dos terrores mais íntimos da vida social, Wiseman dá um golpe certeiro e toca fundo numa ferida impassível de ser ignorada.

As relações de poder e controle narradas pelos orientadores do albergue são ironicamente observadas também na relação entre os mesmos e as vítimas. Wiseman mostra como se dá a educação dada às crianças, como é a explicação teórica dada às mulheres sobre as causas do problema, e cita de forma exata a dificuldade de uma mulher em entender o que exatamente seria essa tal "violência doméstica":

"Foi a polícia que me falou que aquilo era violência doméstica!...eu não sabia que era esse o nome usado."

As normatizações das relações humanas são observadas de um modo cauteloso onde nada se conclui por inteiro (não há lição moral cabível). Pelo contrário, Wiseman começa seu filme pelos efeitos da tal Violência Doméstica, se encaminha para a instituição que a combate e o fecha como que numa espiral:

Os últimos 20 minutos do filmes voltam às periferias de Miami mas não mais nos mostram as conseqüências das crises familiares, mas a ebulição anterior à explosão. Diante de um policial impotente, Wiseman nos mostra ver os rastros do que ainda está por vir, na figura de um casal:

O homem quer expulsar a mulher de casa, a mulher quer continuar ("e tem esse direito", diz o policial). Naquela troca de ofensas e farpas se anuncia mais um evento que poderia ilustrar o filme, mas Wiseman se cala aí. Termina o filme assim, nessa volta incompleta da espiral em que o caos insiste em escapar entre os dedos da ordem, em que o policial nada pode fazer e a vida não se deixa encaixar no controle do estado.

Wiseman questiona o estado não como quem procura um culpado, mas como quem mostra, cautelosamente, as impossibilidades de se resumir as relações humanas aos moldes institucionais da vida comum, da vida socialmente ajustada.

Consegue, assim, fazer um filme que funciona de forma gritante para ambos os lados da questão:

Para as vítimas e praticantes da violência; e para os profissionais da área em sua batalha diária no combate a um problema gênese da vida social norte-americana. Violência Doméstica é um filme completo: funciona como ferramenta de conscientização, como objeto de estudo dos agentes sociais e como grande metáfora das relações de poder e controle.

O fato de o próprio espaço do The Springs, conter, em si mesmo, um certo encaminhar de fatos que limita Wiseman, intensifica a tensão dos discursos e a liberdade interpretativa fica mais viva – o choque entre a narrativa direta da instituição e a montagem de Wiseman gera um efeito devastador.

Finalmente, o baixinho de orelhas curvadas, encontrou um objeto à sua altura...

Um grande filme. Um documentário poderoso. Completo. Perfeito. Une a participação crítica do espectador à possibilidade do autor interpretar subjetivamente o objeto filmado; funde sua direção não-participativa à força criativa de seus personagens; escapa da imparcialidade estéril e desvenda a forças das verdades despretensiosas. Descobre em suas lacunas e nas brechas de seu objeto a força de uma realidade incontrolável e instigante para o público.

* * *

Síntese de quase trinta anos de um trabalho incansável de observação social e construção fílmica, Wiseman fez de Violência Doméstica um passo adiante de virtuosismo e perícia. Soube como nenhum outro documentarista fazer de sua obra uma grande saga de realidades circulares, um organismo vivo e incontrolável, mas sobre o qual se tenta mostrar aquilo que é visível. Os fragmentos que lhe escapam à pele.

Como o som recorrente de uma mesma nota...uma mesma tecla, uma mesma música... Cada vez tocada com maior perfeição.

Felipe Bragança.