O
mais precioso dos Wiseman: sobre Violência Doméstica
Wiseman,
seu cinema e seu discurso: contradições e descobertas de
um documentarista.
1-INTRODUÇÃO:
Wiseman no Brasil (2001-2002):
Homenageado
da edição 2001 do É Tudo Verdade, Frederick Wiseman
atiçou polêmicas ao trazer para os olhos do público
brasileiro seu cinema impessoal, frio, baseado na observação
onipresente e pouco participativa da câmera.
Escolada
na explosão Coutiniana dos documentários brasileiros, grande
parte do público do CCBB, formado principalmente por estudantes
e documentaristas bissextos, parecia perplexo diante da radical invisibilidade
do olhar mecânico que Wiseman trazia à tela.
Não
se tratava, de fato, de nada do quê as "boas cabeças"
de nosso cinema documental (cito de João Moreira Salles à
acadêmica Consuelo Lins) costumam realizar, ou defender. Aparentemente
contrária à proposta de Coutinho (originária de uma
linhagem de pensamento marxista revisada por releituras contemporâneas
de Nietzche), o cinema de Wiseman tentava apostar na pragmática
e na multiplicidade de interpretações do público
(mas não por parte dos personagens).
Ao contrário
de um cinema documental proposto com mensagens claras (a tradição
cinemanovista), ou onde o documentarista interagia de forma criativa com
seus personagens. Wiseman pouco parecia se importar com as questões
Éticas que ditam, de forma mais ou menos flexível, o cinema
de entrevistas reinaugurado pela onda Coutinho no cinema brasileiro.
Projetos
díspares? Incongruentes? Observação afobada.
Para
uma pergunta do público presente no debate de 2001 sobre sua relação
com os personagens do filme ("Você volta lá para ver
como as pessoas ficaram?..."), Wiseman respondeu: "Não
faço cinema para fazer amigos."
Dita
assim, essa resposta poderia sair da boca de Eduardo Coutinho – (como
já vi, num curso ministrado pelo próprio na Fundição
Progresso em 1999). Essa resposta, curiosamente comum, traz à tona
a grande diferença de postura entre os cinemas de Eduardo Coutinho
e Frederick Wiseman, em relação à grande maioria
do cinema documental (assistencialista) ainda presente no Brasil.
Numa
figura como João Moreira Salles, a ética do processo fílmico
parece se misturar a um moralismo protecionista e talvez por isso, Salles
reúna em uma só imagem a força de um renomado documentarista
e a fragilidade confusa de seu grande Dilema: como colocar seu olhar no
filme sem que seu olhar manipule o olhar do outro?
Ao contrário
da força de Coutinho e Wiseman, Salles representa (iconograficamente)
toda uma parcela da nova geração de documentaristas brasileiros
incapaz de transgredir o papel de bem-feitoria cinematográfica,
da superioridade do sentimento de piedade diante das personagens típicas
de um país socialmente esquizofrênico como o Brasil.
Além
da bondade e da maldade, Wiseman e Coutinho, se não moram juntos
no olhar do espectador de documentários, deveriam, ao menos, ser
vizinhos de frente...
* * *
Dessa
forma, qualquer questionamento em torno do cinema de Wiseman deve ultrapassar
a problematização em-si de suas propostas – tais como as
coloca o diretor. Trazer o problema da "ética" em relação
ao "uso" dos personagens em seus filmes é não
saber enxergar seu cinema com as lentes devidas.
Pois
o cinema de Wiseman não trata de personagens, ou de imaginários
entrecruzados como o de Coutinho. Wiseman fala de espaços públicos,
de normas, do desafio e da fragilidade do Estado diante da diversidade
da vida humana. Não são indivíduos subjetivados,
os objetos de seu olhar, mas as relações contraditórias
entre os mesmos. Sem o romantismo de um Salles ou a visão alegórica
de Coutinho, Wiseman é antes de tudo um des-humanista. Em seus
filmes, o ser humano não é tratado como uma figura isolada
para a qual o diretor deva uma condescendência em especial. Como
um re-humanista das imagens, Wiseman vai além de qualquer personagem
dividual – é das relações de força que ele
trata.
Um cinema
imbatível, intangível diante de quaisquer críticas?
Nunca. O problema é saber descobrir quais são as perguntas
cabíveis:
Deixando
de lado os julgamentos morais, desistindo de apontar o lado "mal"
de sua proposta, podemos observar, de forma direta, as fragilidades efetivas
de seu cinema. Em que momento ele é ineficaz, em que momento se
torna inexpressivo e incoerente diante da retórica inabalável
de Wiseman.
Porque
tais momentos existem... e não são poucos.
Pois
se há uma fragilidade em Wiseman (e em Coutinho?...) é justamente
a distância que muitas vezes seu discurso coerente guarda de seus
produtos finais. Esperto, raposa velha, Wiseman deu um nó no público
carioca no debate após a exibição de Titicut Follies,
e fez do debate e do filme aquilo que bem queria (ou pretendia...).
-
Mas, claro, tudo se resumia de fato a uma última pergunta: "Porque,
afinal, filmas, mr. Wiseman?" Na resposta, o horror! "For fun". "Por diversão.
É melhor do que ser advogado." Não, não pode, mr.
Wiseman. Você não quer salvar o mundo, melhorar o planeta,
quiçá salvar as baleias pelo menos??? Mr. Wiseman, não
acredita que filmes possam mudar o mundo?? "Filmes podem mudar um espectador
de cada vez, e mesmo assim não sozinhos." Ou seja, um filme pode
ter no máximo o efeito de mais uma informação em
meio ao manancial delas que forma cada cabeça de espectador que
o assista. (Eduardo Valente in Contracampo 28)
-
A pergunta é clara: por que você faz cinema? "For fun." É
a resposta dada durante o debate com Wiseman e João Moreira Salles,
logo após a sessão de Titicut Follies . A decepcionante
resposta de Wiseman é um sintoma de toda a contradição
que existe entre sua filosofia de realização e seu produto
final. Uma resposta que parece reduzir radicalmente toda a dimensão
política da sua obra, trazendo à tona um discurso dissonante
a Titicut Follies. Um discurso que defende uma subjetividade do espectador
enquanto produtor de um sentido para seu filme; cada um deles tiraria
uma conclusão sobre o tema, porém o próprio filme
é extremamente limitado na gama de conclusões que pode oferecer.
Wiseman não quer ser objetivo, porém, seu filme reflete
uma postura distanciada e totalizante sobre uma instituição.
(Marina Meliande in Contracampo 28)
Está
no nó entre essas duas observações extremamente pertinentes
a possibilidade de um real questionamento do cinema de Wiseman:
Até
que ponto o filme projetado condiz com a belíssima retórica
do diretor? Será que a autoconsciência das limitações
cinematográficas, que Wiseman carrega com firmeza (Valente), consegue
alcançar o público e fazer parte da significação
do filme (Meliande)? A resposta parece ser negativa, ao menos na maioria
dos casos. É preciso saber separar o discurso de um diretor da
verdade exposta em seus filmes.
Titucut
Follies sobreviveria (com a mesma força) sem a muleta eloqüente
de seu diretor?
Vejamos:
2- TRÊS
PERGUNTAS PARA FREDERICK WISEMAN:
-
Wiseman
diz (em diversas entrevistas) considerar o filme documental como o
resultado de um trabalho subjetivo de montagem, isso é, um
trabalho não objetivo e/ou imparcial em absoluto. Desse modo,
teria Wiseman procurado que tal "postura criativa" estivesse
explicitada no corpo dos filmes? Seus filmes procuram auto-refletir
essas idéias de não-objetividade e torná-las
alcançáveis ao público? Onde, em sua obra, Wiseman
estaria tentando fazer com que o público (sem ter tido contato
direto com sua pessoa, seja numa palestra ,seja numa entrevista) encontrasse
as pistas de que seus filmes são trabalhos subjetivos e parciais,
e não uma tentativa de catalogação objetiva das
realidades tratadas?
-
Em
um depoimento no programa de Tv "Roda Viva" (TVE –2001),
Wiseman expôs a particularidade de seu método de realização
como, por vezes, um limitador temático – isso é, nem
todos os temas poderiam ser tratados por tal método. Dessa
forma: Wiseman já teria se visto, em algum momento, interessado
por uma temática da qual quisesse tratar mas sobre a qual tenha
se sentido impotente diante de tal objeto? Num caso como esse, mesmo
que hipotético, Wiseman consideraria seu método uma
fórmula intocável ou poderia haver concessões
formais em função da temática?
-
A
montagem dos filmes de Wiseman procura ser um processo conscientemente
subjetivo na busca de uma certa imparcialidade final que permita ao
público "chegar às suas próprias conclusões".
Dessa forma, como se daria (na sala de montagem) sua relação
com essa tênue margem entre a subjetividade e a imparcialidade
almejada: como chegar à liberdade do espectador se pautando
em uma subjetividade restrita?
Em suma,
a grande questão é: os filmes de Wiseman conseguem fazer
com que o espectador participe do mesmo jogo que o diretor? O espectador
entra em contato com essa criação subjetivada de uma instituição,
sempre maior do que qualquer observador?
Quando
Wiseman se cala diante de seus personagens, cria um tal status de observador
não-interativo que torna quase invisível o trabalho criativo
da montagem. Daí, talvez, as perguntas do público querendo
saber sobre "ética"... Porque são poucas as pistas
no filme que indicam seu suposto desejo de não-objetividade, de
não-denúncia. O efeito no espectador é um, o discurso
do diretor é outro – os defensores de Wiseman compram o segundo,
os detratores observam o primeiro.
Em exemplos
claros como High School ou Titicut Follies, fica evidente
a mensagem final negativa em relação aos espaços
tratados e é difícil não considerar sua montagem
uma repetição da tradição invisível-indutiva.
Não se trata de questionar a mensagem do filme, mas a forma como
Wiseman recorta seu objeto. Wiseman manipula o olhar do público
maquiando-se numa curiosa "imparcialidade subjetiva". O problema
em Wiseman não é o sonho (que o diretor não carrega)
de alcançar uma objetividade final, mas a maneira como essa aceitação
das limitações de seu olhar não chega ao entendimento
sensível do espectador.
A falta
de discurso off, ou da presença do diretor na imagem, ficam
escondidas no corpo fílmico e dependem assim de uma pré-consideração
por parte do público. Não há pistas suficientes nos
filmes de Wiseman que nos deixem em aberto o jogo de criação
do filme. A própria informação da quantidade de negativo
filmado e do tempo decorrido naqueles espaços é omitida
no filme, criando a ilusão de uma simultaneidade que traz sentidos
novos ao filme sem se assumir como uma proposta de síntese.
Marina
Meliande declarou o método de Wiseman como sua maior qualidade
e sua maior fraqueza – filmar sem pesquisa prévia na proporção
de 30 para 1 (isso é, utiliza 1 de cada 30 horas filmadas!) e depois
selecionar os "melhores momentos", daria ao diretor uma liberdade
tão grande de criação que desestabilizaria a limitação
saudável, comum aos realizadores de filmes documentais.
Num filme
como Hospital toda a cadência das imagens e o encaminhamento
de ações é criada pelo olhar de Wiseman sobre suas
dezenas de horas filmadas. A marca maior dessa liberdade frágil
do diretor, é seu sintomático esquecimento dos momentos
de tempos mortos das instituições retratadas. A tensão
cinematográfica de Wiseman, tende sempre, naturalmente, a um recorte
intenso do espaço. Wiseman ignora os silêncios e os momentos
de não-eventos.
O recorte
de Wiseman sobre as instituições passa a ser cada vez mais
subjetivo e unívoco, quanto mais o diretor se dá alternativas
de imagens. Fica fácil demais contar aquilo que lhe parece mais
interessante, chocante, significativo. Ignorar o que não presta.
Pois
qual o recorte de um Titiuct Follies (1o filme –1967)
senão um apinhado de imagens chocantes que tendem a condenar o
espaço manicomial com a morte crua de um de seus personagens? Mostrar
internos num hospital psiquiátrico numa projeção
de 2 horas e nunca se aproximar de nenhum deles (como se aproximou de
seus outros personagens) faz de Titicut um curioso, porém
equivocado, exercício de denúncia e um pensamento sobre
a instituição ainda incapaz de perceber seus meandros. A
narrativa de Titicut é construída sobre as imagens
de um manicômio? Sim. Mas não há NADA em sua estrutura
que diga respeito ao dia-a-dia daquele espaço. O que há
de institucional no encaminhamento narrativo de Titicut Follies?
Os elementos podem ser, sim, captados ali, mas e sua estrutura, sua forma,
seu ritmo?
Essa
carência de um objeto mais ativo (como as entrevistas do método
Coutinho) – que induza uma forma ao filme e force o diretor a confrontar
diretamente o discurso institucional com suas observações
críticas – são as marcas que mais fragilizam a coerência
de usa obra. Filiando-a, em seus primeiros trabalhos, à tradição
do ilusionismo racional-reducionista (condenada pelo próprio diretor):
High
School (2o filme – 1968): a falta de estrutura narrativa
no cotidiano da escola faz do filme um painel sem rumo e aparentemente
incômodo diante de sues personagens. No fim, numa cena crítica
e explícita Wiseman mostra uma carta de um jovem combatente do
Vietnam, agradecendo a tudo que aprendeu ali, na escola. Essa súbita
postura crítica por parte do diretor surge de forma incoerente
com as observações distanciadas que marcam todo o filme.
Talvez, por se tratar do filme mais curto de Wiseman (73 min.), High
School tenha sido incapaz de tentar esboçar um encaminhamento
do percurso de um aluno dentro da escola – o salto do cotidiano escolar
para a leitura chocante dessa carta é tratada de forma cínica
por um filme que se mostrou desde o início como um painel imparcial
sobre o dia-a-dia da escola. Wiseman é inexpressivo ao tentar desenhar
os processos de formação da juventude norte-americana dos
anos 60 e tenta ser genial por uma só cena.
Law
and Order (3o filme - 1969): nesse caso, repete-se a falta
de uma narrativa que de fato se estruture no dia-a-dia de um policial
– ou de uma delegacia – o filme se limita a um apanhado de momentos de
ação policial em que, apesar de tentar pinçar algumas
cenas de impotência policial (como a última e melhor das
cenas), acaba sendo um painel de boas ações policiais, com
os oficiais lidando de forma sempre "justa" diante da câmera.
Apesar de não cair no reducionismo de Titicut e High
School, Law and Order sofre com uma observação
pouco expressiva, sutil demais de seu objeto. Não há discurso
claro por parte dos policias para que Wiseman pudesse exercitar seu olhar
crítico de forma mais convincente – o filme se transmuta em mero
retrato e cai na perigosa máscara da imparcialidade. Talvez escaldado
pelas experiências anteriores, Wiseman tenha dado esse passinho
atrás em sua ironia induzida, mas acaba não indo muito longe.
Hospital
(4o filme- 1969): fazendo par com a postura painel-descritiva
de Law and Order, Hospital repete a falta de rumo diante
da instituição e acaba sendo um retrato por demais protecionista
do dia-a-dia de um hospital norte-americano. Pensando apenas em estruturar-se
sobre a diversidade de eventos do hospital, o filme não vai muito
longe, transforma o espaço dos ambulatórios num frenesi
de eventos (com ecos num E.R., do Warner Channel) que se conclui como
um elogio falsamente imparcial diante de seu objeto. Wiseman não
acompanha todos os ciclos de um hospital, mas apenas aqueles que são
atrativos ao olhar do espectador – internações, por exemplo,
distantes da agitação cinematográfica, são
ignoradas pelo diretor...Cheio de lacunas e reducionista, Hospital
mostra um Wiseman no ápice da crise pós-autocrítica
de seus primeiros filmes.
* * *
Num sentido
geral, essas 4 primeiras obras do final da década de 60, trazem
as marcas de uma encruzilhada:
De que
forma pode-se dialogar criticamente com o que se está filmando,
sem ditar uma verdade unívoca sobre os eventos - como se deixar
envolver com o que se filma sem cair no didatismo panfletário ou,
por outro lado, na timidez descritiva ?
Como
encontrar as brechas da realidade onde ela se deixe mostrar em suas contradições
e dilemas? Impossível?
Na década
seguinte, Wiseman tentaria uma resposta:
3- TRANSIÇÃO:
Dois
filmes da década de 70 representam na obra de Wiseman o que observo
como um apuro do diretor na escolha de seus objetos e no modo de se colocar
a dispor da realidade. Se antes Wiseman era quem ditava solitário
o painel-rítmico de seus filmes, em Welfare e Juvenile
Court isso muda. O diretor descobre, no espaço estatal das
cortes juvenis e da previdência social, o papel narrativo-rítmico
das instituições. Passa, então, a não apenas
observar seus eventos de forma panorâmica, mas introduzindo-os nas
articulações diversas de seus funcionamentos. Sobre a inflexibilidade
dessas normas e suas impotências, é que Wiseman encontrará
as brechas.
Deixando-se
levar criticamente pelo ritmo e pelos movimentos estruturais daqueles
espaços, Wiseman passa a descobrir suas críticas não
num choque induzido (como em Titicut), mas na própria observação
irônica do formalismo ditado por aqueles espaços. É
na superexploração de suas formas que esses espaços
começam a deixar escapar, nas entrelinhas, suas fragilidades. Wiseman
desiste do painel mosaical, e investe na observação meticulosa
não dos eventos isolados, mas das engrenagens da vida social. Como
as coisas funcionam (e falham...) passa a ser mais importante do que a
descrição reducionista dos próprios eventos.
Essa
virada de mesa de Wiseman, introduz pela primeira vez a grande capacidade
do diretor de abster-se do julgamento moral direto, e partir para uma
observação crítica (não negativista) das realidades
filmadas. Wiseman deixa de ter que induzir a realidade ao erro...e passa
a descobrir nos processos sócias suas próprias manchas.
Algumas
falhas talvez ainda persistam:
O discurso
das personagens parece estar cerceado demais pela câmera e seus
atos controlados reduzem as possibilidades do filme de encontrar suas
brechas. Apesar das coerentes palavras do diretor sobre a não-influência
da câmera no personagem social de seus objetos, novamente seu cinema
se enfraquece por não saber dividir com o público essa consciência
irônica sobre o teatro social armado para a câmera.
Dos dois
filmes, Welfare é, certamente, mais bem resolvido nesse
quesito, conseguindo em algumas cenas expressar o melhor do olhar crítico
do diretor – mesmo assim, esse processo é por demais sutil e se
deixa mostrar apenas em pequenas cenas (geniais...).
Seria
o público capaz de embarcar no mesmo jogo de sutilezas cinematográficas
carregadas pelo diretor ? A dúvida persistia.
Foi com
Violência Doméstica que a cartada final foi dada.
4 – VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA (Domestic Violence, EUA, 2001) – uma crítica.
Violência
Doméstica é um filme de Frederick Wiseman. Um documentário
pragmático e observador, crítico e irônico, como algumas
das cenas mais geniais de suas obras anteriormente exibidas no Brasil.
Mas, se nas obras anteriores persistiam as incoerências filme x
discurso e a dificuldade de compartilhar com o público do tom exato
de seu olhar, em Violência Doméstica, Wiseman alcança
o máximo de sua expressão cinematográfica e apara
as arestas de seu trabalho com uma assustadora perfeição.
Mas o
que haveria de novo no filme para fazê-lo uma obra especial em relação
aos outros filmes do diretor? O que faria desse filme um passo ainda mais
firme do olhar certeiro de Wiseman sobre o Estado americano? A sábia
escolha de seu objeto:
"Violência
Doméstica". Colocadas assim, essas duas palavras carregam
diversos significados e talvez várias interpretações.
De quê violência doméstica Wiseman estaria tratando?
A grande
sacada do filme de Wiseman é descobrir nesse termo jurídico
e todo o aparato estatal em torno de seu combate, a alegoria perfeita
para a síntese de todo o seu trabalho. Porque em nenhum filme anterior,
Wiseman alcançara metáfora tão exata para seu olhar
diante das instituições sociais de poder e controle.
Partindo
da disputa íntima (doméstica) de lares da periferia de Miami,
Wiseman traça um caminho preciso entre os efeitos mais diretos
da violência e dos instrumentos estatais na tentativa de dar ordem
àqueles pequenos exemplos de caos.
Soma-se
a narrativa individualizada das personagens que buscam ajuda num albergue
para mulheres violentadas (The Spring) e os meandros institucionais no
combate a esse problema (que afetaria 50% da população norte-americana).
Dessa forma, Wiseman consegue o ápice daquilo já havia sido
ensaiado em Welfare e Juvenile Court: deixar-se levar pela
narrativa inerente ao olhar institucional dos eventos. É no modo
como o Estado tenta dar ordem ao caos que Wiseman se projeta.
A cada
cena, o que vemos não é um Wiseman caminhando de forma arbitrária
(como em Titicut Follies); em Violência Doméstica,
o diretor se deixa levar pelo ritmo inerente aquele espaço e trabalha
seus comentários de imagens justamente na montagem irônica
daqueles eventos. O modo como associa o discurso unilateral das atendentes
do albergue a as diferentes dificuldades em dar efetividade à ordem,
é o segredo da contundência do filme.
Mais
rico do que as experiências anteriores de Wiseman, Violência
descobriu naquele espaço um dos únicos lugares em que as
não-entrevistas se tornam imunes ao enfraquecimento dos discursos
diante da câmera. Como se trata justamente do "lugar social"
do discurso e da denúncia, as personagens estão sempre mais
à vontade diante do filme e tomam para si a postura de narradores.
Com essa participação consciente das personagens na narração
do filme, ficam ainda mais fortes todas as interferências do diretor.
Wiseman inventa o equilíbrio perfeito entre autoria indutiva e
liberdade de interpretação.
Pois
se Wiseman mantém as sutilezas desenvolvidas em Welfare
e Juvenile (respostas ao panfletarismo óbvio de Titucut...),
aqui, essa característica expressiva da instituição,
faz das interferências do diretor o mais alto grau da montagem de
comentários.
A cena
das atendentes nos telefonemas do albergue, dando as primeiras orientações
às mulheres vítimas, é o comentário ideal
sobre a distância entre a vida doméstica e a ordem estatal.
Nos depoimentos
espontâneos das mulheres (pois se trata da primeira vez que cada
uma delas está abrindo suas histórias) são encontradas
pérolas sobre o modo de vida norte-americano, seus desejos, suas
dificuldades. Observar aquelas mulheres descobrindo em seus parceiros
e amantes, verdadeiros inimigos dentro de casa é um processo doloroso
e que é retratado por Wiseman com a elegância crua que nenhum
diretor poderia repetir..
As imagens
de violência mais diretas, como a da mulher com a boca cortada,
não são objeto de sensacionalismo...mais de um olhar curioso
e carinhoso (não piedoso) sobre aquelas personagens. Wiseman, especialista
maior em documentar as instituições americanas, faz de Violência
Doméstica um olhar crítico e delicado sobre a destruição
das mais básicas das instituições americanas: o casamento
e a família mononuclear.
Ao descobrir
no albergue The Spring a expressão maior dessa tentativa de ordenação
estatal dos terrores mais íntimos da vida social, Wiseman dá
um golpe certeiro e toca fundo numa ferida impassível de ser ignorada.
As relações
de poder e controle narradas pelos orientadores do albergue são
ironicamente observadas também na relação entre os
mesmos e as vítimas. Wiseman mostra como se dá a educação
dada às crianças, como é a explicação
teórica dada às mulheres sobre as causas do problema, e
cita de forma exata a dificuldade de uma mulher em entender o que exatamente
seria essa tal "violência doméstica":
"Foi
a polícia que me falou que aquilo era violência doméstica!...eu
não sabia que era esse o nome usado."
As normatizações
das relações humanas são observadas de um modo cauteloso
onde nada se conclui por inteiro (não há lição
moral cabível). Pelo contrário, Wiseman começa seu
filme pelos efeitos da tal Violência Doméstica, se
encaminha para a instituição que a combate e o fecha como
que numa espiral:
Os últimos
20 minutos do filmes voltam às periferias de Miami mas não
mais nos mostram as conseqüências das crises familiares, mas
a ebulição anterior à explosão. Diante de
um policial impotente, Wiseman nos mostra ver os rastros do que ainda
está por vir, na figura de um casal:
O homem
quer expulsar a mulher de casa, a mulher quer continuar ("e tem esse
direito", diz o policial). Naquela troca de ofensas e farpas se anuncia
mais um evento que poderia ilustrar o filme, mas Wiseman se cala aí.
Termina o filme assim, nessa volta incompleta da espiral em que o caos
insiste em escapar entre os dedos da ordem, em que o policial nada pode
fazer e a vida não se deixa encaixar no controle do estado.
Wiseman
questiona o estado não como quem procura um culpado, mas como quem
mostra, cautelosamente, as impossibilidades de se resumir as relações
humanas aos moldes institucionais da vida comum, da vida socialmente ajustada.
Consegue,
assim, fazer um filme que funciona de forma gritante para ambos os lados
da questão:
Para
as vítimas e praticantes da violência; e para os profissionais
da área em sua batalha diária no combate a um problema gênese
da vida social norte-americana. Violência Doméstica é
um filme completo: funciona como ferramenta de conscientização,
como objeto de estudo dos agentes sociais e como grande metáfora
das relações de poder e controle.
O fato
de o próprio espaço do The Springs, conter, em si mesmo,
um certo encaminhar de fatos que limita Wiseman, intensifica a tensão
dos discursos e a liberdade interpretativa fica mais viva – o choque entre
a narrativa direta da instituição e a montagem de Wiseman
gera um efeito devastador.
Finalmente,
o baixinho de orelhas curvadas, encontrou um objeto à sua altura...
Um grande
filme. Um documentário poderoso. Completo. Perfeito. Une a participação
crítica do espectador à possibilidade do autor interpretar
subjetivamente o objeto filmado; funde sua direção não-participativa
à força criativa de seus personagens; escapa da imparcialidade
estéril e desvenda a forças das verdades despretensiosas.
Descobre em suas lacunas e nas brechas de seu objeto a força de
uma realidade incontrolável e instigante para o público.
* * *
Síntese
de quase trinta anos de um trabalho incansável de observação
social e construção fílmica, Wiseman fez de Violência
Doméstica um passo adiante de virtuosismo e perícia.
Soube como nenhum outro documentarista fazer de sua obra uma grande saga
de realidades circulares, um organismo vivo e incontrolável, mas
sobre o qual se tenta mostrar aquilo que é visível. Os fragmentos
que lhe escapam à pele.
Como
o som recorrente de uma mesma nota...uma mesma tecla, uma mesma música...
Cada vez tocada com maior perfeição.
Felipe
Bragança.
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