Paixão por acaso


Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman
Viskningar och rop, Suécia, 1973
Cineclube Oscarito, 1983

O cinema não tinha muita intimidade comigo, nem eu com ele, até mais ou menos a idade de 15,5 anos. Tínhamos iniciado uma relação tão amistosa quanto ocasional com os Trapalhões nos anos 70. Um flerte ameaçou se estabelecer depois do surto de riso constante, a ponto de quase ser acometido de cãibra no sistema respiratório, durante a memorável sessão da comédia Deu a Louca no Mundo. A paquera ganhou sinais mais explícitos, embora ainda com muito respeito, depois de Os Caçadores da Arca Perdida e Poltergeist. Mas paixão, certamente, não havia. Meus pais não criaram o hábito em mim na infância e, segundo o datamemória, ia ao cinema apenas umas cinco vezes ao ano. Mesmo no princípio da adolescência, ir ao cinema com os colegas, a rigor, era aperitivo para o rodízio de pizza. Nem importava qual era o filme. Mais de uma vez eu me pegava pensando em um pedaço cheio de mussarela derretida enquanto o herói matava o vilão na tela ou o galã beijava a mocinha. Não era capturado pelas imagens. Não me envolvia por completo.

Era da literatura, pelo menos desde os 12 anos, que eu era íntimo. Essa relação, mais que paixão, era de amizade. O mergulho nos livros tinha efeito terapêutico. Funcionava como escape e divã para o tédio da rotina escolar/familiar, compensação para o desconforto gerado pela minha dificuldade de fazer amizade, tranquilizante para a ansiedade alimentada por uma rebeldia predominantemente silenciosa e companhia para uma solidão tão grande quanto a vontade de ser popular na turma. Os livros davam sentido ao que parecia não ter lógica. Tornavam concreto o que era abstrato. Mostravam uma solidariedade com almas perdidas. Ahh!!!!!!! Como os pais eram ignorantes, como os professores eram chatos, como os colegas faziam de tudo para serem insuportáveis, como as mocinhas por quem eu me apaixonava eram cruéis e como aquelas outras para as quais eu nem olhava insistiam em gostar de mim. Não havia lógica em nada. O mundo era uma ilha envolta em sombras aos 15 anos. A literatura, uma ponte. Me levava para fora e para dentro de mim mesmo. Deveria acender velas para o resto da vida para gente como Orwell, Dostoievski e Goethe. Como a oração de Antoine Doinell para Balzac em Os Incompreendidos.

E havia o sexo, em versão imaginada, à espera da prática. Revistinhas de sacanagem e as pornochanchadas dos anos 70, exibidas todas as sextas-feiras, às 23h15, na sessão Sala Especial, na Record, turbinavam as transas utópicas. Vera Fisher em embalagem reconchuda, Nadia Lippi com suas sardas nos seios e Adriana Prieto com sensualidade distante me acompanhavam noite adentro. A carteirinha escolar porcamente falsificada era usada, sob o risco de ataques mortais de medo, em sessões de grande voltagem erótica. Foi ela quem me pôs para dentro - opa! - de Os Bons Tempos Voltaram: Vamos Gozar Outra Vez, Primeiras Carícias e de um memorável pornô em terceira dimensão, exibido no extinto Biarritz (na Brigadeiro Luiz Antonio, em São Paulo), no qual as ejaculações voavam em direção à platéia. A magia do cinema era essencialmente física. Entendia o mundo na literatura e gozava no cinema. Não no cinema, mas com ele, que fique claro.

E foi o apelo erótico que me levou, por acidente anedótico, à primeira paixão pelas imagens das telas. Era um dia de semana de um mês qualquer do ano de 1983. Estudava em uma escola nova, frequentada apenas por CDFs craques de Geometria, e não tinha amigos por lá. Enquanto os caras seguiam os passos de Pitágoras, eu decidi investir meu tempo em um prazerzinho. Queria ir ao cinema e, pela primeira vez na vida, dispensei qualquer companhia. Para escolher o filme, fui ao roteiro do jornal. Buscava um título ou sinopse que acenavam com a possibilidade de cenas de sexo. Um filme se destacava. GRITOS E SUSSUROS.

Ingresso mais barato, em cinema desconhecido, um certo Cineclube Oscarito. É esse! A sala de exibição era completamente diferente das conhecidas por mim até então. Pequena, com cheiro de môfo, sala de espera minúscula e uns tipos meio esquisitos, a maioria sozinhos, provavelmente tão sem vocação para amizades como eu. Era o mais novo da sessão. A platéia era de uns caras mais velhos, de 20 e alguns anos, e tinha até uns coroas de 30 e poucos. Também havia algumas moças com cara de universitárias. "Ah safadinhas", devo ter pensando, em arroubo machista. Eu tinha levado a carteirinha falsificada, mas o cara da catraca nem olhou na minha cara. Me senti muito importante naquele ambiente aparentemente secreto e clandestino. Primeiras cenas. Nada acontece, ninguém fala e as imagens vermelhas, naquela cópia cheia de riscos, chegavam à tela em tom rosado. "Que merda de filme é esse? Pelo menos tinhas louras de olhos azuis que, a qualquer momento, iam começar a tirar a roupa e transar entre elas. Mas uma está morrendo. Danou-se!".

Fim do filme. Saí andando pela Praça Roosevelt, no Centro de São Paulo, onde ficava o Oscarito. Andei, sentei, pensei. Não tinha certeza sobre o significado daquelas imagens. Pensei mais um pouco. Talvez tenha sido a primeira vez que um filme me fazia refletir sobre ele. Também era a primeira vez que tinha visto um filme não americano (fora os brasileiros da Sala Especial). Queria decodificar aquela obra, esclarecer dúvidas, saber o que era aquilo. Entre tantas incertezas e inquietações, uma certeza tomou corpo nos dias seguintes. O cinema podia transformar o abstrato em algo palpável. Podia dizer com as imagens. Podia mostrar a morte. Não vou avançar na impressão deixada em mim pelo filme por que, inevitavelmente, serei contaminado por meu olhar e pensamentos de hoje, não daqueles dias de 19 anos atrás.

Gritos e Sussuros
ocupa o posto mais alto em meu podium de Bergmans. Em grande parte pela profundidade cinematográfica identificada nas várias revisões nos anos seguintes. Em parte por ter sido essa porta para um outro cinema, menos comprometido com o entretenimento e mais com as inquietações da vida, no sentido mais amplo e profundo desse termo. Essa porta poderia ter sido aberta por outros filmes que conheci nos meses e anos seguintes. Tive outras experiências até mais impactantes, como Deus e o Diabo Na Terra do Sol, de Glauber, Acossado, de Godard, e A Doce Vida, de Fellini, que alimentaram o sonho então distante de escrever sobre cinema. Mas foi esse acaso anedótico que, em um desvio proporcionado pelas esquinas sem sinalização da vida, semeou a paixão pelo cinema, o fascínio pelos cineclubes e o interesse por assistir os filmes não apenas com os olhos, mas também como cavernas onde temos de entrar com lanternas. Depois de tantos gritos e sussuros, o orgasmo cinematográfico tornou-se frequente, transformou-se em amor e, hoje, ampliou-se para o terreno da amizade muito íntima. Velas para Goethe, Dostoievski, Orwell e Mann. Mas também para Bergman, Godard, Glauber, Visconti, Bresson e Dreyer.

Cléber Eduardo