Algumas lembranças esparsas da sala escura


Não, decididamente não é fácil aceitar o desafio dessa pauta e escolher uma sessão única inicial para despertar nosso interesse e carinho pelo cinema, por como é feito e por como é visto.

Um dos problemas que encontro, nesse caso, é que os filmes que mais mexeram com minha cabeça nessa fase de início de adolescência em que a gente parece ficar disposto a decidir toda a nossa vida dali em diante foram vistos em vídeo (ou mesmo na programação da tevê!), em sessões que podem ter ficado definitivamente na memória, mas que não têm, com certeza, nenhum glamour. Só fui assistir em sala de cinema a Terra em Transe, Cidadão Kane, Chaplin, Deus e o Diabo..., os filmes mexicanos do Buñuel, Rastros de Ódio, Rio Zona Norte e todas essas coisas bem mais tarde, muitos anos depois de ter assistido na telinha. Di, por exemplo, eu assisti pela primeira vez, já com dezessete anos e na faculdade, numa sessão em vídeo às nove da manhã (sou notívago...), numa sala da UFF, com uma cópia já perdendo a cor. (E, no entanto, a sessão foi muito mais interessante que quando tive a oportunidade de ver numa cópia nova em película, até porque é um filme que exige ser ouvido com volume nas alturas, ao contrário do que aconteceu na exibição posterior)

Como, inegavelmente, o ritual de ir a uma sessão de cinema transforma a nossa própria visão do filme, vão aqui algumas lembranças de uns bons casos ocorridos que me foram definitivamente deflagadores.

(Isso fica especialmente divertido porque outro dia encontrei edições antigas da "Tabu", o jornal que depois virou uma bela revista do pessoal do Estação, em sua pré-história).

Em São Paulo, recentemente (ano passado), vi em duas sessões tremendamente emocionantes Câmera, o curta de David Cronenberg. Foi uma paulada tão grande que me vi obrigado a escrever sobre o filme por aqui pela revista.

Numa oportunidade que tive de passar um período em outro país, coisa já não tão recente (em 1998), em determinado momento tive o tempo disponível e a necessidade de me enfurnar em salas de cinema diariamente. Tive, então, algumas alegrias imensas: Os Deuses Malditos, Édipo Rei, Trouble in Paradise, Sadgati, até desenhos de Jones, Freleng e Avery eu tive a sorte de ver. Mas teve um filme que re-estreou logo que cheguei e que foi preciso quase três meses para eu ter coragem de ir conferir, e que quando o fiz precisei passar antes por um longo ritual, foi Falstaff – Chimes at Midnight, do Welles. Bem, mesmo com toda essa pilha, posso dizer que é um dos casos em que o filme supera a expectativa, sem dúvida.

O Arte-UFF é um cinema bastante peculiar. Não cheira bem, a projeção não é boa, podendo perder o foco com facilidade – o que acontecerá com certeza em caso de filme em cinemascope – e, dependendo da época, o equipamento de som não sustenta a exibição, provocando eventuais e incômodas distorções. Dito isso, vale lembrar o charme que tiveram e têm algumas sessões no Arte-UFF. Como algumas das primeiras que assisti por lá, de alguns filmes que acabavam por se revelar muito maiores do que esperávamos no início da sessão. Como em O Rosto, numa inacreditavelmente boa Mostra Bergman (é claro que não tão boa como a mostra quase completa que o Grupo Estação fez anos depois). Ou como numa vez em que quase me atrasei para o filme, depois de ficar engarrafado por hora e meia no 996. Mal tinha ouvido falar do filme, isso ainda era 1993. O Padre e a Moça. Depois do cinema, lembro que encontrei com Guilherme Sarmiento, grande comparsa (na época ainda não tanto), e ficamos ali os dois, conversando sem saber o que dizer, chocados depois do filme.

Na fase deliciosa de descobrir a cinefilia, lembro de uma das vezes em que saí da praia e fui direto para o MAM. Ônibus, Aterro do Flamengo, pelo menos a sala de cinema tem ar condicionado, era um sábado de bastante sol. Ia passar o primeiro filme do chinês que fez Lanternas Vermelhas e Amor e Sedução, que tinham passado na mostra do Estação do ano. As cadeiras do MAM são horríveis, mas O Sorgo Vermelho é um filmão.

(Durante uma boa época, cheguei a levar um travesseiro para tentar tornar mais confortáveis as cadeiras – que, por piores que sejam, são parte da mais importante sala de cinema do Rio de Janeiro: – onde está a Cinemateca do MAM??!!)

O Cinema 1, antes de ficar sob o controle do Grupo Estação, tinha um ar meio mítico de cinema detonado. E foi lá que fui ver, ainda com catorze anos, a O Império dos Sentidos, e ainda dá pra lembrar bem como eu estava bolado enquanto caminhava por Copacabana pra pegar o 583 de volta para casa. Na época os amigos de São Vicente estavam naquela onda de cultuar Betty Blue, que eu gostava e acho que gostaria de rever, e me lembro que, pra mim, ali eu tinha um novo parâmetro, muito mais pauleira, do que era uma história de amor louco.

Eu falei lá em cima que vi os filmes mexicanos de Buñuel em vídeo, mas isso é meia verdade. Uma das primeiras sessões que assisti na Sala 1 do Estação Botafogo, certamente a sala de cinema mais importante pra minha geração, foi a de O Anjo Exterminador – e, na saída, é claro que ouvi pela primeira vez a piada de que talvez a porta da sala não se abrisse (na hora, achei que a piada era original). Mais tarde, na mesma sala, ainda em 1989, a primeira Mostra Bergman que acompanhei – fiquei mal com Da Vida das Marionetes. Gritos e Sussurros fui ver pouco tempo depois, na sala da Cândido Mendes, em Ipanema (o mais cruel ar-condicionado do Rio). Mas só vários anos depois eu iria ver Harriet Anderson jovem e linda em Monica e o Desejo e Noites de Circo, e a visão da atriz décadas mais tarde ficou ainda mais pauleira.

Ainda no Estação 1, pouco tempo depois, acho que ainda em ’89 ou ’90, vi pela primeira vez os filmes com Oscarito e Grande Otelo, Carnaval Atlântida, O Homem do Sputnik.

Na verdade, se for lembrar de tudo de bom que a Sala 1 já passou, não dá pra parar mais.

Mas a sala 2 merece também menção, porque era lá que passavam filmes em 16mm, emprestados em sua maioria do Consulado da França e do Instituto Goethe. E tome-lhe mostras Wenders, Herzog, muito René Clair, algum Jean Renoir e, sobretudo, muito Godard (foi onde vi Acossado pela primeira vez) e Truffaut – na verdade, de Truffaut só Duas Inglesas e o Amor, mas só esse filme já valeria mil mostras, de tanto que me encantou.

A lembrança dos filmes em 16mm, na verdade, foi também porque ainda no colégio São Vicente fiz com uns companheiros um cineclube de razoável existência – sessões semanais por dois anos, alternando filmes em vídeos com outros em 16mm – sempre emprestados pelo Consulado da França, graças à senhora Laila Kopke e seus dois assistentes, Marcelo e Gustavo, grandes figuras.

Foi na sala Porão do São Vicente que, um dia, depois de vários em que fiquei atrás do projetor, me permiti assistir ao filme confortavelmente sentado cuidando da porta da sala, enquanto um colega tentava cuidar pela primeira vez da projeção. De repente, olhei para o lado e vi que ele se esquecera que o projetor (marca IEC), depois de um certo tempo, não conseguia mais recolher a película, defasando o som e deixando ela escorrer do primeiro rolo. Em suma, quando olhei havia quase meio rolo de 16mm se desenrolando ao meu lado. Depois dos segundos de susto, tratamos de re-enrolar a película e trocar de postos, e tive eu que assistir ao filme atrás do barulhento projetor – era um filme muito bom! O filme era o delicioso Esta Noite é Minha, do René Clair, e acho que parte da platéia nem notou o problema – não que fosse muita gente, não era.

Acho que talvez aquele que eu pudesse definir, ainda que simbolicamente, como o primeiro filme que passei a amar e defender, como cinéfilo, seria o Coração Selvagem, de David Lynch. Passou na primeira mostra do Estação, em 1989 (não lembro o nome que a mostra teve na época, desculpem), e eu vidrei no filme – gostaria de rever, não sei se iria gostar tanto. Já tinha gostado demais de Veludo Azul, mas Wild at Heart eu sentia a necessidade de defender – em oposição aos filmes de Greenaway, que já então eu implicava bastante. Ia sempre uma turma na saída do colégio para o bar Magia do Sabor, que fica na praça do bonde do Corcovado, ou para o boteco ao lado da farmácia e da sapataria, ali perto, e Greenaway tinha seus defensores ardorosos, tanto por Afogando em números, que eu detestara, quanto pelo seu filme seguinte, O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante. Eu preferia apostar em Lynch, ou o novo cineasta que surgia com Faça a Coisa Certa.

Ah, e ainda na primeira mostra tive uma baita surpresa. Na Sala 3 foram apresentados filmes de dois cineastas, uma conversa de cinema brasileiro que na época eu não dava a menor bola, um lance de Udigrudi, coisa e tal. Fui ver um que já tinha ouvido falar, Tabu, e, bem, não gostei. Mas aí estava lá noutro dia, já tinha visto alguma coisa, resolvi arriscar. Me surpreendi e morri de rir. A Mulher de Todos!

A rigor, algumas das mais marcantes sessões de cinema não foram bem de cinema: não tem coisa melhor que assistir a filmes mudos com acompanhamento de orquestra ao vivo! E foi assim que pude ver, no Municipal, a Intolerância, numa sessão memorável. No ano seguinte houve, no estádio Caio Martins!, a exibição de Napoleão, com três telas e tudo mais. Mas o melhor ficou de novo para o Municipal: foi lá que passou, gloriosamente inteiro e com orquestra, Limite. É um filme que só se deveria assistir assim, com orquestra e tudo mais. Tive, alguns anos depois, a chance de ver outros filmes assim – O Ladrão de Bagdá, Entr’acte, mas agora isso não acontece mais. Soube que em São Paulo, recentemente, foi apresentado Greed e, esse ano, Metrópolis. Não pude estar lá, e morro de inveja de quem foi. Quem não viu ainda um filme com orquestra não tem noção de como é bom.

Mas tudo isso são lembranças, como já disse aqui, o filme que me fez encarar o cinema como caminho de vida foi mesmo Terra em Transe, assim como o ...Kane, que de fato chegou a se tornar uma obsessão, e hoje me parece ser um filme especial, porque menos obsessivamente autoral, na carreira de Welles, de quem normalmente prefiro os filmes tardios.

Na verdade, uma das mais remotas lembranças que tenho de uma sala de cinema foi com algo em torno de cinco, seis anos de idade. Meu pai teve a infeliz idéia de me levar para ver uma versão de Flash Gordon, que terminou por me apavorar. Em determinado momento o herói parece que vai ser devorado por um monstro, que na minha lembrança era um troço medonho (devia, isso sim, ser algo ridículo). Obriguei meu pai a abandonar a sessão e ir embora do cinema.

Daniel Caetano