Cinema, terra de liberdade



Acossado, de Jean-Luc Godard
A bout de souffle, França, 1959
Cinema Cândido Mendes, 1985/1986

Eu não imaginava que a encomenda de um texto fosse me levar a tamanha frustração. À primeira vista dava até impressão contrária. Afinal, relatar o encontro determinante com o cinema, relembrar o primeiro filme marcante, se resumiria a reorganizar no papel lembranças indeléveis. Nada de ter de pensar um filme de maneira produtiva. Nada daquela angústia de conseguir articular no papel, com a mesma exatidão, o que se arquiteta na mente, nada de buscar a palavra exata, a frase justa. Um texto fácil, portanto, pequeno exercício de autobiografia, benéfico ao ego.

Fui então tratar de desencavar do fundo da memória aquele instante mágico. Aquele momento de certeza absoluta, quando o cinema tornou-se uma revelação. Vieram-me à mente imagens, várias. Desenhos animados, filmes mudos. E dei-me conta de que sou um homem de imagens. Até onde remonta a minha memória me vejo num mundo audiovisual. Imagens sonoras e moventes produzidas por uma pequena tela. Antes do cinema, fui criado pelas imagens da TV. Minhas primeiras lembranças audiovisuais são do gato Mandachuva e de um garoto de quimono que voava de telhado em telhado e lançava cartas afiadas contra seus inimigos, provavelmente um desenho animado japonês anterior ao saudoso Speed Racer. Voltaram-me à mente imagens de pastelão e a paixão que tinhamos, garotos, pelo maior de todos, Carlitos. Lembrei-me também do meu gosto por filmes clássicos americanos que assistia na casa da minha avó, quando podia ir me deitar bem mais tarde do que costume. Era a única criança a permanecer lá, frente à telinha, em meio aos adultos, fascinado pelas histórias contadas em preto e branco. Imagens fortes ficaram em mim que só mais tarde pude associar a um filme. Descobrir que a cena em que Quasimodo ganha o concurso de feiura pertencia à adaptação do Corcunda de Notre Dame por Edgard G. Ulmer com quase trinta anos de idade foi incrível! Mas ainda não sei donde vem a cena em que um homem armado ameaça se matar, coloca a arma na boca e... come o revolver de chocolate que segurava.

Essas imagens por mais marcantes que fossem, não valiam. Não eram cinema. E nem tampouco ficaram em mim como instantes em que o cinema revelou a mim o seu poder. Tratei então de buscar outras, oriundas de uma tela maior, vistas numa sala escura. As primeiras lembranças de cinema são do Walt Disney: Mowgli, Pinóquio, Dumbo (a terrível despedida de Dumbo separado da mãe por uma grade despedaçaram meu coração). Mas por mais que me esforçasse não conseguia encontrar aquele instante mágico, o momento da revelação, da certeza. As imagens faziam parte do meu mundo, eram um espaço natural que sempre me fora familiar. Não houve choque aos cinco, aos dez anos de idade. Não havia aquela impressão de "primeira vez em que vi o mar", porque sempre havia vivido à beira-mar.

Estava eu frustrado, por não ter o meu momento mágico, o momento em que o Deus Cinema, numa explosão de luz e som, se revelava a mim: "Ouça, e espalhe a minha palavra ao seu povo". Foi quando, ao percorrer lembranças mais recentes, lembrei de um certo filme e do efeito que havia tido em mim, pondo abaixo crenças e certezas arraigadas desde sempre. Eu era um adolescente típico, consumidor de comédias e filmes de ação americanos. Mas também sensível a outras formas de cinema. Conhecia alguns clássicos, como Os Incompreendidos, ou Amarcord. Digamos que eu era um pouco mais exigente que os garotos da minha idade, mas que a minha idéia de cinema correspondia a uma certa forma, clássica e narrativa. O autor do filme que decidira ver fazia parte do panteão de nomes míticos de que ouvira falar mas que não conhecia de fato. Junto com Bergman, outro ilustre desconhecido, eu o havia classificado na categoria dos "cineastas-intelectuais-cujos-filmes-são-difíceis-e-chatos". Sabia da importância dele no cinema, e portanto sabia que alguém como eu, com pretensões a ter uma cultura cinematográfica tinha obrigação de conhecer seus filmes. E o momento era esse: seu primeiro grande filme estava em relançamento, numa sala alternativa em Ipanema. E lá fui eu, relutante, receoso de me aborrecer no cinema, assistir a Acossado, de Jean-Luc Godard.

E agora vem a parte difícil deste texto. Descrever o que senti. Relatar a revelação do Deus Cinema. Sei que fiquei encantado, pela juventude e impertinência do tom. Então não era o filme de um velho chato! Pelo contrário, era a obra de um jovem, audacioso e iconoclasta, carregada de força vital, de humor, de ousadia. E a maneira como ele contava aquela história de amor e morte não se parecia com nada que eu já houvesse visto em toda a vida. Mostrava momentos corriqueiros, e estes momentos tinham graça. Encenava diálogos banais, e eles tinham alma. E não havia como esquecer que assistía a um filme: nada era como eu estava acostumado a ver. A música surgia quando não era esperada e desaparecia do mesmo modo. A câmera se movia pelos quartos de um apartamento, indo e vindo, dando voltas inesperadas. E os planos! Descontínuos, interrompidos, pulava-se no tempo, voltava-se para trás numa mesma cena!

Saí do cinema impressionado. Havia descoberto com assombro que o cinema era muito mais do que sempre havia pensado. Então era possível aquilo! Era possível cortar num plano-sequência e mostrar que estava cortado. Era possível mostrar o mesmo plano duas vezes. Era possível experimentar, criar, sair dos eixos do cinema clássico. O cinema era então um objeto, um material plástico maleável, cuja forma tinha os limites da nossa imaginação. Naquele instante, o cinema descia do limbo em que o havia inconscientemente colocado, para tornar-se o que sempre fora: o produto da criação dos homens. Pela primeira vez percebia conscientemente que o cinema era, como a música ou a pintura, um instrumento de expressão artística, sem limites.

Uma impressão que confirmou-se alguns anos mais tarde com Entervista: um filme que falava de si próprio no momento em que se construia, e remetia ao passado do seu diretor (Marcello Mastroianni e Anita Ekberg revendo, 25 anos mais tarde, uma cena de La Dolce Vita). Então não havia limites para o cinema. Não havia leis, apenas regras que podiam ser reinventadas a qualquer momento.

Com os anos fui descobrindo o quanto se havia experimentado com cinema, principalmente a partir da década de sessenta. E descobri que aqui também se havia experimentado. Que havia obras brasileiras tão ou mais arrojadas: Terra em Transe, O Bandido da Luz Vermelha, O Anjo Nasceu, Bang-Bang. E que esse era, definitivamente, o cinema que mais me entusiasmava. Com Acossado, descobri que era filho do cinema moderno.

Carim Azeddine