Me apaixonando na Sessão Pobreza



O Substituto, de Richard Rush
The stunt man, EUA, 1980
Cinema América, abril de 1981

É difícil se precisar o momento no qual se passa de um mero espectador para a estranha condição de cinéfilo. Não basta gostar de ir ao cinema ou ver filmes com regularidade. Aliás conheço muita gente que vai ao cinema com uma frequência maior que uma vez por semana e nem por isso gosta realmente de cinema. Em abril de 1981, então com 15 anos, confesso que já havia passado um pouco deste estágio. Ir ao cinema, para mim há algum tempo já deixara de ser um mero programa de fim de semana, ou algo que se faz com namorada ou amigos. Já acompanhava a programação com regularidade, tendo inclusive assistido filmes de diretores que viriam a se tornar meus favoritos, como Allen (Annie Hall, Manhattan) Fellini (Amarcord), Bergman (Sonata de outono), Truffaut (O homem que amava as mulheres), Scorsese (Taxi driver) ou Altman (Cerimônia de casamento). Se não me falha a memória, foi também por essa mesma época que assisti pela primeira vez Apocalypse now. Mas o cinema, até então, era mais uma coisa que eu gostava, tanto como quadrinhos, livros ou música.

Mas da mesma forma que é preciso conhecer e ficar com várias mulheres, ou passar um tempo com uma delas até descobrir: "É essa!", a paixão absoluta pelo cinema não vem de uma hora para outra. E o meu momento de sucumbir a uma paixão que modificaria minha rotina ou determinaria diversas decisões em minha vida com certeza teve início na tarde de segunda feira na qual assisti (sozinho, é claro) O substituto. Naquela época, as salas do grupo Severiano Ribeiro cobravam um preço bem mais barato nas primeiras sessões de 2ª a 6ª feira, aquelas que a garotada chamava de "sessão pobreza", e que, por razões óbvias, eram as minhas favoritas. O cinema era o América, na praça Saens Peña, que fechou em 1997 e onde hoje funciona uma drogaria, um dos 8 localizados na região desde meados dos anos 70, quando alguns cinemas do bairro já haviam começado a fechar (como o Metro Tijuca e o Rio).

Numa época na qual eu ainda não valorizava tanto o nome do diretor eu nunca havia assistido qualquer um dos trabalhos anteriores do obscuro Rush. Aliás só assisti desde então a dois filmes do cineasta, um professor de cinema da UCLA, cuja carreira por trás das câmeras foi sempre bissexta: o anterior Getting straight, de 1970, e seu único trabalho posterior a O substituto, uma bomba chamada A cor da noite, de 1994. Naquele tempo eu já começava a assistir quase tudo que pintava pela frente, mas aguardava a estréia da fita com uma certa ansiedade, pois o trailer me despertara bastante interesse, assim como as indicações que o filme recebera para o Oscar daquele ano. Desculpem, mas a juventude nos faz levar determinadas bobagens a sério.

Infelizmente o filme foi muito pouco visto na época e me lembro que só ficou em cartaz por duas ou três semanas, por que eu quis assistir de novo e não consegui. É bem pouco conhecido até hoje, pois nunca saiu no Brasil em VHS ou DVD, passou pouquíssimas vezes na TV aberta, a última delas em 1999 na Bandeirantes (eu consegui gravar), e, salvo engano, nunca rolou nos canais por assinatura. Então tenho que contar um pouco da história, por que a maioria dos leitores não deve conhecê-lo. Um cara (que depois descobriremos que se chama Cameron e é um veterano do Vietnã) é perseguido pela polícia e causa involuntariamente um acidente em uma ponte durante uma filmagem, no qual um carro cai na água e seu motorista, um dublê morre afogado. O fato é registrado em película pelo diretor Eli Cross (uma atuação antológica de Peter O’Toole, e só é desculpável que ele não tenha ganho nenhum prêmio pelo trabalho por que foi o ano de O touro indomável). Cameron (Steve Railsback) em sua fuga vai parar nos sets do filme, uma produção sobre 1ª Guerra, e é chantageado por Cross para assumir o lugar do dublê morto em troca de proteção da polícia. É impulsionado a fazer proezas cada vez mais absurdas, até o clímax, no qual ocorre a reconstrução do acidente fatal; enquanto isso trava um romance com a estrela Nina Franklin (Barbara Hershey , jovem e bonita pra burro).

Contado assim parece banal, mas é um pretexto para uma série de piadas metalinguísticas (algumas das filmagens são hilárias), e discussões sobre a criação cinematográfica, nos textos proferidos por Cross ou pelo roteirista (interpretado por Allen Goorwitz, o mais subestimado dos grandes atores americanos). O grande momento da fita, e certamente aquele que me levou a refletir sobre a transcendência do cinema, é aquele no qual Eli Cross passeia com Cameron em uma grua discorrendo sobre o poder ilusório da sétima arte, alegando que "King Kong tinha na verdade menos de um metro de altura." É aí que Cross profere a frase chave de O substituto e que era citada no cartaz : "Se Deus pudesse fazer todos os truques que nós podemos, ele seria um homem feliz". Essa sensação de ilusão permeia todo o filme, que está sempre enganando o espectador, antecipando a estética do "parece-mas-não-é", tão em voga em filmes recentes (O clube da luta, O sexto sentido, Uma mente brilhante), mas sem uma certa canalhice inerente a estes títulos.

Visto hoje, 21 anos depois (é, estou completando minha maioridade como cinéfilo) continua sendo um filme bastante curioso, mas não inteiramente perfeito. Já consigo perceber nele alguns defeitos. Mas o mais importante para mim foi relembrar as estranhas sensações que povoaram minha cabeça na caminhada de volta para casa pela Rua Almirante Cochrane, descobrindo finalmente que o cinema era capaz de suscitar uma série de reflexões em suas entrelinhas, marcando o início de um processo de conhecimento que o ato de assistir a um filme não se limita somente ao que se vê na tela durante o tempo de projeção. E assim como se guarda para sempre a fotografia da primeira namorada, até hoje tenho pendurado na parede de meu quarto (emblematicamente em cima da televisão), o belíssimo cartaz de O substituto, com um desenho de Peter O’Toole caracterizado como um diabo sentado junto a uma câmera.

Gilberto Silva Jr.