De olhos bem abertos


Léolo, de Jean-Claude Lauzon
Léolo, Canadá, 1992
Paissandu, setembro de 1992

Todos os textos desta pauta vão insistentemente bater numa mesma tecla: é quase impossível apontar para uma única sessão de cinema, um único filme onde descobrimos a paixão pela imagem em movimento, pela poltrona e a projeção na tela branca, em suma, onde fomos capturados de forma arrebatadora pela magia do cinema. Isso já seria de se esperar de qualquer espectador, mas ainda mais se pensamos que como críticos estamos ainda mais sujeitos a estes momentos reveladores, com enorme constância. E ainda teremos muitos... Mas, se a opção pela existência desta "sessão deflagradora" parece tão fugidia, porque insistir nela, isso realmente possui importância? "Realmente" não, não tem a menor importância. É discutível até que revele tanto assim sobre o olhar do crítico. Mas o que a proposta destes textos possui de mais interessante é a possibilidade de quebrar a tal parede que cisma em separar críticos de "espectadores comuns".

Me lembro que, quando entrei no curso de cinema da UFF, tive a matéria introdutória Teoria e Linguagem do Cinema, com o mestre João Luiz Vieira. Uma das suas mais insistentes afirmações era a de que estávamos a partir daquele momento dizendo adeus à inocência do olhar do espectador comum, algo que uma vez perdido não mais se podia recuperar. E a verdade por trás disso era inegável, afinal à medida em que íamos sendo apresentados ao arcabouço da Teoria do cinema, das práticas de realização, da técnica e dos processos em andamento em um filme, é impossível se repetir um olhar virgem de todos estes conhecimentos.

No entanto, sempre me incomodou a suposição de que a perda desta inocência era um triste caminho de mão única. Sempre me angustiou tentar mostrar que não apenas se perde uma possibilidade, mas sim que se ganham inúmeras outras. Se os truques e as engenhosidades do fazer e do pensar cinematográfico vão se desvendando, o chamado "olhar educado" começa a poder perceber tanto mais do que antes, e nisso havia uma abertura da percepção tão prazerosa quanto a inocência inicial. Afinal, se é verdade que podemos lembrar com saudade da sensação das primeiras descobertas dos carinhos sexuais, será que podemos dizer com uma cara séria que queríamos voltar a ser virgens? O conhecimento muda a pessoa, mas sempre que se perde algo, se ganha outra coisa, e vice versa.

Por isso, me deixou sempre desanimado ver que o crítico pode ser visto (e o que é muito mais grave, se ver também) como um burocrata, um frio dissecador de filmes, sem emoções, sem magia, que senta no cinema e analisa o que se apresenta a ele, sem nenhum prazer além da obrigação. Como eu podia aceitar isso, se hoje mais do que nunca tenho muito prazer em mergulhar nas imagens e sons na sala do cinema? Daí, esta pauta. Uma pauta onde os críticos podem revelar suas paixões, falar em primeira pessoa, serem apaixonados e emocionados. Como todos vocês, leitores.

* * *

Dentro desta lógica, ao me sentar para escrever, voltei ao problema inicial: como escolher a tal sessão de cinema? São tantas... Comecei descartando as sessões infantis, porque nelas nunca me senti especialmente voltado ao cinema, digo, não mais que qualquer um dos meus amigos que hoje trabalham com Direito, Economia ou Medicina. Claro que havia nos Trapalhões, no Cristal Encantado, no Retorno do Jedi (confesso que em E.T. tive mais medo do que fascínio, no auge dos meus 7 anos) algo que já mexia profundamente comigo. Principalmente, no meu caso, deveria citar desta época inicial (pré-10 anos) História Sem Fim, que foi meu verdadeiro filme de infância. Da mesma forma, não gostaria de citar os filmes juvenis, onde a adolescência se mistura com o cinema. Época de entrar secretamente nas sessões proibidas de Stallone-Cobra (sim, por que não?), de lutar em conjunto com Daniel-san em Karate Kid ou de ficar nervoso com a menina sentada ao lado em Dirty Dancing (e nesta época da vida Os Trapalhões saem de cena e deixam nosso imaginário à mercê do cinema americano, de fato). Se também precisasse lembrar um filme deste período, porém, ficaria com Ladyhawke. São momentos muito mais ligados à vida do que ao cinema em si. A vida era bem maior do que o cinema, que só estava ali como desculpa para a mesma.

Então, preciso buscar um outro critério. Fui meio precoce nesta coisa de se decidir por fazer cinema. No auge dos meus 14, 15 anos já espalhava isso, principalmente sob a influência do grande amigo cinéfilo Sérgio Vieira. Mas, certamente, minha compreensão do que era o cinema não se diferenciava então da enorme maioria das pessoas que não se vêem na menor obrigação de procurar nele um modo de vida. Penso na palavra "cinéfilo" e lembro que aqui mesmo nesta revista já bati de frente com ela. Afinal, ela tem significado uma relação superior e blasé com o cinema, típica do nosso "cinema de arte", que não tem nenhum contato com minha visão do fenômeno cinematográfico. Continuo uma criança que vai ver desde 13 Fantasmas a Frederick Wiseman. O olhar mudou, mas não o fascínio. Portanto, tenho que pensar neste olhar, nesta mudança. Tenho que pensar, talvez, de quando comecei a sentir que o cinema, quando desvendado e investigado, se tornava fonte de maior prazer do que eu experimentava até ali.

É difícil pensar numa só sessão. Por isso mesmo, virginiano obsessivo que sou, acabo pensando no momento em que o cinema se torna uma ocupação de dia inteiro, de semanas até: um festival de cinema. Ainda hoje sou rato de festivais, capaz de ver 7 filmes no mesmo dia. Ali, gosto não só dos filmes, mas da sensação das pessoas de que cada sessão daquelas pode ser única, que aquele filme pode trazer a iluminação. É quando o cinema deixa de ser "industrial" na exibição, e passa a ser único como o teatro, como os shows de rock. Por isso tudo, minha sessão especial se mistura com o primeiro festival que vivi: 1992, Mostra Banco Nacional.

Para quem não sabe, a Mostra Banco Nacional é a precursora da Mostra Rio e um dos braços formadores do Festival do Rio (onde anos depois me pego trabalhando). Organizada pelo Grupo Estação, trazia uma série de filmes ao Rio que depois seriam lançados, e alguns inéditos (embora ambos em números muito inferiores a hoje em dia). Ao longo dos anos, as sessões inesquecíveis na Mostra são impossíveis de numerar. Desde Morte em Veneza no Estação 1 a Fraternidade é Vermelha no Paissandu, passando pela fantástica sessão interativa de Priscila no mesmo Paissandu até coisas recentes como Promessas de um Novo Mundo no Odeon. E tantas, tantas outras. Em 1995 adicionei a Mostra de São Paulo ao catálogo, anualmente (e a Curta Cinema, e o Festival de Curtas de SP, e o Anima Mundi, e o É Tudo Verdade, e..., em suma, amo festivais), e lá tive mais uma série de sessões fantásticas de filmes tão obscuros quanto um certo Thalassa... Thalassa da Romênia ou o seminal Wong Kar-Wai de Cinzas do Passado ou ainda a descoberta de Angelopoulos com O Passo Suspenso da Cegonha, entre tantos outros filmes. Novos templos de cinema, também: Cine Sesc, Sala Cinemateca (a antiga, hoje Sala UOL).

Mas, voltemos a 1992. No ano anterior havia visto uns 4 filmes na Mostra (entre eles, outra sessão clássica, de Mais e Melhores Blues), mas neste foi a primeira vez que acompanhei da forma obsessiva que me caracteriza desde então. Programação e catálogo nas mãos, cheio de planejamentos, idas e vindas de cinemas, tentando ver o máximo. Mas, no fundo, ainda um olhar pouquíssimo educado, um olhar de quem está querendo descobrir um universo secreto. E neste ano, nunca esqueço, tive muita ajuda. O Jogador, de Altman; Amor e Sedução, de Zhang Yimou; Bob Roberts, de Robbins; Mediterrâneo de Gabriele Salvatore; Um Dia, Um Gato de Vojtech Jasny; Toto le Herós de Jaco van Dormael; cada um à sua maneira ajudaram a me formar. Mas, houve um filme que ficou acima de todos estes: Léolo, de Jean-Claude Lauzon.

Havia afinal, no filme, a metáfora perfeita para este meu olhar que mudava: o jovem Leo Lauzon, que saía da infância e cujo olhar tinha dificuldade em se adaptar à realidade do mundo que se apresentava. Sim, talvez um dos mais batidos argumentos cinematográficos. Mas, a forma como o diretor abraçava aquele garoto tão cheio de falhas, aquela família tão errada, aquele ambiente tão degradado, e os tornava mágicos, míticos mesmo, aquilo desafiava o meu discurso, o meu pensamento. Eu sentia ali, na junção daquelas imagens com aqueles sons, uma mistura que mexia comigo de uma forma que eu simplesmente não saberia explicar, colocar em palavras. E aquilo me instigava a querer saber mais, a querer entender como uma câmera, um gravador e uma moviola (termo que eu nem sonhava em conhecer) podiam, quando operadas por certas pessoas, criar mágica daquele tipo.

Quando Leolo abria sua janela pobre e via nela uma linda paisagem italiana, quando recitava sua poesia para a musa imaginada, quando mergulhava no mar em busca de moedas de ouro, eu sentia que eu entendia aquilo tudo de uma forma muito mais profunda daquilo que seja simplesmente "entender uma história". Ali, sem dúvida, eu começava a ver de fato do que o monstrinho do cinema era capaz. Como aquela janela, as portas da minha percepção estavam abertas, e difícil seria fechá-las. Se em 1989 eu afirmava querer fazer cinema, foi só em 1992 que eu descobri que era verdade mesmo. Desde então... uau, dez anos. Mas, nos filmes certos, o olhar continua tão assombrado quanto aquele.

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ps: Sempre fui meio maluco. Fazia (e faço) fichas dos filmes que vejo, comecei em 1989. Hoje, ler estas fichas mais antigas me diz muito mais sobre quem eu era naquela época do que sobre os filmes em si (motivo pelo qual, aliás, continuo fazendo). Na ficha de Léolo diz aqui, no mesmo dia que vi o filme: "Inesquecível". Não sei se eu podia dizer algo assim sem o teste do tempo. Hoje eu reescreveria a mesma coisa.

ps 2: Em setembro de 1992 eu tive minha primeira namorada séria... dois dias antes de ver Léolo eu pude pela primeira vez beijar a menina por quem eu era apaixonado há dois anos... menos de uma hora depois de ver a sessão (que lembro como se fosse hoje: Sábado, 14hs, Paissandu), eu estava na casa dela, descobrindo que estava namorando... Será que há como não haver alguma relação entre os fatos? Claro que não... cinema, vida, vida, cinema. De qualquer jeito a crônica vai dedicada a ela, a quem não vejo há muitos anos... assim como Léolo.

Eduardo Valente