Minha primeira namorada


A Dança dos Bonecos, de Helvécio Ratton
Brasil, 1986
Cinema América, 1986

Como definir o exato momento? Quando é que o cinema-de-fim-de-semana se revira e passa a ser um dos espaços mais representativos do meu dia-a-dia? Sou um cinéfilo? Acho que não. Não gosto do status cultural que esse título (de nobreza?...) nos confere.

Eu vejo filmes, e vou vendo filmes. E nesse assistir aos filmes, pensar nos filmes, sou incapaz de me deixar sentar confortavelmente na cadeira boa da cinefilia. Não me sinto confortável em relação ao cinema. De forma alguma. Não o idolatro (felizmente?...). Gosto de cinema. Mas se o cinema não me resume num ato, não serei eu a resumi-lo naquilo que admiro.

Existiria então um recorte, uma ruptura de paixão para o que sinto? Um momento exato em que o cinema me arrastou na correnteza?

Tenho lembranças vagas, pequeníssimas imagens. Como as dos pássaros negros sobrevoando a sala nos primeiros planos de O Sétimo Selo quando, chegado atrasado na sessão, assisti a 15 minutos do filme de pé, impossibilitado de desviar os olhos da tela e procurar um lugar.

Mas teria sido essa imagem a me dar um derradeiro golpe? Lembro-me talvez de um primeiro, com meus 7 anos (uma coisa legal dessa pauta é descobrir a idade dos críticos...): o filme era A Dança dos Bonecos.

* * *

Aclamado por público e crítica (naquela época, eu nem sabia o que era isso) o filme de estréia de Helvécio Ratton até hoje é uma de minhas memórias visuais mais fortes do momento máximo de uma sala de cinema. Porque (e essa sensação eu ainda carrego) se houve uma certa estranheza diante das imagens daqueles mamulengos, se houve espanto com a primeira vez que eu vi Wilson Grey projetado numa grande tela; ali, numa das inúmeras salas desaparecidas do bairro da Tijuca, eu sentia estar assistindo a um evento diferente de tudo aquilo que eu já havia visto antes.

Já fanático por desenhos animados de Walt Disney e tendo recém assistido ao ET do Spielberg, não pude colocar A Dança dos Bonecos na mesma prateleira comum de meus ídolos de cinema e TV. Saí, acho que pela primeira vez, perplexo da sala de projeção (se é que alguém com 8 anos já descobriu o que é estar perplexo...) e na minha cabeça o olhar intenso de Wilson Grey parecia inesquecível.

Curiosamente não virei fã daqueles personagens. Não os transformei em meus heróis. Sentia uma intimidade terna com aqueles bonecos humanizados e aquele mágico decadente. Tive a sensação de estar vendo algo que não tinha eco em exatamente nada do que estava acostumado a assistir no cinema. A Dança dos Bonecos pela primeira vez me trazia a vontade, da melhor das formas inocentes, de assistir a filmes feitos perto de mim, com algum traço inesgotavelmente indefinível, mas que tinha me encantado como nunca. Cinema brasileiro?

Diferente talvez dos filmes de Os Trapalhões, que eu associava diretamente como uma continuidade das figuras da tv, A Dança dos Bonecos me deu a tristeza de perceber que aqueles dois bonecos, que aquela história não estaria impressa em brinquedos, badulaques, lancheiras...não me esperavam na TV!!! Aqueles personagens, aquela história, viviam ali, e só ali, naquela sala escura de um cinema finito.

Pela primeira vez na minha infância "televisiva", vi no cinema um olhar de mistério, um espaço de um novo encantamento que não se daria em nenhum outro lugar. Abandonado pelos personagens, após o filme, tive pela primeira vez a sensação de que aquela tela imensa era de alguma forma parte de um espaço único, de um afeto que não repetia na rotina, mas que tinha algo de magicamente singular. Senti que o tal do cinema, e o cinema feito aqui perto de mim, tinham um modo de olhar as coisas que nada mais tinha.

Não saí do cinema apaixonado por personagens (dos quais o filme seria apenas um mostruário). A Dança dos Bonecos foi o meu primeiro grande caso de carinho por um filme, por uma narrativa de cinema.

* * *

O carinho com que hoje olho os filmes brasileiros voltados para o público infantil vem das lembranças dessa sessão de sábado à tarde na companhia de minha mãe e irmão caçula. Se os anos passam, e a gente traz para a nobreza de Bergmans e Rochas as responsabilidades sobre nosso amor pelo cinema, faço aqui minha homenagem não apenas ao filme, ao diretor, mas também ao público infantil.

Se tivéssemos um cinema infantil verdadeiramente forte e criativo, talvez pudéssemos criar gerações de novos amantes de nossas imagens. Hoje, achacados por produtos televisivos como Xuxas e Angélicas, nosso público de pequenos não tem encontrado nas telas brasileiras, filmes que de fato tragam uma vida cinematográfica singular diante das imagens hegemonicamente projetadas.

Sucessos como O Grilo Feliz e Tainá pecam por depender demais de modelos de cinema infantil (desenho-fofinho / aventura ecológica), já superexplorado pela cinematografia americana, e somente entram na enxurrada. Representam uma retomada econômica de público, mas nunca uma retomada estética.

Por outro lado, Castelo Rá-Tim-Bum e Menino Maluquinho (este, do mesmo Ratton) foram mais felizes, apesar de serem totalmente dependentes dos sucessos anteriores de seus personagens. Poucos são, porém, os filmes que trazem ao público infantil contemporâneo um diálogo mítico e encantatório capaz de trafegar com delicadeza e inteligência para dentro das culturas audiovisuais brasileiras. O que temos de forte em nossa literatura infanto-juvenil, temos de fragilidade em nosso cinema.

Pois o que mais me alcançava em A Dança dos Bonecos era a sua singularidade, suas imagens inimitáveis de mamulengos, sua sonoridade particular, o rosto inesquecível de Wilson Grey... E pelo modo como tudo isso (apesar de saber bem sugar suas formas de diferentes referências), ter se transformado numa figura única, inimitável...num acontecimento de Cinema.

Se entrei naquela sala de cinema tijucana como um consumidor cultural de pequeno porte, saí dela com os olhos cheios de uma coisa única, fetichista talvez, daquela sala escura, daquela tela imensa. Foi a primeira vez que senti de verdade o que podia se tornar uma mera sessão de cinema, e tive saudades profundas do filme quando saí...Naquele tempo não havia VHS como hoje, e a saudade se transformou numa vontade muito grande de voltar. Não apenas ao filme, mas àquele lugar.

Não sei se já era paixão, acho que não...Nessas horas, a lembrança tende a colocar fitas coloridas em tudo. Mas é bom poder brincar de adivinhar o passado.

Lembrar, mesmo que inventando, de quando eu encontrei minha primeira namorada. Aquela, com quem se anda de mãos dadas, e nem se lembra que o tempo passa, e de quem se sente uma saudade boa para o resto da vida. Por isso não carrego, orgulhoso, a condição de cinéfilo apaixonado...Por que talvez eu nunca tenha sido abatido de vez...Sou muito mais um tímido admirador das imagens, que ainda vai se aproximando delas devagarinho, quase como quem não quer nada. Um sutil admirador que tenta, aqui nessa revista, mandar incansáveis recados de seu amor.

Felipe Bragança