A
primeira vez de um adolescente


Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha
Brasil, 1964
Auditório do MIS, janeiro de 1986
A memória é
composta mais por falhas que por certezas, daí seu caráter
quase inteiramente ficcional. Lembrar com precisão da primeira
vez que o cinema realmente bateu - tanto pelo conjunto do ritual
(sala, tela, obra e platéia) quanto pela revelação
poética do filme assistido - é uma aventura em grande parte
fadada ao fracasso.
Não estou justificando
o fato de, no meu caso, a memória fílmica estar também
ligada à minha desmemória etílica. É que,
na verdade, esta "primeira vez" acaba sendo uma forma de resumir
os primeiros anos de descobertas cinematográficas, que envolvem
filmes assistidos em cinemas comerciais, cineclubes, cinematecas e televisão.
Ou seja, um estado de alma, não apenas uma sessão. Eis aí
a dificuldade.
Como eleger o filme
deflagrador? O ideal seria montar uma coletânea, e não se
contentar com apenas um. Até porque meu gosto pelo cinema era bem
diferente quando, sob influência do meu pai, não perdia nenhum
bang-bang B dos anos 50 na televisão (e até hoje são
vibrantes as imagens dos filmes de Budd Boetticher com Randolph Scott
- O Homem que Luta Só, Cavalgada Trágica).
Nesta época, começo de adolescência, meu pai era a
principal referência. Até hoje não sei se assisti
ou não O Tesouro de Sierra Madre, filme por ele narrado
e representado várias vezes. Mas sei que de madrugada consegui
assistir na TV Key Largo, com Claire Trevor e Humphrey Bogart e,
durante o filme, lembrava-me das histórias que meu pai contava
sobre como, sem que os pais dele soubessem, ele e o irmão - então
adolescentes - assistiram pela primeira vez este mesmo filme, em 1949,
numa noite chuvosa em um cinema da Ilha do Governador, fumando um heróico
cigarro depois da sessão.
Quando descobri Antonioni,
Bergman, Glauber, o cinema para mim já não pôde ser
o mesmo. As referências mudaram radicalmente, e a recepção
aos filmes também: o barulho altíssimo do projetor e a projeção
com os rolos trocados do primeiro filme de Bergman que assisti - O
Silêncio -, numa saleta de projeção no IACS/UFF,
é uma das melhores lembranças deste novo período
de descobertas. Eu devia ter uns 15 anos e ignorava o cinema com muito
mais conhecimento de causa e naturalidade do que hoje.
No ano seguinte -
1986 - foi a vez de Glauber Rocha. A mostra Glauber Por Glauber,
no Cine-Arte UFF me revelou, de maneira definitiva, o cinema brasileiro.
De certa maneira isto até me atrapalhou, pois cinema brasileiro
passou a significar glauber-rocha, substantivo composto. Não por
acaso, quando assisti, no mesmo ano, Aopção, de Candeias,
houve um curto-circuito: "como é possível que este
filme seja tão brasileiro e não tenha nada a ver com glauber-rocha??",
era a pergunta que me atormentava.
Mas não vou
me prender à mostra Glauber Por Glauber, exibida em março
de 1986, comemorando o aniversário do cineasta. Recuo a dois meses
antes, janeiro de 1986, quando o Museu da Imagem e do Som, então
ativo no Rio de Janeiro, decidiu fazer uma pequena mostra de clássicos
da história do cinema mundial. Até hoje guardo as anotações
dos filmes que assisti naquele período (só por isto, aliás,
estou conseguindo localizar as datas com esta precisão). E, finalmente,
retorno a Glauber: nesta mostra, assisti pela primeira vez Deus e o
Diabo na Terra do Sol, e é este filme que decido eleger como
"deflagrador", por mais injustiça que eu esteja cometendo
com tantos outros.
Não só
este filme, mas todo o clima da sessão no pequeno auditório
do MIS marcaram totalmente a minha relação de espectador
com o cinema. Nada a ver com telas gigantescas exibindo superproduções
em scope colorido, ou multidões na fila de entrada, ou mesmo manifestações
contrárias a algum "clássico revolucionário".
A sessão de "Deus e o Diabo..." na saleta do MIS
tinha algo de caseiro, de particular, de minimalista. E de profundamente
falho, danificado.
No ambiente acinzentado
da salinha, uma pequena tela. No chão, duas caixas de som encarando
a platéia. Nas cadeiras, muitos jovens, possivelmente estudantes.
E, em breve, "Deus e o Diabo..." finalmente saltaria
dos livros de referência para as imagens movimentadas.
Ali, numa cópia
em 16mm repleta de saltos, pulos, tremores, cópia xilografada do
filme original, cercada de manchas e com pelo menos duas seqüências
a menos, o impacto das imagens de Manuel e Rosa, dos estandartes dos beatos
fanáticos, do mítico Antônio, do cego Júlio
e do close da cara de um boi sendo devorado por moscas. Ali, vindo daquelas
caixas fuleiras, o som-de-rádio-de-pilha da música de Sérgio
Ricardo, o violão carregado de mortes, jurando em dez igrejas,
a voz estourando a cada grave e a cada agudo, os berros.
Pela primeira vez,
ali, alguns nomes emblemáticos nos letreiros de apresentação:
um tal Rafael Justo Valverde que fez a montagem, um cara chamado Waldemar
Lima que foi o fotógrafo, as músicas de Villa-Lobos conseguidas
de gravações de uma tal de Copacabana Discos. E o que
diziam que era barroco, e o que diziam que era retórico
e dialético. Estava tudo ali, mas sem nenhum rótulo ou etiqueta.
Até hoje acho que esta cópia em 16mm que assisti era a única
em que não havia descontinuidade no plano da queda de Corisco ao
chão.
E, no espaço
entre o sertão e a utopia oceânica, o descobrimento interior
de um certo Brasil. Após a sessão, o terminal Alfredo Agache,
ali, onde fica o MIS, já não era o mesmo. Nem a Praça
XV, com a perimetral em cima, o aterro ali adiante, a baía de Guanabara.
Depois de Glauber Rocha (e, pra não dizer que não falei
das flores, depois que ouvi pela primeira vez, no ano seguinte, 1987,
o disco Tábua de Esmeralda, de Jorge Ben), o Rio definitivamente
se tornou uma cidade, ou melhor, um espaço audiovisual.
E o cinema, em toda
a sua imperfeição, e em seu fantástico formato 16
mm, passou a significar um outro universo: poesia. Presente em todos os
lugares e em qualquer boteco (manda aí, aliás, uma cerveja
bem gelada, por favor...).
PS: este
texto é dedicado à memória do meu pai, um bibliotecário
que foi cinéfilo nos anos 50 e 60 mas que na verdade sempre gostou
mesmo é de jazz. Um beijo.
Luís Alberto
Rocha Melo
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